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A Serra de Santana se cobriu de flor

05-06-2008

Evilázio Bezerra 22/3/95

Patativa do Assaré

Patativa viu, com seu olho só, muita seca e precisão mas também tanta fartura boa, lá no seu amado pé de serra, em 93 anos de vida. Na última sexta-feira, o poeta fez aniversário. Para celebrar a data, fomos atrás de sua presença nos subúrbios de Fortaleza, de como anda a edição de sua obra, e de sua história - contada plena de emoção por quem com ele conviveu, o cantador Geraldo Amâncio

Eleuda de Carvalho
da Redação

   As jitiranas se enlinham nos tocos revividos pelas águas, por toda a Serra de Santana e o Assaré. Melhor, tudo que é flor e árvore e planta rasteira e rama festeja a bondade deste inverno. No aconchego dos galhos, o concriz armou seu ninho, a fogo-pagô se arranchou, cantam o cancão e o galo de campina, tudo que é espécie de ave festeja plumas moças. De alma nova estão os demais bichos, que andam ou se arrastam, um lagarto verde-verde, um tatu-peba, a cascavel, o mocó. A natureza, livro onde Patativa leu o mundo, se embandeira de alegria.

   Ao lado de sua Belinha, companheira de toda a vida, aposto que Patativa espia bem feliz o inverno deste ano. Quando fez sua viagem, em 8 de julho de 2002, era só secura nesta terra. Nosso poeta, tenho certeza, também se aperreia com o desmantelo da chuvarada, que aflige as gentes miudinhas, seus cuidados e bem-querer. Mas quem é das brenhas sente no tambor grave do peito o ribombo da felicidade, a cada ronco do trovão. Pois, meu poetinha, este sertão florido e abençoado tira o luto para celebrar os seus 95 anos.

   Era, tal como agora, uma sexta-feira, o dia 5 de março de 1909, quando um meninozinho quebrou a casca do ovo e viu, ainda com dois olhos que enxergavam, aquele mundéu de prata da lua cheia, no alto da Serra de Santana. Antônio Gonçalves da Silva veio ao mundo para ser mais duas mãos, a tirar da terra pouca o pão e o sonho. Sem nunca deixar a roça, o destino lhe traçara outros planos. Rapazinho, e já arranhando a voz e a violinha no terreiro dos vizinhos, foi a convite de um parente para Belém do Pará. Foi lá que ganhou o apelido com o qual faria fama. Na volta, passou por Fortaleza, cantou na casa de Juvenal Galeno, tornou à terra natal. Casou, sustentou na enxada mais do que de poesia os seus meninos, nove ao todo, dos quais sete escaparam: Geraldo Gonçalves, agricultor, o mais velho, Afonso e Pedro, carpinteiros. João, que mora em São Paulo, e as meninas Inês, Lúcia e Miriam.

   Do Assaré, ganhou o mundo. Sua poesia conquistou o povo do sertão e da cidade, seduziu pesquisadores, incomodou autoridades, sacudiu a inércia, revelou a nudeza dos reis, cutucou com vara curta a fera da desigualdade. Também teceu loas de bem-querer, cantou cantigas de amor. Em entrevista ao repórter Felipe Araújo, março de 97, Patativa deu a chave para compreendê-lo, sua vida, sua obra, seu mister: ''- Posso chamar o senhor de professor? - Que professor que nada! Sou apenas um caboclo que tem uma visão assim um pouco penetrante''. Um beijo, Patativa. Inté para o ano, se Deus quiser.


CRONOLOGIA

1909 - Nasce dia 5 de março, na Serra de Santana, a 18 km de Assaré, filho dos pequenos proprietários rurais Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva.

1917 - Morte do pai, a 28 de março. A pequena propriedade da família, na Serra de Santana é dividida entre os filhos José, Antonio, Joaquim, Pedro, Maria e Mercês.

1921 - Alfabetizado por meio do livro de Felisberto de Carvalho. Mas não chega a passar mais de seis meses na escola.

1922 - Começa a fazer ''versinhos que serviam de graça para os serranos.''

1925 - Passa a se apresentar nos sítios e festas da região.

1928 - Viagem a Belém do Pará, onde ganha de José Carvalho de Brito, jornalista e advogado do Crato, o apelido de Patativa.

1929 - De volta ao Ceará, visita a Casa de Juvenal Galeno, onde se apresenta em noite festiva e conhece o poeta das Lendas e Canções Populares.

1936 - Casa-se, dia 6 de janeiro, com Belarmina Paes Cidrão, a dona Belinha.

1955 - Conhece José Arraes de Alencar, que passa a transcrever seus poemas por meio de Moacir Mota, filho de Leonardo Mota.

1956 - Publicação de Inspiração Nordestina, pela editora Borsoi Editor, do Rio de Janeiro.

1964 - Luiz Gonzaga grava ''A Triste Partida''.

1970 - Publicação de Patativa do Assaré - Novos Poemas Comentados, de J. de Figueiredo Filho.

1978 - Lançado Cante lá que eu canto cá, com o selo da Editora Vozes.

1979 - Passa a residir em Assaré, à rua Coronel Pedro Onofre nº 27, Praça da Matriz.
- em março é um dos convidados da Massafeira Livre, evento cultural que reuniu artistas cearenses. Em julho, participa da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, na Universidade Federal do Ceará.
- grava primeiro disco, Poemas e Canções, com produção de Raimundo Fagner e lançado nacionalmente pela gravadora CBS. Dois anos depois viria o segundo, A Terra é Naturá.

1984 - Participa da campanha pelas ''Diretas-Já'' e sobe ao palanque, em Fortaleza, para dizer poemas, ao lado de lideranças políticas nacionais.

1987 - Recebe a Medalha da Abolição, pelos ''relevantes serviços prestados ao Estado.''

1988 - Publica o livro Ispinho e Fulô, pela Imprensa Oficial do Ceará.

1989 - Doutor Honoris Causa da Universidade Regional do Cariri - URCA
- Lança o disco Canto Nordestino.

1990 - Lançamento do disco Patativa do Assaré- 80 Anos de Luz, com apoio da Prefeitura Municipal de Assaré, Urca, Secretaria da Cultura do Estado e Associação dos Artistas e Amigos da Arte, de Juazeiro do Norte.

1991 - Lança o livro Balceiro, organizado por ele e por Geraldo Gonçalves, que reúne parte da produção dos poetas de Assaré, publicado pela Secretaria da Cultura do Estado/ IOCE.

1994 - Lança o livro Aqui tem coisa, na I Feira Brasileira do Livro de Fortaleza.
- Morte de Dona Belinha, dia 15 de maio.

1999 - Festa de aniversário de 90 anos, com a inauguração do Memorial Patativa do Assaré, também na Praça da Matriz de Assaré.

2000 - Lançamento, em maio, dos livros Patativa do Assaré, de Gilmar de Carvalho (Fundação Demócrito Rocha) e Patativa do Assaré, de Sylvie Debs (Editora Hedra), no Sindicato dos Jornalistas, em Fortaleza.

2002 - Falece no dia 8 de julho.

(© NoOlhar.com.br)


O pássaro em discos e livros

Antes mesmo do último vôo, a obra de Patativa do Assaré vinha sendo objeto de reedições e estudos. Após sua morte, sua poesia brotou para além das fronteiras sertanejas

Felipe Araújo
da Redação

   Mesmo depois de sua morte, Patativa do Assaré continuou na berlinda. Em menos de dois anos, sua obra foi o centro de uma considerável empolgação entre o mercado editorial e também pautou alguns lançamentos no mercado fonográfico. No final de 2002, por exemplo, a Fundação Demócrito Rocha reeditou em CD os discos Poemas e Canções (1979) e A terra é naturá (1981), até então só disponíveis em LP - e já esgotados. No ano passado, foi a vez da Caixa Patativa, produzida pela Caixa Econômica Federal, que, além de um livro de poemas, reuniu dois CDs contemplando parte do repertório do (e sobre o) poeta.

   Também em 2003, foi lançado o livro Patativa do Assaré - a trajetória de um canto (editora Escrituras), resultado da tese de doutorado defendida pelo professor Luiz Tadeu Feitosa, da UFC. Ainda com relação ao mercado editorial, a corrida foi tal que levou as editoras Hedra, de São Paulo, e Objetiva, do Rio de Janeiro, a disputarem judicialmente os direitos sobre um texto de Patativa. Em 1999, a Hedra assinou um contrato com a família de Patativa para a inclusão de cinco textos do poeta num dos volumes da coleção Biblioteca do Cordel. Entre esses cordéis, estava A história de Aladim e a lâmpada maravilhosa, que foi editado pela Objetiva em 2002 e com o qual a editora venceu uma licitação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

   Depois de ser informada pela Hedra de que teria utilizado uma obra cujos direitos não lhe pertenciam, a Objetiva conseguiu uma tutela antecipada na justiça carioca que lhe garantiu a distribuição do livro para todo o País. Na época, o FNDE depositou em juízo R$ 332.055,36, valor referente aos 527.072 exemplares distribuídos pela Objetiva. A Hedra recorreu da decisão e, depois de algumas indas e vindas junto à Justiça carioca, acabou chegando a um acordo com a Objetiva, que lhe pagou uma multa cujo valor a direção da editora prefere não revelar.

   ''Aquela nossa edição não chegou a ser comercializada. Ela foi uma edição específica para o governo. Hoje, está tudo resolvido com a Hedra, que é quem detém os direitos sobre grande parte da obra do Patativa'', explica a assesoria de imprensa da editora Objetiva. ''Foi uma multa significativa. Mas o que importa é que no final deu tudo certo, foi uma negociação tranqüila e nós chegamos a um acordo junto à Objetiva'', explica Jorge Luiz Fahur Sallum, diretor da Hedra, que no início deste ano, relançou Inspiração Nordestina (1956), primeira compilação da obra de Patativa e que há muito estava fora de catálogo.

   O livro faz parte da coleção Literatura Popular, que também vai publicar outros dois títulos de Patativa: Aqui tem Coisa e Ispinho e Fulô. De acordo com Jorge, o primeiro sai ainda neste semestre e o segundo tem previsão de lançamento para o mês de agosto. Os livros saem em formato de bolso e com uma tiragem de 3 mil exemplares, cada um. Essa projeção, segundo Jorge, foi feita a partir do sucesso de vendas do volume sobre Patativa incluído na coleção Biblioteca de Cordel. Dos 55 mil exemplares vendidos pela coleção, só o livro de Patativa vendeu 20 mil.

   ''Uns cinco anos antes de morrer, Patativa começou a ter uma grande projeção no sul do País. Mas ainda é um poeta pouco lido apesar de ser muito conhecido, talvez pelo fato de seus livros estarem fora de catálogo há muito tempo. Acho que o sucesso que o livro dele na Biblioteca do Cordel alcançou começou a mudar um pouco isso'', explica Jorge. ''São livros importantes dentro da obra do Patativa e estavam esgotados há vários anos. É importante colocar novamente o nome de Patativa num catálogo nacional'', reforça o professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, autor de diversos trabalhos sobre o poeta. Entre eles, Patativa Pássaro Liberto, publicado logo após a morte do poeta, em 2002.

   Segundo Gilmar, o Museu do Ceará conseguiu os direitos de publicação do livro Patativa do Assaré: novos poemas comentados, um dos principais títulos dentro da obra do farmacêutico e pesquisador J. de Figueiredo Filho, que recolheu poemas recitados pelo próprio Patativa e comentou suas criações. O livro, lançado originalmente em 1970, deverá ser relançado no dia 14 de julho, data do centenário de J. de Figueiredo.


SERVIÇO

Inspiração Nordestina
- poesias de Patativa do Assaré. Editora Hedra, 354 páginas. R$ 21,00.

Caixa Patativa - álbum com dois CDs e um livro de poemas de (e sobre) Patativa do Assaré. A caixa custa R$ 30,00 e pode ser adquirida na Equatorial Produções (253.7749).

Patativa, Pássaro liberto - de Gilmar de Carvalho. Coleção Outras Histórias, Museu do Ceará. R$ 5,00.

Patativa do Assaré - a trajetória de um canto - de Tadeu Feitosa. Editora Escrituras, 315 páginas. R$ 17,00.

Patativa do Assaré - de Sylvie Debs (organizadora). Coleção Biblioteca do Cordel, Editora Hedra. R$ 21,00.

(© NoOlhar.com.br)


Os arranchados e o nome da rua

Patativa do Assaré dá nome a uma rua simples, nos cafundós de Fortaleza. A homenagem veio dos próprios moradores, que batizaram a via há mais de 30 anos

''Sou apenas um poeta do povo e um agricultor pobre'' (Patativa do Assaré)

   Na divisa entre Fortaleza e o município de Maracanaú, na periferia da periferia da cidade, existe uma rua - simples, como tantas outras do subúrbio, mas com um diferencial. Ao invés de algum ilustre desconhecido dos moradores, o nome foi escolha dos que primeiro ergueram suas casas por ali, entre o areal e as carnaúbas do Parque São João. A rua se chama Patativa do Assaré.

   Um dos primeiros habitantes do lugar foi seu Luís Santos do Nascimento, 51. ''Cheguei aqui em 1975, vim de Caucaia. Aqui toda vida foi Patativa do Assaré, aquele homem que gostava de dizer poesias. Foi nós que botemo este nome. A rua era só areia. Patativa sabia demais, sabia de muita coisa. Me lembro duma poesia dele... Não sei de nada! Ele falava muito, o Patativa do Assaré. A senhora sabia que não existe 'passo' mais cantador que a patativa?''.

   No mesmo quarteirão mora seu Benedito Tabosa da Silva, 64 anos, também natural de Caucaia. Reside na rua Patativa do Assaré há 14 anos. ''Já tinha este nome, quando cheguei'', diz ele. Sobre o poeta, seu Benedito só sabe o que ouviu, cantado pela voz do Rei do Baião: ''As musgas do Luiz Gonzaga. Só sei que foi um grande poeta, assisti ele pela televisão''.

   Do outro lado da rua, uma casa de esquina, muro alto, com a placa indicativa do logradouro. A única, em todo o trecho visitado. O dono da casa é Antônio Pinto de Morais, 54. Natural de Quixeramobim, o xará de Patativa veio do sertão com 17 anos, pra trabalhar na capital. ''Quando cheguei aqui, há uns dez anos, o pessoal já chamava esta rua de Patativa do Assaré, mas não tinha indicação, uma placa. A rua não era batizada, né? Quem zela esta placa é eu mesmo, ninguém bole nela. Até vou fazer um retoque, aqui, onde a tinta descascou'', fala, apontando uma falha que só o olho zeloso enxerga.

   ''Conheci Patativa pelo Cariri, no Crato, também em Iguatu e Quixeramobim. Eu era garoto novo, vi ele numa palestra. Patativa é a nossa cultura brasileira, apesar de não sermos reconhecidos. Ele era um poeta importante. Até morrer, ele preveniu o nome do Brasil, Patativa deu origem ao Nordeste. Ele foi o homem que mais compôs poesia, no mundo inteiro. Os outros países reconheciam ele como grande poeta'', diz seu Antônio, ao lado do filho caçula, Rafael.

   Depois do Zé Walter, após o Palmeiras, pra lá do São Cristóvão. Num lugar ermo do Sítio São João, uma enorme placa da prefeitura anuncia para breve o conjunto Patativa do Assaré, e promete drenagem, pavimentação, escola... Por enquanto, este cercado tomado de mato ralo por trás da propaganda municipal é um acampamento de lona negra, paredes de papelão e lata. O conjunto, ao fundo do arruado sem jeito, é ainda uma construção em tijolos crus, com mero meio metro. O nome do conjunto foi uma sugestão do secretário Maurílio Banhos, da Regional VI. ''Mas a gente apoiou'', diz Fátima, conhecida por Reneuda, 37 anos, três filhos. Ela faz parte de uma das 184 famílias que, há dois anos, vieram do Ancuri, Dias Macedo e Barroso, atrás do sonho da moradia. Por enquanto, vivem um pesadelo cotidiano em suas casas feitas de precisão e fé.

   As obras do futuro conjunto Patativa do Assaré começaram em 15 de novembro passado. ''Prometeram entregar as primeiras 45 casas antes do dia 25 de janeiro, e até agora nada. Estamos aqui no meio dos esquecidos'', queixa-se Reneuda. Porém, emenda, em seguida: ''Mas foi até rápido, à vista de outros conjuntos. Tem gente esperando há oito anos, nós estamos há dois e já conseguimos o terreno, as casas estão começadas. Foi uma luta boa''.

   O ar tristonho de Reneuda é por causa de mais uma morte por bala, no acampamento. Ela lembra que a maioria dos moradores é de mães solteiras, que sustentam a família, e ali elas não têm uma creche sequer. O jeito, é o jeitinho do povo: quem fica zelando os teréns toma conta dos meninos pequenos. Ao lado da casa de Reneuda, uma casinha de porta fechada. A vigiar a morada, um cachorrinho magrelo, amarrado numa coleira de corda, sobre um jirau.

   ''Não há escola de segundo grau, aqui perto. Quando foi antes das eleições, botaram até uma placa pra construção de um liceu, nesses terrenos. Passou a eleição, até a placa arrancaram'', aponta Reneuda. Que pensa adiante: ''Meu sonho é fazer uma biblioteca. Por meu gosto de leitura, hoje posso dizer que não sou mais analfabeta. Gosto muito de Rachel de Queiroz, adoro mesmo. E de poesias. De Patativa, lembro dos versos de Adeus, Rosinha''. Reneuda procura também forma de ocupar o tempo ocioso dos jovens da comunidade. ''O que a gente precisa aqui é de trabalho voluntário, sabe, pra que mãe nenhuma passe mais pela dor de perder seus filhos. Aqui já morreu muita gente, de bala perdida, até criança. Os adultos, a gente já não pode mudar mais''.

   O futuro conjunto também tem um poeta, seu Cláudio, ausente àquela manhã. ''Ele está fazendo uma poesia pra nós, contando nossa história do começo da luta até aqui. Ele cria da imaginação dele. A minha mãe deu a idéia do vô passar o conhecimento que ele tem, de fazer poesia, para os jovens'', diz a neta, Gardênia. A moça, de 16 anos, é uma exceção na comunidade, formada na maior parte por mães adolescentes. Gardênia está cursando a sexta-série.

   Dona Francisca, avó de Gardênia, veio morar aqui para tomar conta de outra netinha, nascida há oito meses. ''Uma vez, na rua, peguei um livrim assim. O rapaz que me vendeu dixe, este livro é do Patativa do Assaré, ele é um homem histórico. Eu morava com outro filho meu, em Maracanaú, não sei o que ele fez do meu livro. O Patativa do Assaré era um grande homem''.

   Como se vê, o poeta permanece na memória do povo cearense. Lembranças de uma figura emblemática, carregada de sensibilidade e de resistência às adversidades da vida. Feito o pássaro típico do sertão nordestino, Patativa cantava versos que traduziam a perseverança do povo na luta pela sobrevivência. Tão áspera no sertão quanto na cidade. (Eleuda de Carvalho. Colaborou Camila Vieira)

(© NoOlhar.com.br)


Mina d'água de saudade

Érika Nunes

Geraldo Amâncio

O cantador Geraldo Amâncio conviveu, por bem 40 anos, com Patativa do Assaré. Juntos, o violeiro mais jovem e o velho poeta rodaram léguas, partilhando o dom divino da arte e o compromisso com o povo do sertão

''Foi o número um, foi invencível
parecendo com ele não há nada
sua xerox não pode ser tirada
não existe poeta do seu nível
construir sua cópia é impossível
do seu clone não há cogitação
se for pelo Autor da criação
outro Antônio Gonçalves não se cria
Patativa foi tudo que a poesia
precisou pra chegar à perfeição''
(Geraldo Amâncio)

   ''Ah, minha filha, poeta não diz à mulher onde é que vai não, muito menos quando volta'', responde, com uma risada feliz, a esposa do cantador Geraldo Amâncio. Desde 1969 casada com o artista, dona Helenilce bem conhece o ritmo elétrico do marido, há 40 anos tocando a vida nas cordas da viola e no verso fugaz dos improvisos. Em meio à organização de uma festiva noite de cantoria, para o próximo abril, e convites para cantar neste mundão de Deus, sertão afora, Geraldo conversou com o Vida & Arte numa manhã plena de chuva, véspera do aniversário de Patativa do Assaré. Falar de Patativa fez o cantador nascido em Lavras da Mangabeira marejar o azul dos olhos, a contragosto. Mas a sonora gaitada das lembranças do vivido suavizam a saudade, tal arco-íris no céu.

   ''No dia 18 de fevereiro de 1964, eu saí de casa com a viola e nunca mais voltei pra roça'', recorda Geraldo Amâncio, da família dos Pereira. Quando se decidiu pela arte, a cantoria já não era apenas um evento nas casas sertanejas, ao pé da parede (embora, até hoje, algumas ainda aconteçam assim). Os violeiros começavam a seduzir o público urbano. ''Àquela época, a melhor janela pra se aparecer, a melhor vitrine, era o rádio'', recorda Amâncio que, depois, levou o repente pra tevê. Pois, foi num programa de rádio em Juazeiro que a amizade com o autor de Cante lá que eu canto cá ganhou sustância.

   Nesta prosa, o cantador recorda o poeta de Assaré, sua simpática ranzinice, a perna tesa desde o atropelamento na década de 70, o incansável afã da rima, que não o deixou sossegar nem na hora derradeira. Zelo, carinho e muito bem querer entremearam a história. Ao final, Geraldo Amâncio diz de si, mas é também de Patativa que ele fala: ''Deus me deu esta luz da cantoria, de onde sobrevivo, há quarenta anos. E devo tudo ao povo, de onde venho e para quem eu canto''. (Eleuda de Carvalho)


O POVO - Quando foi a primeira vez que você viu o Patativa do Assaré?
Geraldo Amâncio - Em 65 ou 66, fiz minha primeira viagem em busca do Cariri, fui com o poeta João Bandeira pra Assaré. Aí tive a oportunidade de conhecer o Patativa. Ele foi assistir minha cantoria, eu assim meio tímido. Patativa, de vez em quando, vinha a uma cantoria nossa, eu cantando com Pedro Bandeira.

OP - Mas o Patativa só recitava, não é? Ele cantou à viola só no comecinho da carreira, segundo contam os estudiosos.
GA - Quero desmistificar essa coisa. Patativa participava sempre, não como profissional, mas cantava um baiãozim, dois, comigo, com Pedro. E era uma festa. Fui morar em Juazeiro em 69, e coincidia de a gente ir cantar em Assaré, Patativa ia com a gente e recitava durante a estrada toda. Fomos amiudando a amizade. No começo dos anos 70, surge a rádio Vale do Cariri e nós montamos um programa e ele também. O meu era diário, o dele uma vez por semana. Às quintas-feiras, pela manhã, ele gravava o programa, que ia ao ar no domingo. E Patativa acostumou-se a vir pra minha casa. Toda quinta, religiosamente, ele almoçava comigo. Patativa sempre teve um carinho muito grande pelos meus filhos, principalmente pela minha filha Geslie. Outro dia, andei na casa dela. Ela preservou muito mais as coisas do Patativa do que eu. Ele sempre me escrevia um verso, pedindo resposta, fiquei devendo. A gente, quando quer bem às pessoas... Pensei que meu avô não morria nunca, que Patativa não morresse nunca. Lembro que a primeira vez que ele chegou lá em casa, já tinha colocado aquele negócio nas pernas, andava bem durinho. Minha filha, pequenininha ainda, chamou assim: - Papai, vem olhar que velhim faceiro vem chegando aqui! Era o Patativa.

OP - Ele fumava?
GA - Nessa época é que ele fumava mesmo! Pronto, ficou essa amizade muito sólida. Daí começaram as viagens minhas, sempre levando Patativa a Olinda, ao Recife, a Arcoverde, várias vezes, a Petrolina, onde ele fez uma coisa interessante: o casamento de Petrolina com Juazeiro da Bahia, você conhece? Pois é, uma poesia que num sei quem tem, meu Deus, uma coisa bela. São cidades assim como Juazeiro do Norte e Crato, têm um pouco de rixa, e isso ele quebrou, até nisso ele era fantástico. Patativa marcou demais a minha vida.

OP - Os poetas populares têm assim uma espécie de irmandade, não é?
GA - Ela é universal, é um cordão umbilical. Por exemplo, tive uma grande influência pra começar a cantar, primeiro, uma influência de casa. Acho que tive este dom hereditário, meu avô foi cantador, um tio paterno me incentivou muito. Depois, apareceu lá em casa um cantador chamado Zé Moacir, foi ele quem me ensinou que Ceará não rimava com cantar, que mulher não rima com café, que você não rima com prazer. No começo, eu imitava o Pedro Bandeira. Quer dizer, tudo isso cada um deve a cada um, todos precisam de todos, isso é real.

OP - Vocês, poetas do cordel ou da viola, têm um zelo muito grande pela feitura do verso, a perfeição da rima, como se vê nos sonetos de Patativa.
GA - Além do dom incomparável, Patativa teve oportunidade de ler a métrica. A métrica do cantador é cantante, se sobrar uma sílaba, o verso não cabe na boca do cantador. Não pode passar nem diminuir, porque é um desastre, é como se quebrasse uma corda em que você está se segurando. A métrica conta muito para o nosso trabalho, eis porque Patativa fazia sonetos impecáveis. Quando o verso é perfeito, chega à alma do povo, esta é que é a verdade. E o cantador se preocupa muito com isso, com a receptividade. É o interagir, de que falam tanto hoje.

OP - Durante as viagens, como era conviver com o Patativa, mais velho que você? Ele era muito engraçado, meio ranzinza, como é que ele era?
GA - Eu tinha um cuidado, com aquele um pouco de deficiência física que ele tinha, a história da perna que ele quebrou. Sempre que ia descer de um ônibus, eu tava ali perto pra ele não cair, ele dizia assim: - Não precisa segurar! Se eu não tivesse por perto, ele dizia: - cadê você, que não me ajuda? Tinha esses lances, o Patativa... O Paulo Plutarco, amigo nosso, faltando uns seis meses pro Patativa morrer, esteve em Assaré. Disse assim, conhece Geraldo Amâncio?, ele disse: - Cadê aquele cachorro, que me abandonou?, isso dito com muito carinho. Eu queria bem demais ao Patativa, e a gente só sabe do bem depois que perde, né, isso é real. Pronto, sempre que falo disso, começo a querer a chorar. Eu choro sem gostar de chorar.

OP - Você esteve recentemente em Assaré, me conte como está o sertão.
GA - Tá lindo, o quadro mais belo. Vi isso quando eu era criança, o verde, as lagoas cheias, a estrada cheia de atoleiro, a natureza se manifestando. Esse quadro foi que fez de Patativa o poeta maior, a escola de Patativa foi esse sertão, essa chuva, o inverno, a fartura, não foi só a seca.

OP - Bom, nessas viagens de poesia e poetas, rolava uma cachacinha, não?
GA - Patativa bebeu um pouco na vida como eu bebi muito. Certa feita, a gente estava numa churrascaria entre o Juazeiro e o Crato, a Casa de Noca, de um amigo nosso chamado José Tavares Noca. Ele falou assim: - Poeta, eu tinha vontade que você me desse um presente. - Diga, Patativa. - Você vai muito ao Pajeú e eu tinha muita vontade de conhecer Cancão, de São José do Egito, porque já cantei com Lourival Batista do Pajeú, em 62, lá no Recife, para o governador Miguel Arraes, meu parente, de quem ganhei uma viola. Isso, Patativa me falando no começo dos anos 80. Aí fomos, inclusive dona Helenilce também foi. Ficamos no prego. Ficou na estrada Patativa, minha mulher, minha sogra, meus meninos e uns sobrinhos. Nós botamos numa brasília dez pessoas, estourou o motor. Em Arcoverde deixamos o carro, fomos de ônibus, passamos fome. Quando terminamos de comprar as passagens, só deu pra comprar pão. Mas, voltando. Cancão era outro fenômeno, deixou um trabalho belo, falando desse sertão. Foram três dias de muita alegria, muito encontro, muita poesia. O Patativa de novo canta com a gente, num clube lá de São José do Egito, cantou comigo, cantou com Lourival, isso nos anos 80, certo? Lá em Assaré, tinha um cantador por nome João Alexandre Sobrinho, que foi convidado pelo Patativa nos anos 50 pra morar na Serra de Santana pra fazer parceria com ele nas cantorias em farinhadas, casamentos, batizados, renovação, tarará-tarará.

OP - Sim, e como foi este encontro com Cancão, lá no sertão do Pajeú?
GA - Cancão, que coisa linda. Você sabe que este povo genial é muito descuidado. Chegamos na casa de Cancão e ele armou uma rede com o fundo arrastando no chão. Cancão não via que a rede tava mal armada, num sabe? Eu deixei também, só pra ver. Ele dizia assim, deita, Patativa! Como você sabe, a Patativa faltava um olho, ele olhava assim de banda, só dizia, não... E ele, deite, home! Foi quando a senhora de Cancão chegou, disse, meu fi, a rede tá arrastando no chão, por isso ele não se deita. Mas a passagem sentimental que me marcou muito foi que, depois de três dias de muita cantoria, de muita alegria, recital, história - um momento daquele era pra ter sido registrado, gravado, filmado, eternizado. Na volta, minha filha, que tinha uns seis, sete anos, disse assim, ô, Patativa, canta a ''Triste Partida''! E ele começou a cantar, eu dirigindo, ele encostado de mim. E eu imaginando que aquela cena nunca mais ia se repetir. Nunca mais ia ver minha filha menina nem Patativa cantando na estrada entre Serra Talhada e São José do Egito.

OP - Você é uma das pessoas que mais deve ter ouvido o Patativa cantar e recitar, por conta dessas viagens, não?
GA - Acho que fui eu quem mais ouviu a sonoridade da voz de Patativa, acho que fui eu quem ouviu, pela primeira vez, ele aboiando ''eeeeeê, vaca Estrela'', nessas viagens aí, sem nei se Patativa conhecia o Fagner nesse tempo. O que Patativa menos cantava era a ''Triste Partida''. Luiz Gonzaga, que também conheci, assistindo o programa Retalhos do Sertão, na rádio Borborema de Campina Grande, ouviu um cantador chamado Zé Gonçalves, uma voz bela, diferente até: ''Setembro passou/ com outubro e novembro...''. Ele ouviu, disse, de quem é esta coisa tão bela? - De Patativa do Assaré. Ligou pra rádio Educadora do Crato, localizaram o Patativa. João Alexandre se diz autor da música de ''Triste Partida'', Patativa nunca disse sim nem não. Eu cheguei a perguntar, ele disse, escrevi isso aí, em 56, 57. Certo é que coincidiu com 58. Foi a primeira seca que vi e sofri essa seca, fui cassaco de rodagem durante o ano de 1958 todo, trabalhei em estrada. Acho que desde aí é que vinha a vontade de conhecer o Patativa... Querem, por fina força, que ''Asa Branca'' fosse a música que mais Luiz gostava, ele sempre assumiu muito isso: - O que eu gosto mesmo é de ''Triste Partida''. Isso aí eu ouvi de Luiz Gonzaga, em show lá em Barbalha.

OP - Como é que foi a participação de vocês em Renascer, em 92, acho?
GA - Eu tava em casa, me ligam. - Geraldo Amâncio, aqui é da Rede Globo de televisão. Pensei que era um trote. - Me disseram que você tem o contato de Patativa. Estamos querendo trazê-lo pra que ele faça parte da novela Renascer, que está sendo gravada em Ilhéus, porque o (ator) Jackson Antunes é muito fã dele, e tal. Eu disse. Depois, pensei, Patativa vai dizer de cara que não vai. Deu uns seis minutos, eu ligo pro Patativa. - Patativa, alguém da Rede Globo ligou? - Ligou. - Vai? - Vou não. - Ofereceram cachê? - Não. - Você pediu? - Não. - Se tiver cachê, você vai? - Cê vai comigo? Digo, vou. Olhe, eu disse, vou pedir passagem aérea e xis. Coisinha, na época, mil reais. Liguei aqui pro canal 10, que intermediou, falei com o povo lá. Eu disse, olhe, ele é um artista, um nome nacional, mas é um pai de família, precisa e tal. O certo é que ajeitaram o cachê, vieram as passagens. Ele foi pra cantar ''Triste Partida''. No dia da gravação, o quadro era um nordestino saindo de São Paulo. Veja como o Patativa era um privilegiado de Deus: ele lembrou que ''Triste Partida'' não cabia muito ali. Ele fez o oposto, que era o Damião, papel do Jackson, que vinha embora. Precisou que alguém acompanhasse, me puseram um chapéu, a gente fez este papel. Ficamos dois, três dias no hotel, uma jornalista perguntou assim, Patativa, você tem medo de quê? Ele deu uma resposta que achei muito sábia: - Tenho medo de dor. Nunca esqueci disso e aprendi a ter medo também, de dor. A dor física, a dor moral, a dor de todas as formas.

OP - Entrevistei Patativa algumas vezes, tive esta sorte, e ele sempre dizia seus versos, recitava seus poemas. Quando começava, não queria parar mais.
GA - Além de ter uma produção enorme e bela, Patativa era inesgotável. Nós íamos numa dessas viagens a Recife, Olinda. Sempre que eu entrava no ônibus, eu apresentava, ó pessoal, este é o poeta Patativa do Assaré, o maior poeta deste país, compositor de Luiz Gonzaga. E, nesse dia, eu não falei. Ele não andava calado, era fazendo uma toada, uma poesia, aboiando, recitando. Quando descemos, entre eu e ele iam duas senhoras meio idosas. E uma falou, apontando assim pra ele: - Eita, que esse velho não se aquieta, num deixa a gente dormir não, mulher! Ele não para não, é direto, resmungando num sei o quê. A outra falou assim, e inda é metido a poeta! Eu disse, ó, Patativa, tão dizendo que você é metido a poeta! Ele não disse nada, só riu.

Se fosse vivo teria 95 de idade
(Geraldo Amâncio)

Por mais que eu gaste saliva
faça o verso mais profundo
não sei dizer para o mundo
o valor de Patativa
Foi a voz mais expressiva
gritando por liberdade
Com sua capacidade
não há ninguém hoje em dia
Se fosse vivo teria
noventa e cinco de idade

Pediu por mais de uma vez
em tudo quanto é local
reforma agrária total
que o governo nunca fez
pra que todo camponês
tivesse prosperidade
Morreu com essa vontade
sem ver o que mais queria
Se fosse vivo teria
noventa e cinco de idade


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