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Bienal cearense extrai sua força da precariedade

03/01/2003

Percurso com jornais criado por Luis Emilio Insfrán: instabilidade

 

FERNANDO OLIVA
Especial para o Estado

   Apesar das águas turbulentas enfrentadas pela recém-inaugurada Bienal Ceará América - De Ponta-Cabeça em sua fase de organização e produção, já começam a despontar os primeiros fatos positivos para o circuito artístico do País, que acaba de ganhar mais uma exposição periódica, de grande porte, que se vem juntar à cinqüentenária Bienal de São Paulo e à jovem Bienal do Mercosul. Uma das conquistas da Bienal cearense é a permanência definitiva, em Fortaleza, do curador belga Philippe van Cauteren, braço direito de seu célebre compatriota Jan Hoet (curador da histórica Documenta IX, em 1992, na cidade alemã de Kassel) e que vestiu a camisa da mostra nordestina.

   Entre os projetos de Cauteren para o biênio 2003-2004 em terras cearenses - um total de oito exposições até a abertura da 2.ª Bienal Ceará América - está Beuys-Barrio, que vai reunir desenhos do artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) e do brasileiro de origem portuguesa Artur Barrio, um dos homenageados desta Bienal. Mais uma dose dupla, Serra-Amilcar, pretende contrapor vídeos criados nos anos 60 pelo americano Richard Serra e desenhos do brasileiro Amilcar de Castro (1920-2002).

   O curador belga planeja ainda ocupar todas as salas do Museu de Arte Contemporânea do Ceará com uma grande instalação de Ilya Kabakov, artista russo de grande destaque no cenário artístico internacional e famoso por suas impactantes instalações de forte cunho político. Além de mostras individuais do belga Marcel Broodthaers (1924-1976), do americano de origem holandesa Bas Jan Ader (1942-1975) e do americano Matthew Barney e toda sua aclamada série de filmes Cremaster.

   Tudo isso é coisa fina, mas cuja realização depende exclusivamente de investimento governamental, ao mesmo tempo sinônimo de dificuldade e solução no contexto da Bienal Ceará América - que a exemplo de São Paulo e Porto Alegre pretende se transformar em fundação, a Estação Bienal, na tentativa de adquirir maior autonomia em relação ao dinheiro público.

   Agora ou nunca - Esta primeira edição do evento, que pode ser vista até 28 de fevereiro, foi organizada às pressas, justamente porque a atual gestão de Nilton Almeida à frente da Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará (Secult), aproxima-se do fim, e continuidade não é um substantivo que costuma freqüentar a política cultural brasileira. Por conta disso, a 1.ª Bienal Ceará América não foi adiada para 2003, como devia, e os artistas foram obrigados a correr contra o tempo. Alguns trabalharam em espaços expositivos inacabados, caso dos centenários galpões ferroviários da RFFSA. Também aconteceu de obras não chegarem a tempo para a abertura, como as dos mexicanos Gustavo Artigas e Francis Alys e do americano de origem alemã Hans Haacke.

   "Era agora ou nunca (realizar a Bienal). Se no ano que vem a Secult for dirigida por alguém que só tenha olhos para o passado e não simpatize com a produção contemporânea, todo o nosso projeto poderia ir por água abaixo", afirma José Guedes, diretor do Museu de Arte Contemporânea do Ceará, que integra o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, complexo cultural que ocupa mais de 30 mil metros quadrados próximo à Praia de Iracema. Foi Guedes quem idealizou a Bienal Ceará América, há cinco anos, e quem convidou Jan Hoet para ser seu curador. O belga, que se encontra adoentado há meses, manteve-se ausente do projeto e nem sequer pôde vir a Fortaleza.

   O jovem curador Philippe van Cauteren, de 33 anos, foi quem pôs a mão na massa e empreendeu um corpo-a-corpo com artistas, curadores e críticos, em verdadeiro périplo pelas Américas, dos EUA ao Uruguai, em visita a mais de dez países durante um ano. Ele escolheu mais de 40 nomes, a maioria jovens emergentes como Narda Alvarado (Bolívia), Erick Beltran (México), Francisca Garcia (Chile), Jonathan Harker (Panamá), Paola Parcerisa, Luis Insfran e Bettina Brizuela (Paraguai), Esteban Alvarez e Tamara Stuby (Argentina). Há gente de toda a parte, mas o maior grupo é formado por brasileiros, com Odires Mlászho, Waléria Américo, Mauricio Coutinho, Rogério Canella, Paulo Climachauska, Gaio, Juliano de Moraes, Felipe Barbosa, Rosana Ricalde, Adrianne Gallinari, Jared Domício e o Grupo Transição Listrada (Vitor Cesar, Rodrigo e Renan Costa Lima). Barrio e Haacke foram convidados especiais, escolhidos pela contundência política de suas trajetórias. O mote desta Bienal é uma obra engajada feita nos anos 40 pelo uruguaio Joaquín Torres-García, o desenho O Norte É o Sul, que subverte a configuração geográfica e o jogo de forças da América do Sul ao representá-la de ponta-cabeça.

   Ocupando a cidade - A exposição ocupa três lugares distintos: o Museu de Arte Contemporânea do Ceará, espaço museológico clássico; a impressionante Casa Boris, antigo prédio da marinha mercante fundado em 1869; e os dois galpões ferroviários da RFFSA, de 1880.

   Uma das opções a serem destacadas em benefício desta Bienal é que ela não impõe um tema monolítico, decisão que muitas vezes se revela uma referência enganosa para o público. No lugar de lançar conceitos postiços ao meio cultural de Fortaleza, a curadoria buscou caminhar no sentido contrário, a fim de que a própria cidade indicasse os percursos a serem pavimentados pelos artistas.

   A linha mestra de Cauteren foi trabalhar com a oposição entre litoral e interior, e o universo ligado a cada um desses espaços antagônicos do tecido urbano, que segundo ele possuiriam "acelerações" distintas. A dicotomia estaria de tal maneira arraigada na alma de Fortaleza que influenciaria seus fluxos urbanos, suas relações político-econômicas e as relações pessoais entre seus habitantes. No contexto da Bienal Ceará América, o litoral se relaciona à utopia, ao olhar fixo, ao panorama, à distância, ao lazer, ao desejo, ao ideal, à meditação. O interior, por outro lado, se liga ao pragmatismo, ao foco, ao trabalho, à sobrevivência, à interação e ao diálogo.

   "A Bienal deve ser vista como uma exposição que se encaixa nas características de Fortaleza, na sua epiderme. A mostra será então a segunda pele desta cidade, um órgão inerente a ela", afirma Cauteren.

   Nesse sentido, a noção de precariedade e despojamento presente em alguns trabalhos (Adrianne Gallinari, Jared Domício e Jonathan Harker, por exemplo) pode ser referida à própria instabilidade, caos urbano e pobreza de Fortaleza - situação comum à maioria das metrópoles brasileiras. Justamente nesse ponto - nesta zona de tensão, real e imaginária, entre a exposição e o tecido urbano - reside a força e a originalidade desta 1.ª Bienal Ceará América.

   Quem fisgou como ninguém as iscas lançadas pela curadoria foi o Coletivo Cambalache, dupla de jovens artistas colombianas, que decidiram trocar os espaços convencionais da mostra por um contato direto com as ruas de Fortaleza. Elas alugaram um carrinho de madeira com alto-falantes, usado para todo o tipo de propaganda sonora pela cidade, e abriram o microfone para a população cantar, improvisar e se expor. A dupla percorreu as quebradas da capital por vários dias, resultando em um vídeo (em exibição na Casa Boris) e na série de quatro CDs Fortaleza Mix, com cópias à disposição do público.

   Improviso - Contudo, esse conceito de precariedade que muitos artistas souberam usar em benefício de sua obra, não deve se confundir com as situações de improviso, um dos pontos fracos do evento. Diferentemente do que costuma acontecer no Brasil, os problemas dessa primeira edição da Bienal cearense, orçada em R$ 2 milhões, não passaram pela falta de verba, mas foram provocados pelo apertado cronograma dentro do qual a exposição foi produzida e montada - causando alguns atropelos.

   A americana de origem chinesa Shirley Tse, que trabalha com estruturas porosas de poliestireno em diálogo com arquiteturas urbanas, recebeu o convite para participar pouco menos de dois meses antes da inauguração, tempo considerado escasso para a produção e transporte das obras desde Los Angeles, onde ela mora. No domingo seguinte à abertura, ainda havia instalações sem identificação (como a do brasileiro Jared Domício, na Casa Boris) e algumas creditadas de forma errônea (a obra do panamenho Jonathan Harker, por exemplo, levava etiqueta com o nome do brasileiro Odires Mlászho).

   A tentativa de improvisar também prejudicou algumas boas idéias, caso da paraguaia Paola Parcerisa, que se vem destacando em seu país, mas não conseguiu realizar em Fortaleza uma obra de peso. Suas fotografias foram feitas em locais abandonados da periferia de Fortaleza, mostrando um personagem que segura um grande espelho e, desta forma, traz um insólito pedaço de mar para dentro daquelas áridas cenas. Uma proposta interessante que não se concretizou, pois para garantir seu impacto as imagens mereciam ampliações mais caprichadas e maiores.

   Entretanto, uma iniciativa como essa, produzir uma Bienal de arte fora dos eixos dominantes - de Rio e São Paulo, no Sudeste, e Recife, no Nordeste -, sempre carrega altas injeções de alento. O trânsito internacional de Cauteren pode desaguar em maior projeção dos artistas brasileiros no exterior. Novos espaços expositivos foram conquistados em Fortaleza, caso dos poderosos galpões ferroviários (que vão ser sede da Estação Bienal e parte das mostras planejadas pelo belga) e da charmosa Casa Boris. Com a anunciada continuidade do evento, vai aumentar o público interessado em arte contemporânea no Nordeste, abrindo caminho para o surgimento de mais um pólo cultural no País.

(© O Estado de S. Paulo)


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