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A Herança do Malungo

 Chico Science - Capa do especial do JC Online
 

SOU MANGUEBOY

Há dez anos morria Chico Science, líder da Nação Zumbi e articulador do movimento mangue

Era começo da noite do domingo, 2 de fevereiro de 1997. O artista plástico Félix Farfan, que acabara de chegar da praia, estava cochilando quando foi despertado pelo toque do telefone. Do outro lado da linha, uma amiga avisou que o cantor Chico Science havia sofrido um acidente, mas estava passando bem. Farfan e Science haviam ido no sábado ao pré-Carnaval em Olinda e combinado de voltar à Cidade Alta naquele domingo. Science acidentara-se, por volta das 18h30, no início do Complexo de Salgadinho. O Fiat Uno que dirigia desgovernou-se na descida do viaduto e bateu de frente em um poste de concreto. Ele faleceu no trajeto entre o local do acidente e o Hospital da Restauração. A notícia espalhou-se rapidamente pelo Recife e por Olinda, silenciando, aos poucos, foliões, orquestras e maracatus.
Vídeo
Chico Sciense & Nação Zumbi no programa Na estrada, exibido pela MTV

 
Veja especial publicado em 2001 pelo JC OnLine

 

“Quando eu fiz o curso clássico, aprendi um poema de um espanhol que diz que os pássaros, quando sentem se aproximar a hora da morte, vão buscar a última inspiração no lugar onde nasceram. Chiquinho nasceu em Santo Amaro e deu o último suspiro quando passava pelo viaduto de Santo Amaro, no carro em que foi socorrido.” O comentário fatalista é de Francisco França, 70 anos, pai de Chico Science.

O malungo sangue bom Chico Science morreu com 31 anos incompletos. Em apenas três anos como contratado da Sony Music, dois CDs e três turnês internacionais, ele orquestrou, com Fred 04, da Mundo Livre S.A., e mais uma turma de mangueboys, a mais influente cena musical surgida no País desde o Tropicalismo. Liqüidificando ritmos regionais com rap, rock, soul, eletrônica e cibernética, Chico Science, líder, compositor e vocalista da Nação Zumbi, partiu deixando sua parabólica enfiada para sempre na revigorante lama dos manguezais da Manguetown. Uma década depois, o mundo inteiro continua captando seus sinais, como atestam os americanos da Nation Beat (atração da Feira Música Brasil, que tem início no próximo dia 7, no Recife), cujo disco de estréia é confessadamente inspirado na música de Chico Science.

A influência de Chico Science & Nação Zumbi é clara também em O Rappa e em Pedro Luís e a Parede, declarada no Afroreggae, na Tejo Beat, em Portugal (que realizou um festival dedicado a Science e a Zeroquatro), e na Escócia, onde surgiu um maracatu punk, o Bloco Vomit. Temia-se que a Nação Zumbi calasse seus tambores e silenciasse a voz, o baixo e a guitarra. Mas eles foram em frente, forjaram uma nova sonoridade para a banda, lançando discos e DVDs, fazendo turnês pelo exterior, tão reverenciada como era uma década atrás.

(© JC Online)


FAMÍLIA
A saudade é uma só

Os pais Francisco e Rita lembram com saudade de Chico Science. A filha Tainã já nasceu manguegirl

Vídeo
Chico Sciense & Nação Zumbi no programa Canto do Verão, exibido na TV Jornal . Participação de Fred Zero Quatro

 
JOSÉ TELES

“Povo de Rio Doce/ Vote com confiança/ Para vereador/ Vote em Luiz de França.” Este slogan político foi usado na campanha de seu Francisco Luiz de França a vereador de Olinda, em 1983. A autoria é de seu filho Francisco de Assis França, ou melhor, Chico Science: “Quando comecei a campanha, ele um dia chegou ao meu trabalho e disse: o senhor está ocupado, me empreste o carro. E saiu pelo bairro fazendo campanha para mim”, recorda seu Francisco, que foi eleito, e exerceu o mandato de 1984 a 1988. “Não sei se ele perseguia o mangue, ou era o mangue que perseguia ele”, filosofa seu Francisco, hoje aposentado, mas ainda trabalhando como enfermeiro, lotado no Espaço Ciência, no Memorial Arcoverde.

Coincidentemente, foi ali perto, próximo aos mangues, que Chico Science acidentou-se há dez anos. Na enfermaria do parque onde dá expediente todos os dias, estão dois grandes pôsteres de Chico Science. Mas o que ele mais deseja é criar um espaço Science: “Chiquinho deixou escrito num caderno que futuramente iria criar um espaço cultural para amparar menores carentes. Eu já conversei com muitas autoridades, prefeitos, com a Chesf, mas nada foi feito até hoje”, revela seu França. Ele também lamenta que não pôde cuidar do célebre Landau que pertenceu ao filho malungo: “Tentei também que as autoridades ajudassem a preservar o carro, mas não obtive nada. Hoje ele está enferrujando numa garagem lá na Imbiribeira”, lamenta.

“Num coração de mãe a dor da saudade é para sempre.” Dona Rita de França, mãe de Chico Science, fala resignada sobre os dez anos vividos sem o filho caçula, que ela e o marido seu Francisco França chamam de Chiquinho. As lembranças que ela guardou de Science são as melhores possíveis: “Ele me ligava todo dia, mesmo quando estava distante. Nosso relacionamento era uma maravilha. Quando ele morreu, fazia oito dias que a gente não se via, porque ele andava muito ocupado por ter chegado de uma viagem e estar se preparando para gravar outro disco. Mas não deixava de telefonar para pedir a bênção”, continua dona Rita, que na época morava em Olinda, e atualmente reside no bairro das Graças (Recife).

Ela confirma a convivência de Chiquinho com o mangue desde criança: “Quando ele nasceu, a gente morava no bairro de Santo Amaro, no Recife, mas logo a gente se mudou para Paulista, num local onde havia um manguezal. Chiquinho estava com 6 anos, quando nos mudamos para Rio Doce, um bairro muito tranqüilo naquele tempo. Ele, bem pequeno, saía e brincava com os coleguinhas nos mangues, pegando caranguejos, siri, até camarão. Foi uma infância muito boa a dele”.

O único fato destoante dessa infância tranqüila foram crises de asma, algumas pesadas, que o afligiram até os 8 anos: “Algumas vezes foi necessário levar Chiquinho para o hospital, mas crise grave mesmo ele só teve uma”, conta seu Francisco sobre o caçula de seus quatro filhos. Embora cultue a memória do filho, conservando objetos que pertenceram a ele, dona Rita confessa que conhece pouco a música de Chico Science: “Não sei nenhuma decorada. As que eu gosto mais são A praieira e A cidade”.

(© JC Online)


FAMÍLIA
Fazer cinema é o sonho da filha de Chico Science

“A gente conviveu muito pouco, porque ele viajava muito. Mas, quando estava aqui, toda semana vinha me apanhar na casa da minha mãe e a gente passava o dia juntos. Lembro que na volta a gente costumava ir ao McDonald’s, e ia comendo o sanduíche no carro.” As recordações são de Louise Tainã Brandão de França, 16 anos, filha de Chico Science. O primeiro nome, dado pela mãe, o segundo (estrela em tupi), pelo pai.

A mãe, Ana Luíza, encontrava-se no sexto mês de gravidez de Tainã quando se separou de Chico Science, naquele tempo ainda Francisco França: “Ele trabalhava na Emprel (a empresa de processamento de dados da Prefeitura do Recife) e nem imaginava que se tornaria conhecido, embora demonstrasse que queria fazer sucesso com música. Naquele tempo, ele já participava de uma banda, a Orla Orbe.” Quem conta isto é a ex-mulher de Science, que o conheceu num colégio de Bairro Novo, Olinda, onde Chico Science fazia cursinho.

Quando o cantor estreou em disco, a filha estava com três anos e já era uma manguegirl. Ana Luíza diz que costumava levar Tainã para assistir aos shows da Nação Zumbi no Recife: “Levei para alguns Abril pro Rock, e a quase todas as apresentações que Chico fez por aqui” continua Ana. A filha confessa que não consegue lembrar desses shows: “Eu era muito pequena, tinha uns 3, 4 anos”, justifica a adolescente, que faz o segundo ano do ensino médio e pretende prestar vestibular para cinema: “É a minha paixão. Assisto a muito filmes, todo tipo, em casa, em DVD, no shopping”, revela.

A música ela já tentou, como cantora de forró: “Era muito nova, estava com 12 anos, não tinha gosto definido. Cheguei a aparecer em algunas programas de TV, mas não era o que eu queria fazer”, explica-se a garota, que hoje demonstra preferências bem mais ecléticas. “Ouço Marcelo D2, Maria Rita, Keane e os discos do meu pai, claro.” Embora afirme que pretende estudar cinema, Tainã não descarta a possibilidade de voltar a cantar: “Eu ainda posso tentar a carreira de cantora, mas o futuro só Deus sabe”, diz a jovem sonhadora. (J.T.)

(© JC Online)


ESTUÁRIO
A gênese da Nação Zumbi

Gilmar Bola Oito relembra iniciação de Chico Science no Lamento Negro, onde o manguebeat começou

JOSÉ TELES

Sem Gilmar Bola Oito certamente Chico Science teria descoberto seu destino na música, mas é muito provável que a Nação Zumbi não existisse. Os dois se conheceram em 1987 na Emprel (a empresa de processamento de dados da Prefeitura do Recife), onde Gilmar era contínuo e Chico, auxiliar de serviços gerais: “A gente sempre se falava, porque era ele que tratava diretamente com os contínuos, distribuía os vales-transportes. Quase toda vez que eu ia à sala dele, encontrava Chico batucando um funk no birô. Até que um dia eu perguntei se ele participava de alguma banda. Ele disse que tinha vontade. Eu contei que fazia parte de um bloco de samba-reggae, o Lamento Negro, integrado por cerca de 35 músicos, entre os quais, Canhoto, Toca Ogan e Gira”, relembra. Essa trinca e mais Bola Oito estariam pouco tempo mais tarde na banda Chico Science & Nação Zumbi. “Ele disse que já havia visto o bloco no Carnaval de Olinda. Fiz o convite para Chico ir ao Daruê Malungo, onde a gente ensaiava”.

No sábado, Chico Science foi à comunidade de Chão de Estrelas, em Peixinhos, assistir ao ensaio do Lamento Negro e disse ter gostado da forma como o mestre Meia-Noite trabalhava os ritmos regionais e passou a freqüentar o Daruê Malungo. Na mesma época, conheceu Lúcio Maia e Alexandre Dengue, que arquitetavam uma banda de rock: “Chico trouxe primeiro Jorge du Peixe para conhecer o Lamento Negro, depois convenceu Lúcio, que não queria nada com samba-reggae. Aí, ele juntou o baixo de Dengue, a guitarra de Lúcio com a percussão do Lamento Negro. Ninguém ensaiava nada. De repente, ele pedia para o pessoal levar um maracatu e cantava Maracatu de tiro certeiro”.

Gilmar Bola Oito, duas décadas depois, ainda mora no Recife (no Arruda, perto do seminal Chão de Estrelas). É o mais discreto dos integrantes da Nação Zumbi. Enquanto seus companheiros de banda mantêm projetos paralelos badalados (o Maquinado, de Lúcio Maia, ou Los Sebozos Postiços, de Jorge du Peixe, Lúcio, Dengue e Pupillo), ele trabalha na surdina em projetos sociais em Peixinhos e monta com Canhoto e músicos daquele bairro de Olinda o grupo Menina Sem Nome: “É calcado em percussão com ilu (atabaque usado em terreiros de candomblé) com baixo e guitarra. Demos uma parada nos ensaios, porque Canhoto está gravando o disco do Etnia”, conta Gilmar Bola Oito, bem mais magro do que no início do manguebeat, casado pela segunda vez, dois filhos.

A memória de Gilmar é afiada ao lembrar dos primórdios do que seria conhecido como movimento mangue. Recorda quando o Chico Science & Lamento Negro deixou de existir como uma curtição de fim de semana para o surgimento da Nação Zumbi (nome inspirado na Nação Zulu, de George Clinton): “Um dia Chico chegou e disse que a Vejinha (como se chamava popularmente a Veja Recife, extinta edição regional do semanário nacional) estava procurando a gente para uma matéria, e que a gente precisava se organizar como banda. Disse que não dava mais para continuar fazendo jam e eu nem sabia o que era jam. O Lamento Negro tinha mais de trinta músicos. Ele me pediu para escolher uns meninos que dessem para formar uma banda”. Gilmar chamou Toca Ogan, Canhoto e Gira. Tinha ainda Mau (Maureliano) e Pácua – ambos depois da banda Via Sat –, Lúcio Maia, Dengue, Otto e Chico Science. Nascia a Nação Zumbi, que somente tomaria forma definitiva em 1993, depois da primeira edição do Abril pro Rock.

Ele diz que é impossível saber que rumos musicais seriam o de Chico Science hoje: “Quando ele morreu, a banda estava planejando o terceiro disco. Naquele tempo, Chico estava ouvindo muito drum’n’bass e tinha o projeto de criar o Antromangue em algum casarão no Bairro do Recife. Durante o dia, seria uma espécie de creche, para filhos de comerciários, do pessoal que trabalhasse no bairro. Os garotos passariam o dia no Antromangue e receberiam aulas de música pernambucana. À noite seria para shows”.

Sempre que não está viajando com a Nação Zumbi, Gilmar Bola Oito volta para o Recife, mas, ao contrário da maioria dos companheiros de grupo, raramente é visto nos lugares badalados da cidade: “Não me importo com isso do pessoal falar bem ou mal do manguebeat. Acho que esta coisa começou com Chico e a gente só existe ainda porque o governo tem ajudado e a imprensa dá destaque. É difícil viver de música aqui, porque não somos um grande centro como o Rio de Janeiro ou São Paulo”, analisa o percussionista.

(© JC Online)


ESTUÁRIO
Daruê Malungo pouco mudou

O Rio Beberibe divide a Campina do Barreto, no Recife, de Peixinhos, Olinda. Uma localização geográfica típica da Região Metropolitana, onde os limites entre as cidades que a formam são confusos. Por isso é que geralmente se situa em Peixinhos a comunidade Chão de Estrelas, onde funciona a organização não-governamental Daruê Malungo, que na realidade fica no bairro da Campina do Barreto.

A Daruê Malungo existe desde 1984 e, oficialmente como ONG, desde 1988. Foi idealizada por Gilson Santana, o mestre Meia-Noite, ex-integrante do Balé Popular do Recife, para trabalhar com menores carentes de Chão de Estrelas: “Gilmar, Toca, Canhoto, Gira tocavam no Lamento Negro. Era uma época em que a percussão estava badalada, porque o bloco baiano Olodum estava no auge, muita gente se interessava. Então Chico passou a freqüentar o Daruê Malungo, os ensaios do Lamento Negro, mas dando uma direção para a música que ele pretendia fazer”, relembra Meia-Noite, mais conhecido na comunidade como Chau.

A ONG fica na Rua Passarela, 18-A. Desde que os mangueboys passaram a freqüentá-la, no fim dos anos 80, houve poucas mudanças no sede da ONG, uma casa de poucos móveis, com algumas salas de aulas, um pequeno quintal, onde há um constante entra e sai de pessoas da vizinhança. O salão maior, onde Science começou a alquimia de misturar a black music, rock, com os ritmos regionais, serve como oficina de percussão e dança ministrada por Meia-Noite. Numa tarde quente de quarta-feira, cerca de trinta adolescentes (dos 184 matriculados) fazem uma demonstração do que aprendem na ONG. Os mais velhos nasceram quando se iniciava o movimento mangue.

Embora tenha cumprido um papel histórico, nada no Daruê Malungo, no entanto, lembra que Chico Science, Loustal, Nação Zumbi e Mundo Livre S/A passaram por ali. As paredes são decoradas com pinturas de orixás e dois pôsteres grandes de Bob Marley. A exceção é um grafite com o rosto de Chico Science na parte externa do muro da sede da ONG.

Mestre Meia-Noite, porém, tem viva na memória a primeira vez que Science esteve no Daruê Malungo: “Ele veio com Gilmar. Até então, a música que se fazia aqui era apenas a música do negro: reggae, samba-reggae, o samba de caboclo. Chico começou a tocar com o pessoal do Lamento Negro, mas não a batida do Olodum. Era um som que eu achava muito interessante”, recorda.

Meia-Noite conta que as visitas de Chico Science passaram a ser constantes: “Até mesmo depois que ficou famoso com o Nação Zumbi, ele continuou vindo aqui. Fez shows para os meninos, trazia doações. Até hoje alguns dos integrantes da banda aparecem de vez em quando. Otto vinha por aqui, até doou os direitos de Ciranda de maluco ao Daruê”. A imagem mais viva que ele tem de Chico Science é ele saindo com os meninos para pegar caranguejo numa maré próxima dali: “Voltava com a roupa suja de lama, comprava pão-doce e se divertia muito com as crianças”.

A memória de Chico Science e dos mangueboys, porém, não se perpetuou com a mesma intensidade na nova geração de percussionistas. Um exemplo é Felipe, 12 anos, sobrinho do mestre Meia-Noite. Perguntado se ele ouve Chico Science & Nação Zumbi, sua resposta: “Eu não. Isso é música de velho. Quem ouve é meu pai”. (J.T.).

(© JC Online)


ESTUÁRIO
Fiel seguidor de Chico Science

Aos 30 anos de idade, Canhoto trabalha no segundo disco da Etnia. É o guitarrista da banda que ajudou a fundar em 1999. Trabalha também como funcionário do Centro da Juventude do Nascedouro de Peixinho. A Etnia se destaca entre a miríade de grupos da cena musical pernambucana, por adotar a ortodoxia manguebeat com uma formação instrumental semelhante à de Chico Science & Nação Zumbi. “Chico me dizia sempre para fazer uma música que fosse nossa. É bobagem negar o manguebeat. Chico soltou um fio e a gente sai desenrolando até onde puder. Não me importo se criticam a gente por usar alfaias, misturar ritmos. Eu sou fiel a Chico. Vou morrer com Chico”, comenta Canhoto, nascido Wellington França da Cunha, ali mesmo, em Peixinhos.

No início dos anos 90, ele em nada se diferenciava dos milhares de adolescentes de famílias pobres da periferia do Grande Recife. Aos 15 anos, participava como percussionista de um bloco de samba-reggae Lamento Negro, que saía no Carnaval olindense.

Em 1988, Chico Science foi ao Daruê Malungo para fazer história. Canhoto recorda que Chico passou a sugerir a inclusão de uns grooves de funk e soul no maculelê e no maracatu: “Ele ficou vindo no Daruê. Depois, apareceram Du Peixe, Lúcio e Dengue, e a gente começou a tirar um som com ele, com guitarra, baixo, percussão. Eu tocava caixa”.

Canhoto lembra de sua participação no festival Abril pro Rock, aos 16 anos: “O primeiro grande sonho de um músico é poder subir num palco. E de repente eu estava ali, vivendo aquele sonho”. Foi um sonho intenso e fugaz. O primeiro Abril pro Rock aconteceu em 1993. No mesmo ano, Canhoto conheceu cidades que nem sequer figuravam em seus sonhos. Foi a primeira turnê dos mangueboys da CSNZ e Mundo Livre S.A., de ônibus, para o Rio de Janeiro, São Paulo e, na volta, Salvador. Mas o sonho estava apenas no começo. Em 1994, saía o disco de estréia do CSNZ: “Eu nunca tinha entrado num estúdio de gravação e fizemos o disco num dos melhores do País (Nas Nuvens), com Liminha. De vez em quando apareciam aqueles caras famosos por lá, Frejat, do Barão (Vermelho), Os Paralamas (do Sucesso) também gravavam lá, e foi até Barone que me arranjou umas baquetas, porque viajei sem nenhuma”, diz Canhoto.

Depois do disco aconteceu a viagem para Nova Iorque, para aquele show no Central Park (onde a CSNZ fez uma memorável dobradinha com o futuro ministro da Cultura, Gilberto Gil). Canhoto, mal-saído das ruas acanhadas e mal-iluminadas de Peixinhos, viu-se em plena Manhattan. No palco do CBGB, templo do punk rock e new wave nova-iorquinos, ele se apresentou com a CSNZ para uma platéia em que se encontravam Naná Vasconcelos (que deu uma canja aos mangueboys), Arto Lindsay e David Byrne: “Depois, a gente foi conhecer a gravadora Luaka Bop, mas quem conversou mais com ele foi Chico e Jorge. Eu era muito novo, me sentia meio perdido com aqueles caras, meus amigos, porém tudo mais velho que eu”, revela.

A segunda turnê internacional complementou o choque cultural que atingiu o garoto nos Estados Unidos. Depois do lançamento de Da lama ao caos, em 1994, Chico Science & Nação Zumbi cruzou o atlântico para sua segunda turnê internacional, que incluía o ainda festejado Festival de jazz de Montreux, na Suíça, mais Alemanha, Áustria e Holanda. Dessa vez, Canhoto não suportou a alta voltagem do choque cultural. “Foi tudo muito rápido para mim. Eu estava com 16 anos, não conhecia o mundão. Não sabia o idioma. Aquilo mexeu comigo. Eu me sentia em outro planeta”, diz.

Na volta ao Recife, foi despedido da banda: “Eles contestaram umas coisas que eu fiz. Eu realmente passei a me comportar diferente, mas precisavam ver que eu era um garoto, não tinha os mesmos conhecimentos. Ficou difícil acompanhar os outros”, conta Canhoto, que foi substituído pelo baterista Pupillo. Fora da CSNZ ele caiu em depressão, sentiu-se ainda mais perdido. Decidiu dar um tempo na casa de uma tia em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense: “Fiquei lá um ano e meio, mas não quis fazer música com ninguém da cidade. O que eu queria era tocar música da minha terra, das minhas raízes. O recomeço no Recife foi lento. Em 1999, ele estava com a Etnia, retomando o som fermentado no Daruê Malungo uma década atrás. (J.T.)

(© JC Online)


INSIGHT
Cabeças fervilhando de idéias na lama da manguetown

“A parada vai se chamar mangue”, definiu Chico Science, dando rumo à cena musical dos anos 90 no Recife

JOSÉ TELES

A turma que se reunia na segunda metade dos anos 80 no bar Cantinho das Graças lembra que uma noite Chico Science chegou e disse: “O nome da parada vai ser mangue”. O “bit” foi acrescentado pelos amigos. Um referencial da boemia recifense dos anos 80, o Cantinho das Graças recebia uma fauna variada, de jovens da classe média, intelectuais e roqueiros. A turma a que Science pertencia era formada, entre outros, por jornalistas, Renato Lins, Fred 04, Xico Sá e Mabuse, este especialista em computadores, fervilhando de idéias musicais. Jorge du Peixe, também freguês do bar, tem outra versão para a história: “A gente ia num ônibus de Olinda quando Chico teve o, digamos, insight: ‘Vamos chamar de mangue!’”

Foi uma espécie de ovo de Colombo a idéia de chamar de mangue, as elucubrações que vinham da mente daquele bando que pretendia mexer com as estruturas da cultura pernambucana. O mangue é a paisagem mais óbvia da Região Metropolitana. Os ritmos estavam ali para serem utilizados. A influência de Josué de Castro, incensada nos anos seguintes, foi mínima. Ninguém ali havia lido o cientista, cujos livros até se encontravam há décadas fora de catálogo. Nos anos 20, um bloco o Caranguejo desfilava pelas ruas do Recife. Nos anos 50 e 60, Ary Lobo e Jackson do Pandeiro cantavam cocos que tinham o crustáceo como tema. Chico Science, que cantava seu cotidiano, sacou a importância do mangue, sua fauna e sua flora, dando origem a uma estética que primou pela originalidade. Uma parada chamada manguebit (que soava como manguebeat). Curiosamente, John Lennon havia forjado um nome parecido para seu grupo, fazendo beetle (besouro) virar Beatles.

Desde o desmanchamento do Movimento de Cultura Popular (MCP), logo em seguida ao golpe de 1964, os ritmos da periferia foram praticamente banidos da imprensa recifense. Com as exceções de praxe, a exemplo do fugaz modismo de ciranda no início dos anos 70. Preconizou-se o fim dos maracatus de baque solto. O de baque virado era quase que inteiramente ignorado na capital até Chico Science passar a usar no palco uma fantasia de caboclo de lança. A ida a Chão de Estrelas, o contato com o centro Daruê Malungo e as jam sessions com o Lamento Negro foram fundamentais para reavivar em Science a cultura popular que ele assimilara quando criança em Paulista e Olinda. Foi só acrescentar alguns bits, chips, para forjar a música mais influente surgida no País desde a bossa nova. (Sim, pois o Tropicalismo revolucionou mais pelas idéias e performances. Havia letras tropicalistas, mas não uma batida, um ritmo específico na Tropicália.)

A turma do Cantinho das Graças pensava igual, mas não criou música igual. Há poucos sons tão dessemelhantes quanto os da Chico Science & Nação Zumbi e da Mundo Livre S/A, pontas-de-lança da cena manguebeat. As efêmeras Elétrons & Neurônios e Caranguejos com Cérebro foram das raras bandas do primórdios do manguebeat a empregar a temática e a sonoridade da CSNZ. Outras como a Eddie ou Devotos do Ódio foram classificadas muito mais pela imprensa como parte do movimento (ou movimentação). Chico Science & Nação Zumbi definiram seu estilo com uma segurança e rapidez que, a partir da edição inicial do Abril pro Rock, era inevitável que seu trabalho fosse reconhecido. E foi antes do que os próprios integrantes esperavam. Foi graças à ousadia do empresário Paulo André Pires – que ofereceu à banda ene festivais internacionais, fisgando um punhado na tentativa – que vieram os Estados Unidos, a Europa. Com o elogiadíssimo Afrociberdelia, pintou mais uma turnê européia. A carreira internacional mais rápida de qualquer artista brasileiro. Os anos da Nação Zumbi com Chico Science foram intensos. De ídolo a mito, transcorreram-se pouco mais de três anos, de meados de 1993 até o fatídico 2 de fevereiro de 1997.

HOJE – A Nação Zumbi tem prestígio consolidado aqui e no exterior. Nunca foi grande vendedora de discos, mas isso se deve mais ao contexto atual da MPB do que à complexidade da música do grupo. A banda hoje tem seis integrantes: Lúcio Maia, Gilmar Bola Oito, Toca Ogan, Jorge du Peixe, Alexandre Dengue e Pupillo, que entrou no lugar de Canhoto. Gira, um dos componentes originais, saiu do grupo, foi substituído por Marcos Matias e faz tratamento psicológico.

Depois do disco ao vivo, recém-lançado pela Trama, a Nação Zumbi não deve mais nenhum álbum à gravadora: “Estamos começando a compor para o próximo disco, mas não conversamos ainda com a Trama”, conta Lúcio Maia, um maestro cuja batuta é uma das mais elogiadas guitarras do País. Ele não não sabe em que direção irá a banda no próximo CD, assim como não sabe qual seria se Chico Science ainda estivesse com o grupo: “Acho que com ele a Nação poderia ter até um pouco mais de suingue, porém teria o som que estamos fazendo hoje. Mas isso é apenas uma hipótese”.

Lúcio acredita que a mitificação de Science deu maior visibilidade à banda e, ao mesmo tempo, prejudicou grupos influenciados por ela: “O tambor é a marca da nossa música, só que a maior parte dos que usam tambor foi rotulada de copiadores da Nação. Por causa disso, as novas bandas do Recife se afastaram dos ritmos pernambucanos, pois ficou até perigoso utilizar tambores. Ora, o tambor é apenas um instrumento de percussão como o pandeiro. Mas, pela imagem de Chico ligada aos tambores, o fato de ele ter se tornado um herói, quem segue esse caminho fica meio queimado”.

Os integrantes da Nação Zumbi moram uma parte em São Paulo, outra em Pernambuco e, quando a banda não está na estrada, tocam projetos paralelos. O que está mais perto de chegar ao disco é o Maquinado, de Lúcio Maia: “As gravações já acabaram. Estou terminando a masterização. Duas gravadoras estão interessadas no trabalho”, diz o guitarrista. A Nação Zumbi volta ao Recife no Carnaval para uma apresentação no Marco Zero e outra no pólo do Ibura.

(© JC Online)


INSIGHT
Haverá um mangueboy, onde você estiver

Vídeo
Chico Sciense & Nação Zumbi no programa Balanço do Mar, exibido na TV Jornal (tema Ciranda)

 
CONCEIÇÃO GAMA

Mesmo tendo morrido há dez anos, o cantor Chico Science a cada dia ganha mais admiradores. O artista se tornou um mito da cultura pernambucana idolatrado de várias formas, inclusive por pessoas que nunca estiveram no Recife. Alguns desses fãs, inclusive, só conheceram o trabalho do cantor após sua morte mas nem por isso tornaram-se menos admiradores. Hoje, por exemplo, existem cerca de 15 comunidades sobre Chico Science no site de relacionamentos Orkut. A maior delas possui mais de 61 mil membros, de diversas partes do mundo.

Os primos Breno e Rômulo Gusmão são exemplos de pessoas que começaram a valorizar o trabalho de Chico Science após a morte do cantor. Breno, que tinha apenas 3 anos de idade quando Chico morreu, conheceu a Nação Zumbi por meio de parentes. “Meu tio me mostrou algumas fotos de Chico, colocava discos para tocar e, depois, eu tive curiosidade de baixar as músicas no computador. Comprei alguns CDs e baixei outros. Hoje em dia, Chico Science é um dos meus cantores preferidos. Acho muito legal a forma como ele fala de coisas da cultura pernambucana, como Lampião, maracatu e mamulengo”, afirma Breno, que sempre gosta de voltar da escola ouvido Da lama ao caos ou a trilha sonora do filme Baile perfumado.

Rômulo, que atualmente tem 20 anos de idade, também entrou em contato com o manguebeat de uma forma mais intensa após a morte de Chico. “A minha família sempre gostou muito de Chico Science e, desde criança, eu ouvia bastante as canções dele. Mas, como eu era muito novo, não entendia bem, apesar de gostar. Hoje em dia, tenho um olhar muito mais amplo sobre as músicas de Chico Science e isso fez com que eu me tornasse mais fã ainda”, revela.

Rômulo e seu outro primo, Ugo Portela, 16, que também é admirador de Chico Science, chegaram a criar, em setembro do ano passado, uma comunidade no Orkut batizada de Mangueboy, para discutir as músicas de Chico e o movimento mangue. “A gente resolveu criar porque estava no ápice do nosso ‘mangueboyzismo’. Estávamos viciados em Chico Science, Nação Zumbi, Mundo Livre, etc. A comunidade serviu para expressar isso e também para reunir mangueboys, além de discutirmos idéias sobre o movimento”, declarou Ugo. “Eu vejo que o mangueboy é um cara consciente do mundo em que vive, que está antenado. Ele não precisa exatamente ser jovem, basta ter um espírito de jovem! E, geralmente, está criticando o que há de errado e enaltecendo o que há de bom, principalmente no nosso mangue. E, se for tomando essa definição, eu me considero um”, completa.

A originalidade trazida por Chico Science & Nação Zumbi à música pernambucana também tocou pessoas que conviveram com o cantor. O consultor imobiliário Sérgio da Mata, 45, viu de perto e evolução musical de Chico e se tornou seu fã. “Conheci Chico Science em meados de 1992, na Galeria Joana d’Arc. Ele sempre estava por lá com amigos, para beber ou fazer um som. A banda foi crescendo e se transformou nesse ícone. Acompanhei a carreira de Chico toda, desde esses primeiros shows até a última apresentação dele em Pernambuco, no Bairro do Recife. Seguramente, Chico Science é um dos meus cantores preferidos, um dos maiores de Pernambuco. A marca registrada que ele deixou é algo que revolucionou a música brasileira. Até hoje sou fã da Nação Zumbi, mas, sem dúvida, Chico faz muita falta”, afirma Sérgio.

A importância do movimento mangue deu origem a mangueboys e manguegirls também em outros Estados. O cearense Rui Gomes, 24, da cidade de Barbalha, no Sertão do Cariri, nunca esteve no Recife, mas é muito mais fã de Chico do que muita gente que nasceu e vive na Manguetown. “Conheci o trabalho de Chico por volta de 1996, por meio de amigos que moravam ou que viajavam para o Recife e trouxeram discos da Nação Zumbi. Desde a primeira vez que ouvi, a música de Chico me sensibilizou. Virei, então, muito fã e hoje a Nação é minha banda favorita e Chico, um ícone que sempre vou admirar”, relata.

O fanatismo e a admiração de Rui por Chico Science são tão fortes, que ele chegou a montar uma banda inspirada no movimento mangue em meados de 1999, a Manguesat. “A gente começou fazendo covers de Chico, mas depois começamos a tocar composições próprias, sempre tendo como referência o som da Nação Zumbi. Misturávamos instrumentos como alfaia, zabumba e triângulo com guitarras e baixo. O manguebeat criou uma coisa nova, que despertou o interesse, sobretudo dos jovens, para a música nordestina. Acho isso muito importante. Eu mesmo, depois que comecei a ouvir o som de Chico, passei a prestar mais atenção e valorizar o som da minha terra”, afirma.

FUTEBOL – O fanatismo por Chico Science ultrapassou as barreiras musicais e chegou ao campo de futebol, uma das paixões do cantor, que era torcedor do Santa Cruz. O fã Geovani Pinho, de Florianópolis, fundou um time de futebol de areia em outubro de 1997 e o batizou de Clube Cultural Recreativo Chico Science. O time, que é registrado oficialmente e possui Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, atualmente conta com 32 sócios-atletas e 17 sócios-torcedores.

Geovani afirma que sua intenção era imortalizar o nome de Chico Science. “Conheci o trabalho de Chico em 1996, quando um amigo, que foi ao Recife, trouxe para mim alguns CDs da Nação Zumbi. Me identifiquei muito com a música e, desde então, a Nação é uma das minhas bandas favoritas. Resolvi chamar o time de Chico Science para homenagear e imortalizar esse grande ídolo. Preferi colocar o nome dele no time a colocar o nome de um artista de Florianópolis, porque considero o trabalho de Chico universal”, explica.

(© JC Online)


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