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O sotaque francês dos marajoaras

Vicente do Rego Monteiro

Livros e exposições resgatam a arte amazonense em Paris e São Paulo

Norma Curi

   A Floresta Amazônica, com suas lendas, feitiços e os mistérios do mundo indígena, sempre povoou o imaginário mitológico da apoteótica Paris da Belle Époque. Um pintor, poeta, escultor e artista gráfico pernambucano, que estudou no Rio de Janeiro, ousou fazer a ponte entre o que o antropólogo Lévy-Strauss chamou de o cru (nós, o primitivo) e o cozido (eles, a civilização). Vicente do Rego Monteiro já morava na França quando mergulhou na estética marajoara do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista para fazer uma exposição no saguão do Trianon, na Av. Rio Branco, em 1921. No ano seguinte, a estrondosa Semana de 22 não deixaria pedra sobre pedra no mundo das artes. Rego Monteiro participou do Movimento Modernista com 10 quadros. Dois anos depois, editaria em Paris uma jóia bibliográfica que se perdeu no tempo, agora reeditada no Brasil.

   A Semana de 22 vai comemorar 85 anos em 2007, mas as homenagens ao marco zero da modernidade brasileira começam desde já com os livros de Rego Monteiro. Representam uma reflexão da brasilidade em confronto com as vanguardas européias. Os livros não nasceram à toa: em 1921, sete anos antes do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, Rego Monteiro desenhou o Antropófago, e ficou furioso por não ter sido reconhecido como o inventor do conceito de antropofagia.

   Os livros resgatados agora vêm em uma caixa, editados pela mesma Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, que lançou, há dois anos, o Caixa modernista. Chama-se Lendas, crenças e talismãs dos índios do Amazonas (Legendes, croyances et talismans des indiens de l'Amazone), em português e francês. Os exemplares utilizados para a reprodução estavam no espólio de Mario de Andrade e pertencem ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. O professor de literatura da USP Jorge Schwartz pesquisou vários exemplares, ou o que restou deles, para reconstituir com fidelidade as edições originais em formato fac-similar. Schwartz diz que muitas das lendas reproduzidas no livro renasceram em Macunaíma, de Mário de Andrade, cinco anos depois, em 1928.

   Como só é possível imaginar a reação dos franceses à visão do primitivo em 1923, a mesma caixa está sendo lançada em Paris esta semana junto com uma exposição na Maison de l'Amérique Latine, onde fica até 20 de fevereiro. Quem não puder conferir de perto como um francês reage ao se confrontar com o mundo selvagem, pode dar um pulo à Estação Pinacoteca em São Paulo, onde outra exposição sobre as lendas indígenas de Rego Monteiro fica em cartaz até 28 de fevereiro. Vale a pena, já que a última exposição do pintor no Brasil foi em 1993, no Masp. Mas o ideal mesmo é adquirir o livro-caixa, esta preciosidade do Modernismo brasileiro.

   As lendas remetem a macacos urradores reunidos em círculo, junto com aves noturnas, ao cair da noite, ouvindo-se ao longe o ladrido rouco da onça e o coaxar dos sapos entre chamados estranhos de ondulantes cobras-d'água. No fundo, a voz da floresta tropical, misturada aos mitos Caapora e Curupira e à Mãe Iaci, junto com o criador da Natureza, Coaraci, o Sol, com poderes para o bem e para o mal. Ali, o pajé cura a histeria contagiosa das indígenas e as tribos cobertas por máscaras celebram orgias, danças guerreiras ou religiosas, que sempre terminam em êxtase.

   Qualquer mulher que avistar a máscara de Jurupari deve ser morta pelo primeiro homem que a encontrar. A puberdade é festejada com flagelos da jovem nua que depois aprende a trançar cestos e escavar tubos para a mandioca. As línguas desse povo apresentam analogias com o grego: Tupã (deus) e Theós; oca (casa) e oikia, mira (povo) e myrias, tatá (fogo) e tadeô (queimar). A vitória dos Tupis sobre os Tapuias não duraria muito entre os pântanos, a vegetação e os canais do Amazonas: logo chegaram os portugueses.

   Todo mundo conhece a beleza da cestaria e da cerâmica marajoara, mas também como essa raça vencida foi dizimada e está desaparecendo, consumida pelo álcool, a pobreza e a civilização.

   Naquele momento, Vicente do Rego Monteiro salvaria com seus quadros e sua caixa a poesia, o sonho e o mistério do mundo. As lendas contam como nasceu a lua, a noite e o mar. Eternizam o encanto da origem do mundo e perpetuam a nossa raiz. Tudo o que sempre encantou outros estrangeiros, como o representante do governo francês no Rio de Janeiro entre 1917 e 1918, Paul Claudel. Ele veio acompanhado do secretário e compositor Darius Milhaud e, juntos, conheceram apenas a floresta da Tijuca, a Gávea e o cinturão verde que envolvia na época o Rio de Janeiro. Bastou para que Claudel compusesse o libreto Scénario de ballet para l'homme et son désir (O homem e seu desejo), em 1917, editado pela Gallimard em 1956, com música de Milhaud.

   Mas a caixa lançada agora não traz só as lendas. Rego Monteiro idealizou o diário imaginário de um velho chefe indígena passeando em Paris e quebrou assim o ranço do exótico que tanto agradava aos europeus. Se os indígenas eram vistos como excêntricos, os franceses pareciam muito estranhos aos olhos dos indígenas, uma paródia ilustrada com desenhos na melhor tradição dos viajantes reais, os turistas clássicos. Um art déco geométrico mesclado ao traço marajoara. O velho cacique amazonense perdido no Velho Mundo teria sido definido pelo poeta Haroldo de Campos como ''exogótico''. Índio viu a Notre Dame, a Torre Eyffel, o Trocadéro, o Viaduto D'Austerlitz, a Pont de Passy, a Igreja de Sacré-Coeur, Concorde, o Museu do Louvre, o Jardin dês Plantes, o Arco do Triunfo. Comentário sobre a Torre Eyffel: ''São os escombros da Torre de Babel''. E sobre o Trocadéro: ''Foi com o maior aperto no coração que vi meus ancestrais em posturas estranhas''. O título do livro que compõe a Caixa é Algumas vistas de Paris (Quelques visages de Paris).

   Dois anos antes de morrer, Rego Monteiro, com quase 70 anos, expressou numa carta enviada ao diretor do Masp, Pietro Maria Bardi, o desejo de ver essa Caixa reeditada no Brasil. Ele explicava: ''Tenho uma edição do livro, edição Tolmer, edição esgotada...com minhas ilustrações''. Na introdução da Caixa, lançada agora, o professor Scwartz, que foi também o pesquisador da Caixa Modernista, em 2003, e curador da exposição Brasil, da Antropofagia a Brasília, um ano antes, revela a satisfação por estar realizando o desejo do pintor pernambucano, o mais francês dos brasileiros, morto em 1970.

Livro

Lendas, crenças e talismãs dos índios do Amazonas e Algumas vistas de Paris.
Organização: Jorge Schwartz
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
R$ 150,00, com as duas edições de 96 e 48 páginas.

Exposições

Do Amazonas a Paris: As lendas indígenas de Vicente do Rego Monteiro.
Maison de L'Amérique Latine (217, Boulevard Saint-Germain, 75007, Paris) inaugurada esta semana; e Estação Pinacoteca de São Paulo.
Curador: Jorge Schwartz

(© Jornal do Brasil)

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