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04/02/2003

Alceu Valença

 
 

De janeiro a janeiro, o mais novo CD de Alceu Valença, marca seu grito de independência. O disco foi lançado nas bancas. Ele será atração do Acampamento da Juventude, em Icapuí. Confira trechos do CD

Luciano Almeida Filho
da Redação

   Ele não viu o tempo passar. Até que seu coração pediu um tempo. Mesmo assim, o pernambucano Alceu Valença continua a todo vapor, aos 56 anos. Precisou um amigo lembrar que ele estava fazendo 30 anos de carreira. Foi então que resolveu fazer um CD onde pudesse mostrar suas diversas faces como artista, rearranjou sucessos, resgatou coisas do fundo do baú e compôs outras novinhas em folha. E assim foi nascendo o CD De janeiro a janeiro, que chegou às bancas de revista de todo o Brasil em dezembro passado, encartado no primeiro número da revista Música de Atitude (preço: R$ 14,90), que trata exclusivamente da música brasileira.
  
   Na próxima semana, Alceu Valença retornará ao Ceará para ser uma das principais atrações do V Acampamento Latino-Americano da Juventude, que acontecerá de 14 a 16 em Icapuí - a 195 km de Fortaleza. Na noite de sábado, 15, em palco armado nas areias da Praia de Tremembés, ele mostrará o show de lançamento de De janeiro a janeiro, confirmando que seu público está sempre se renovando. Alceu sabe disso e está em constante mutação. Nesta entrevista, ele fala de independência e personalidade artísticas, de pirataria e cidadania, do Brasil em ritmo de mudanças, da autonomia da música brasileira, entre outros assuntos.

O caminho da independência

   ‘‘Eu comecei meu trabalho de uma maneira quase independente, no que concerne a escolha do meu repertório e tudo isso. Eu trabalho há anos desta maneira, sendo dono do meu nariz, do meu repertório. As gravadoras não faziam a menor interferência e nem ousavam falar comigo para eu mudar isso ou aquilo. Mas há 15 anos mais ou menos eu fui para uma gravadora, onde as pessoas nunca me obrigaram fazer a nada, mas começou a aparecer ‘sugestões’. Era na época dos bregas, e eu não aceitei as ‘sugestões’ de jeito nenhum. Aí o que aconteceu, botaram meu trabalho dentro da gaveta. Meus discos vendiam bem, muito bem, mas não tocavam dentro dos rádios etcetera e tal. Quando eu vi isso, senti que a indústria estava partindo para vender música como quem vende sabonete. É indústria, claro, e eu não vou discutir isso. Mas se é indústria cultural, é pra vender cultura. Mas virou uma coisa descartável mesmo. Então desde este tempo, por volta de 1986, que eu direcionei o meu trabalho para os meus shows. E meu público foi se renovando, entendeu? Hoje eu tenho quatro tipos de shows: eu faço um show em teatro, com uma camerata; eu faço um show que é de carnaval, este eu faço praticamente só no Recife, na época de carnaval; faço um show de São João, que eu priorizo forró, xote etc; e faço este show pop, absolutamente brasileiro, mas que eu uso instrumental pop com mais guitarra, essas coisas todas. E desta maneira fui acumulando público e me afastando de gravadoras. (...) Há cinco anos eu faço os meus discos e negocio com as companhias.’’

O artista sem rótulos

   ‘‘A Sony Music me convidou para fazer um disco, o Forró Lunar (N. da R.: disco lançado em 2001). Vieram com uma proposta de trabalhar o meu marketing de uma maneira diferenciada, pessoal, mesmo porque eu sou um artista que não me pareço com nada. Modéstia à parte, sou um artista singular. Porque eu nunca me prendi a nada, a ninguém, a nenhum contemporâneo. As minhas referências ainda remetem à música do Nordeste de quando eu era menino, a música do rádio que tocava em São Bento do Una - Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro - e a minha própria invenção. Então eu tenho que ser tratado como uma coisa diferente. Inclusive, dentro do meu trabalho, é impossível você colocar uma marca nele. Você pode dizer que o Alceu Valença é um cantor de forró? Não é. É um cantor de forró, de frevos, de maracatus, de carnaval. Você vai dizer que eu sou um cantor de carnaval? Não sou. Sou um cantor urbano, de coisas como ‘Tesoura do desejo’. São canções urbanas que não se parecem com nada, você não vê nada parecido com isso. Então é muito difícil de me enquadrar.’’

O novo CD

   ‘‘Paulinho Rafael (N.da R.: violonista, guitarrista e produtor, fiel escudeiro de Alceu) montou um estúdio junto comigo, do lado da minha casa. Lá eu fui rearranjando as músicas para os meus shows. E fui descobrindo os timbres. Por acaso, eu descobri um novo timbre para ‘Estação da luz’. Desta maneira, eu rearranjei esta música. Uma outra música que estava no disco Todos os cantos chamada ‘Vai chover’, eu comecei a cantar ela de uma outra maneira. Quando eu estava neste trabalho de depuração do meu show, acontece que umas pessoas vieram me dizer: Alceu, você está fazendo 30 anos de carreira. Eu tomei até um susto, não me lembrava, mesmo porque meu público cada vez fica mais jovem. Fiz um show no Sesc em São Paulo cuja a média de idade do público era de 23 anos. Eu sou uma pessoa que sou casado com uma moça de 28 anos, tenho um filho de um ano e seis meses, o tempo para mim não passa. Até eu ter um problema de saúde, eu não estava nem lembrando que esses 30 anos se passaram. Aí o cara da banca vizinho a minha casa, o Carmelo, disse: ‘Alceu, você tem que fazer um disco de comemoração, fazer uma coletânea’. E eu pensei, se eu fizer uma coletânea seria estar batendo na mesma tecla. Existem até grandes coletâneas que são feitas do meu trabalho que eu nem gosto delas. Porque são repetitivas. E as coletâneas têm essa coisa da mistura de alhos com bugalhos. Então eu resolvi fazer um disco conceitual. Como eu tinha essas duas músicas já arranjadas, então eu comecei a pegar outras coisas do meu repertório e comecei a inventar um disco. Aí inventei um disco que tem conceito, que tem uma sonoridade, que tem um timbre. Usei estas músicas para comemorar este tempo, mostrando alguns referenciais. ‘Quando eu olho para o mar’, por exemplo, é uma música que não existe no mercado. Porque era do disco Cinco Sentidos, que nunca foi passado para CD.’’

Confira trecho de algumas músicas do CD:
01 - Blue Baião
02 - Triste Comédia
03 - Vassourinha Aquática

Menino do interior, homem do mundo

   ‘‘Neste disco, eu tentei mostrar diversas faces minhas. Eu mostro o Alceu do carnaval, gravando um frevo, um caboclinho, um maracatu bem urbano como ‘Triste comédia’. Mostrei também o Alceu da cidade grande. E dentro disso, eu mostrar as minhas faces das minhas circunstâncias literárias que vem tanto dos violeiros da minha infância no interior, quanto dos poetas que eu li. Sou menino do interior, mas fui muito cedo para o Recife estudar, ser universitário, ser jornalista, advogado, morei em Paris, moro no Rio, portanto tenho esta formação super diversificada. Isso se reflete dentro do meu trabalho. A minha linguagem tanto pode correr pelo cordel quanto pelos poetas de gabinente, que leio todos.’’

Parceria com revista

   ‘‘Eu estava com este projeto sem saber o que fazer. E de repente eu encontrei um rapaz que estava afim de fazer uma revista para as pessoas que tem esta atitude de serem únicas, singulares. Que fazem um trabalho que têm a sua própria cara, a sua maneira. Ou seja uma revista que falassem das pessoas que resistem. Aí o cara fez e o disco saiu encartado no primeiro número desta revista. O cara leva o disco e ainda leva a revista que fala sobre a obra do artista e outras coisas mais. É o melhor release que o artista pode ter é uma revista dessas aí. Fala da minha carreira toda dentro da revista, analisa as letras, analisa as músicas, então não tem pirata que consiga copiar isso. Me convidaram inclusive para ser o ‘diretor artístico’ da revista, mas eu não quis ser porque eu nunca convivi bem com diretores artísticos, não conseguiria me entender, seria muito problemática para mim. Mas a revista se propõe, segundo eles, a lançar novos artistas e colocar artistas que sigam esta linha da atitude, da independência.’’

Pirataria versus cidadania

   ‘‘É preciso ter uma conscientização com relação a essa coisa da pirataria. É claro que o preço é em conta. Mas tem que as pessoas que compram um CD pirata tem que ter a consciência que elas estão comprando um produto roubado, tá certo! A profissão do artista parece que não é tão sagrada quanto as outras profissões. Vamos dizer uma coisa: vamos dizer que alguém te roubassem o teu carro. Será que essas pessoas que compram CD pirata comprariam o teu carro roubado? No fundo é um roubo onde participam quem produz, quem vende e quem compra. Aí se esconde também a história de que a indústria está vendendo o CD muito caro. Eu procuro fazer o CD mais barato e faço. Só a distribuição que é feita é pago 45% para isso chegar em todo o Brasil. Você paga impostos, o artista paga imposto. Os artistas que são sérios pagam imposto e imposto é um dos lados da cidadania. E a cidadania é uma questão onde você tem direitos e tem obrigações. No Brasil, é preciso a gente cumprir com as nossas obrigações para que tenha, em contrapartida do Estado, as obrigações que eles têm conosco. É claro que, se eu pago direitinho as coisas, eu tenho o direito de reclamar. Agora quem não paga, não tem esse direito. Muitas vezes, as pessoas se dizem injustiçadas no seu trabalho e são, mas não assinam a carteira da empregada doméstica. Quando é vantagem para ele, tudo certo, temos que ter a lei. E quando é para cumprir as leias, as obrigações para com os outros, eles não cumprem.’’

Tempo de mudança

   ‘‘Então, eu acho que o Brasil está passando por uma época de mudanças reais. Aliás, eu votei em Ciro no primeiro turno e Lula no segundo. O Brasil precisa fazer uma mudança no direcionamente de sua economia, isso está claro, evidente. Precisa a globalização, o que é que é bom e o que não serve. Tem que promover uma discussão muito séria a cerca da cultura brasileira. E quando eu falo na cultura brasileira não é só a música. É pensar no homem brasileiro, na anima (alma) brasileira. Quem nós somos? Que nação é essa? Qual é o nosso modo real de se expressar? Qual é a nossa música? Mesmo porque nós recebemos uma influência, na verdade, um massacre. Se eu fosse ministro da cultura, eu agiria de outra maneira, diferente dos outros ministros da cultura até hoje. Ou seja, o Brasil é um país massacrado por um comportamento, e isso é cultura, pela música, pelo cinema. Nós estamos perdendo o nosso jeito de ser, a nossa identidade.’’

Pela música brasileira

   ‘‘Ninguém sabe o que é a música brasileira. E eu sei. Música brasileira é aquela que só tem aqui. Mas quero explicar: você pode fazer mil e uma música, e tudo bem, faça o que você quiser, mas a música brasileira que eu conheço é baião, xaxado, maracatu, frevo, samba e todas aquelas músicas que só existem aqui. Porque se você chega no Japão, não existe samba lá, o cara pode até fazer uma música influenciado pelo samba brasileiro, ou pode mostrar um rock que é uma coisa americana ou inglesa que se faz no mundo e não é proibido. Blues, por exemplo, é uma música americana. Eu faço blues também, mas eu faço blues sabendo que estou fazendo uma música de origem americana. Dentro desta discussão, eu não proponho que só se ouça no Brasil esta música brasileira, genuína. Eu acho sim que esta música brasileira também tem que ser ouvida. Claro que se pode ouvir rock, pop, mas esta música brasileira tem que ser priorizada porque ela é nossa. Mesmo que não seja priorizada, que se mostra ela também. Um dia desses eu fui numa rádio que se denominava jovem e na rádio jovem não toca música brasileira! Que país é este? (...) Em contrapartida, a música brasileira entra nos Estados Unidos? Não. A música indiana entra nos Estados Unidos? Não. Os Estados Unidos fazem uma barreira cultural e colocam lá ‘world-music’, nós somos o resto!’’

(© NoOlhar.com.br)


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