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Uma
foto não datada mostra a Missão de
Pesquisas Folclóricas de Mário de
Andrade
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De meados dos anos 30 em diante, o
etnomusicólogo americano Alan Lomax liderou expedições
ao Sul dos Estados Unidos em busca de cantores
autênticos de música folk e blues. Graças a estes
esforços, Muddy Waters e Woody Guthrie fizeram suas
primeiras gravações e foi estabelecido um modelo para a
música popular americana
Larry Rohter
em São Paulo
No início de 1938, Mário de Andrade, o
secretário municipal da cultura daqui, enviou uma Missão
de Pesquisas Folclóricas, composta por quatro membros,
ao interior do Nordeste brasileiro em uma missão
semelhante. Sua intenção era gravar o máximo de música o
mais rapidamente possível, antes da crescente influência
do rádio e do cinema começar a transformar a cultura
distinta da região.
Viajando de caminhão, cavalo e jegue, eles gravaram tudo
e todos que pareciam interessantes: carregadores de
piano, vaqueiros, pedintes, sacerdotes de candomblé,
trabalhadores de pedreiras, pescadores, trupes de dança
e até mesmo crianças brincando.
Mas a coleção da missão brasileira acabou abandona em
depósitos daqui.
Apenas agora, após quase 70 anos, o registro do que
Mário de Andrade chamou de "tesouro prodigioso condenado
a desaparecer" está finalmente disponível, na forma de
uma caixa com seis CDs que documenta as raízes de
virtualmente todo estilo importante da música popular
brasileira moderna, do samba ao mangue beat.
"Este é um evento importante porque todas as principais
tendências, sejam de origem européia, africana ou
indígena, estão representadas e são detectáveis", disse
Marcos Branda Lacerda, o diretor do projeto do CD,
organizado pela prefeitura da maior e mais próspera
cidade do Brasil. "Abrange de tudo, e quando você
escuta, é possível ouvir as influências que radiam" e
tornam a música brasileira a força global que é hoje.
A caixa de CDs chamada "Música Tradicional do Norte e
Nordeste - 1938" consiste de mais de sete horas de
música, extraídas de 1.299 faixas por 80 intérpretes,
totalizando quase 34 horas, gravadas pela equipe de
folcloristas em cinco Estados do Norte e Nordeste do
Brasil durante a primeira metade de 1938.
Muitos dos estilos documentados nas gravações provaram
ser uma grande influência no movimento Tropicalista, que
surgiu aqui nos anos 60 e hoje conta com admiradores
internacionais como David Byrne, Beck e Devendra
Banhart. Os fundadores daquele movimento, principalmente
Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, o atual ministro
da Cultura do Brasil, vieram do interior do Estado
nordestino da Bahia e reconhecem abertamente sua dívida.
"Esta é a música que eu ouvia quando era criança na loja
do meu pai, e é de onde vem toda a riqueza e força da
música popular brasileira", disse Tom Zé em uma
entrevista. "Como filhos de portugueses, Caetano e Gil e
todos nós tropicalistas absorvemos esta influência
folclórica, a transmutamos e então a levamos ao mundo."
Tom Zé também notou que a música do Nordeste brasileiro
que veio de Portugal também era resultado de uma mistura
cultural, especialmente do domínio árabe ali durante a
era medieval. As letras de algumas canções na compilação
remontam os contos de trovadores daquela época, mas a
presença árabe se manifesta principalmente no estilo
caracterizado pelo gosto por modulações vocais.
"Tal influência ainda está aí na música popular
brasileira de hoje", ele disse. "Eu a ouço de forma mais
clara e bela quando Caetano canta. Ele desenvolveu uma
forma sofisticada, inventiva, de usar estas modulações
que eram bem comuns nos cantores que ouvíamos lá no
sertão nordestino."
Apesar do principal foco da expedição parecer ser os
ritmos, os violonistas ficarão particularmente
interessados no terceiro e quarto discos, que incluem
gravações de campo de duplas conhecidas como
repentistas. Como no blues, este gênero baseado em
violão enfatiza desafio e resposta e freqüentemente
emprega uma mistura de bravatas e insultos que os
americanos conhecem como "the dozens".
Há trinta anos, após uma visita ao país, um repórter
tocou algumas gravações de repentistas para o
guitarrista primitivista americano John Fahey. Como uma
pessoa interessada em música folclórica de todas as
partes do mundo, Fahey expressou curiosidade com as
afinações e escalas usadas e apontou que os vocais
roucos, ásperos, um tanto anasalados, lembravam os de
Son House e Bukka White.
"Dá-me calafrios pensar nas semelhanças", entre o blues
americano e a música do Nordeste, disse Tom Zé. "É como
se Mamãe África acabasse com netos no Alabama e
Pernambuco", o Estado onde a missão folclórica iniciou
seu trabalho.
Das três principais correntes culturais que se
misturaram para tornar o Brasil o que ele é, o elemento
ameríndio está menos representado nos discos do que os
componentes europeus e africanos, disse Lacerda. Mas a
coleção contém canções interpretadas por bandas de
pífanos, grupos de orígem indígena, assim como gravações
de praiás, um ritual musical de origem indígena que
praticamente desapareceu do Brasil moderno.
O projeto original foi idéia de Mário de Andrade, um dos
intelectuais mais proeminentes do Brasil no século 20.
Poeta, romancista, crítico, historiador da arte,
musicólogo e autoridade pública, Mário de Andrade
estudou para ser pianista, mas em 1923 se tornou um dos
fundadores do movimento literário modernista, que
dominou a cena cultural brasileira por muitas décadas.
"Nos anos 30, Mário de Andrade e outros sentiram uma
urgência de registrar as manifestações populares da
cultura antes que fosse tarde demais", disse Flávia
Camargo Toni, uma musicóloga que escreveu parte dos
textos da caixa. "A eletricidade ainda não tinha chegado
a grande parte do Nordeste, de forma que a vida estava
completamente isolada e poucas pessoas viajavam. Então
ele sentiu que precisava aproveitar o momento."
Durante a Segunda Guerra Mundial, cópias das gravações
foram enviadas à Biblioteca do Congresso em Washington.
Há uma década, a Rykodisc lançou uma amostra em um único
disco, co-produzido por Mickey Hart, o baterista do
Grateful Dead, chamado "The Discoteca Collection", como
parte do Projeto Música Ameaçada da Biblioteca do
Congresso, mas foi só em 2000 que os esforços de
restauração tiveram início aqui.
"Quando vi pela primeira vez o material nos anos 80, o
teto estava ruindo, havia goteiras e achei que
perderíamos tudo", disse Lacerda. "Mas fiquei bastante
surpreso quando descobri que a maioria dos discos de 78
rotações estava em boas condições, e quando não estavam,
tivemos sorte em encontrar duplicatas que pudemos copiar
diretamente para o CD e então eliminar muitos chiados."
Durante suas viagens, a expedição também reuniu
instrumentos musicais e outros objetos, assim como
filmou e fotografou danças e festivais. O resultado de
tal empreendimento foi exibido em um centro cultural
municipal daqui, incluindo as anotações da equipe de
campo, o gravador Presto Recording Corporation que usou
e transcrições de entrevistas com os intérpretes.
Na época em que as gravações foram feitas, o Brasil era
governado por uma ditadura que proibiu as práticas
religiosas afro-brasileiras. Como resultado, a equipe
precisou de uma carta de autorização da polícia para
realizar seu trabalho, e "uma boa parte dos objetos que
reuniram, especialmente os tambores, vieram de material
confiscado nas delegacias", disse Vera Lúcia Cardim de
Cerqueira, uma curadora do centro.
Apesar de toda a sofisticação musical do Brasil e
exposição aos estilos internacionais de música nos
últimos anos, a herança continua relevante. Tom Zé se
referiu especificamente a "What's Happening in
Pernambuco: New Sounds of the Brazilian Northeast", que
será lançado pelo selo Luaka Bop de David Byrne em 7 de
fevereiro, e que ele disse estar saturado de ritmos
derivados daqueles documentados pela expedição
folclórica.
No passado, o Brasil "não tinha uma cultura de
preservação", disse Flávia Camargo Toni, o que complica
os esforços para situar a evolução musical do país em
seu próprio contexto. Mas agora que as gravações da
missão estão finalmente disponíveis, disse, os
brasileiros têm "a possibilidade de escutar o passado
pensando no futuro". "Nós podemos mostrar como éramos,
como somos e como isto aconteceu", ela disse.
Tradução: George El Khouri
Andolfato
(©
UOL Mídia Global)
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