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Bispo visionário

17/01/2003

O ator, roteirista e diretor baiano João Miguel vem encenando o espetáculo Bispo desde 2000

 

A peça Bispo, que conta a história do visionário, profeta messiânico e artista Arthur Bispo do Rosário, será um dos destaques do Festival Vida & Arte. Por telefone, o ator baiano João Miguel fala do monólogo que tem corrido o País e em 2001 arrebatou quatro estatuetas no VIII Festival Nordestino de Teatro, em Guaramiranga

Ariadne Araújo
da Redação

   No palco, de mãos dadas, misturadas, complementares: a loucura e a lucidez. A história do sergipano Arthur Bispo do Rosário, catalogado como louco, paranóico, esquizofrênico, mas também como gênio das artes plásticas no Brasil e no mundo - sua obra, mais de 900 peças, foi exposta em bienais em Veneza, Paris e Nova York. Encarnado e por inteiro, na pele do ator baiano João Miguel, ele entra em cena em sonoro monólogo. Melhor dizer, diálogo. ''Com a platéia, com a própria lógica do personagem, com figuras reais do nosso País'', diz o ator, roteirista e diretor.

   Na programação do Festival Vida & Arte, a peça Bispo convida o público para uma irresistível viagem no imaginário, delírios e sonhos deste homem que passou os últimos 50 anos (até 1989) de vida trancafiado no Hospício Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e julgava ter missão divina na Terra, a de reproduzir o mundo em miniatura. Labirinto mental que à porta pede senha. Azul é a chave da charada (às vezes, dourado). Cores no gosto dele, misto de visionário, profeta, messiânico. Para João Miguel, o Bispo era extremamente inteligente e lúcido. Vítima de uma ''época (plena ditadura militar) marcada pelo preconceito que ainda hoje existe'', explica o ator.

   Com direito a farda de gala. O Bispo, representado por João Miguel, surge de manto marron, cheio de franjas, fitas, bordados, tela onde foram escritos os nomes dos companheiros de passagem, ou seja, da viagem na hora da morte. ''Era a roupa com que ele esperava apresentar-se ao céu no dia do juízo final, explica o artista. Para Miguel, a gente realiza essa passagem no nosso olhar, da loucura para o mundo da arte'', diz. O mundo fantástico que materializou-se numa cela de interno - as peças que ele produzia eram feitas do lixo do hospício - chegou ao ator através de um livro: O Senhor do Labirinto, de Luciano Hidalgo.

   ''A gente se nutriu desse texto. Mas criamos um roteiro a partir do que a gente descobria em cena'', diz o baiano. Só para a pesquisa, mais de quatro anos. Um trabalho aprofundado, inclusive, a partir de visitas aos manicômios locais. Ensaios que fugiam das paredes fechadas dos auditórios e aconteciam em corredores, entre uma ala e outra dos internos. No cenário, apenas um lençol e um banco. ''Tínhamos ali as pessoas muito próximas de nós. Olho no olho''. Então, são muitas as experiências deste Bispo interpretado pelo inquieto João Miguel. Além de espetáculos em hospícios, adivinhem?, também nas jaulas de um leão, em um jardim zoológico.


   Três horas de performance - o leão preso em uma jaula menor. Em cena, o monólogo do Bispo, partituras saídas de uma guitarra e os urros do incomodado dono da casa. Deu-se o inusitado, como era de se esperar. ''As crianças perguntavam aos pais se nós éramos artistas ou malucos e eles respondiam que éramos os dois'', conta. Fora estas experiências impactantes, a peça corre o Brasil há dois anos. No Ceará, passou por Fortaleza, Crato, Juazeiro, Iguatu. Em Guaramiranga, arrastou quatro estatuetas no VIII Festival Nordestino de Teatro de 2001 - ''acho que o público cearense entende o espetáculo''.

   Do bico de um bem-te-vi, um canto forte empurrou para outro rumos o pensamento do ator baiano. Da janela da casa de vila, em Salvador, diante da paisagem privilegiada da Baía de Todos os Santos, João Miguel lembra que, na construção do Bispo, cabem vários personagens: ''Pessoas e cenas da minha infância mais longínqua. Também pessoas e cenas vivas na memória da platéia, na história cotidiana do País'', diz. Pois ele explica que Arthur Bispo do Rosário era um sergipano e como ele, centenas de nordestinos, pobres, pretos, encontraram formas de produzir e manifestar suas crenças. ''Por isso, o Bispo conquista aliados entre o público'', diz.

   ''Cada um tem a sua própria loucura. Mas eu acredito na lucidez do Bispo'', diz João Miguel. Confinado, trancafiado, estigmatizado, ele conseguiu respeito dentro do hospício e espaço para criar toda uma obra que devotou a Deus, mas que ganhou visibilidade e causou impacto no público. Então, a partir da história do Bispo, vêm à tona algumas questões: ''O que é a arte? O que é ser artista?', pergunta o ator. Na peça, o passeio no mundo inconsciente do Bispo convida a um quebra-cabeças. ''O teatro é um campo para o risco. E na peça temos um desafio de tempo, espaço e ritmo dentro de um labirinto que ele criou'', conclui.

(© NoOlhar.com.br)


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