O legado do fenômeno recifense Chico Science
(1966-1997), parabólica fincada na lama, é referência contemporânea
de peso, que ecoa pela nação
Lauro Lisboa Garcia
SÃO PAULO - Parece Chico Science. Basta esse
toque sobre a sonoridade de alguma banda nova para despertar
interesse. E não só em Pernambuco. O legado do fenômeno recifense
Chico Science (1966-1997), parabólica fincada na lama, é referência
contemporânea de peso, credencial das mais confiáveis, que ecoa pela
nação brasileira, na formação de jovens bandas até hoje. O que
resulta daí, em termos de qualidade e projeção, é outra questão, mas
a influência do compositor e cantor é evidente. Isso desde que, no
início da década de 90, ele formou a Nação Zumbi e juntou-se ao
mundo livre s.a. de Fred 04 para engendrar o movimento que ficou
conhecido como mangue beat.
E lá se vão dez anos, às 19 horas deste dia 2 de fevereiro, que
um trágico acidente de carro numa ponte do Recife tirou Chico de
cena. A Nação Zumbi sofreu um tremendo baque, teve de recomeçar do
zero, mas sobrepujou a perda do líder com dignidade. E segue
retumbando em notável evolução, passos além da combinação de rock,
maracatu, samba, hip-hop e bits eletrônicos lá do início de toda a
aventura neotropicalista, embandeirada pelos caranguejos com
cérebro.
Um show de Chico com a Nação no Festival de Montreux em 1995 pode
virar DVD em breve, mas para isso ainda há definições judiciais
(autorização de familiares) a ser resolvidas. A brevíssima
discografia de CS - Da Lama ao Caos (1994), Afrociberdelia
(1996) e o póstumo CSNZ (1998) - foi suficiente para fazer
muito barulho. Numa enquete promovida pelo Sesc Pompéia, em 2005,
entre 12 dos principais críticos de música do País, o álbum de
estréia, Da Lama ao Caos foi apontado como um dos mais
importantes da história da música brasileira, ao lado de marcos como
Canção do Amor demais (Elizeth Cardoso, 1958), Samba
Esquema Novo (Jorge Ben, 1963), Tropicália (1968),
Acabou Chorare (Novos Baianos, 1972) e Elis & Tom (1974).
Não é pouco.
Mangue beat
É consenso que o mangue beat, que tem Chico como emblema foi/é o
movimento mais importante para a música pop brasileira desde o
tropicalismo. Nos anos 70, outro pioneiro, Alceu Valença condimentou
o terreno isoladamente. A atitude antropofágica se assemelhava em
parte à dos baianos nos anos 60, incorporando elementos musicais
externos contemporâneos, mas os mangueboys ganharam em profundidade
ao dar maior força à cultura local - e sem precisar sair de casa
para conquistar o País. Depois de Chico Science & Nação Zumbi, os
maracatus, que vinham se restringindo ao carnaval do Recife,
ganharam a adesão do público jovem que até então se acanhava diante
da tradição regionalista, preferindo o rock importado.
Chico e os mangueboys também se tornaram representativos pela
atitude, que pode ser reconhecida na forma como grupos como o
Mombojó, e outros apontados como frutos do "neomangue", conduzem a
carreira, com o ideal de "ojeriza à prática publicitária". Os
conterrâneos da Eddie, do Cordel do Fogo Encantado, do Suvaca di
Prata e do Bonsucesso Samba Clube, entre outros, embora não sigam
exatamente a mesma trilha, afinal cada uma tem suas qualidades
particulares, tiveram a entrada em cena facilitada pela proximidade
musical/geográfica. Antes deles vieram Sheik Tosado, Cascabulho,
Mestre Ambrósio, mas até veteranos como Gilberto Gil, Fernanda Abreu
e Elba Ramalho, bem como Pedro Luís e A Parede pegaram carona na
onda do mangue. O outsider Jorge Mautner, por sua vez, viu sua
Maracatu Atômico popularizada mais do que quando foi gravada por
Gil em 1974, mas perdeu, digamos, a autoria. Tanto que quando a
regravou com Caetano Veloso em 2002, manteve a sonoridade, num
arranjo idêntico ao dos pernambucanos.
O potencial artístico se mistura nas influências com a capacidade
de aglutinar, tanto de Chico e quanto de Fred 04, e vai além da
música. Eles não só mudaram a feição das bandas e mexeram com a
auto-estima do público, mas de toda a cena local - espalhando
faíscas pelo cinema (e não só pelas trilhas de Baile Perfumado
e Amarelo Manga), pelas artes plásticas e até pelo carnaval -
e da cultura jovem brasileira. Chico viveu pouco, mas nem a morte
teve força para frear a avalanche criativa que provocou.