Músico pernambucano morreu em acidente de carro em 1997. Nação
Zumbi segue com Jorge Du Peixe nas letras e vocais.
Lígia Nogueira Do G1, em São Paulo
Um dos capítulos mais importantes da história da
música brasileira atual não teria sido escrito sem a
participação de Francisco de Assis França. Morador
do bairro do Rio Doce, na periferia de Olinda, nos
anos 70, ainda moleque catava caranguejos no mangue
a fim de arranjar alguns trocados para os bailes -
onde aprendeu a gostar de James Brown, Grandmaster
Flash e Kurtis Blow.
O interesse pela música negra norte-americana foi
o passaporte para sua entrada no grupo de dança de
rua Legião Hip Hop e o conseqüente surgimento das
bandas Orla Orbe e Loustal, esta última uma parceria
com o guitarrista Lúcio Maia e o baixista Alexandre
Dengue.
No início de 1991, o trio entrou em contato com o
bloco afro Lamento Negro, cujo forte traço
percussivo chamou sua atenção. A partir daquele
momento, a música de raiz - maracatu e coco de roda
- encontraria eco na sonoridade do hemisfério norte.
Do mangue para o mundo, Chico Science soube
costurar ritmos brasileiros como nunca tinha sido
feito antes: com funk, dub, jungle, rock e rap,
criando a partir desse amálgama de referências uma
identidade própria que se tornou o motor do
turbilhão musical que surgiria em Recife na década
de 90.
O primeiro show do grupo Chico Science e Nação Zumbi
- com Toca Ogan (percussão), Canhoto (caixa), Gira
(tambor), Gilmar Bola 8 (tambor) e Jorge Du Peixe
(tambor) na formação, além do próprio Chico nos
vocais, Lúcio na guitarra e Dengue no baixo -
aconteceu em junho de 91, no Espaço Oásis, em
Olinda. (Logo, Canhoto deixaria a banda e Pupillo
assumiria as baquetas).
Três apresentações em São Paulo e em Belo
Horizonte e alguns poucos anos depois, a banda
gravaria o disco de estréia, "Da lama ao caos"
(1994), produzido por Liminha e lançado pela Sony.
Em "Afrociberdelia" (1996), o grupo assumiu o
controle da produção. O disco tinha participações de
Gilberto Gil, Fred 04 e Marcelo D2 e deixou mais
claro o flerte da CSNZ com a música eletrônica,
apontando para uma sonoridade totalmente nova.
Esse frescor que brotava da cena local veio
acompanhado do manifesto mangue bit, escrito por
Chico Science e Fred 04 (Mundo Livre S/A) e outros
autores intitulados "caranguejos com cérebro".
O texto, que era distribuído como release dos
shows, logo caiu nas graças da mídia e se tornou a
certidão daquele "movimento" que nascia e já andava
com as próprias pernas. Carismático, Chico conseguiu
sintetizar de forma ímpar todas aquelas mudanças no
panorama cultural de sua cidade, no papel e
principalmente fora dele.
Mas o homem de frente da Nação Zumbi e um dos
principais catalizadores da mudança perdeu a vida
precocemente, pouco antes de completar 31 anos, em
um acidente de carro no trajeto entre Recife e
Olinda.
Em setembro de 2004, a Fiat foi condenada a pagar
indenização por danos morais e materiais à família
do artista. O advogado, Antonio Campos, se baseou no
Código de Defesa do Consumidor, alegando quebra do
cinto de segurança e falhas estruturais do carro
durante o acidente.
Em janeiro de 2007, chegou ao fim o processo que
a família de Chico Science movia contra a fábrica de
automóveis. Os valores do acordo não foram
divulgados, mas sabe-se que foi menor do que os R$
10 milhões que pretendiam os advogados da família
França, incluindo a filha de Chico Science, Louise
Tainã, de 16 anos.
A trajetória meteórica daquele "cientista de
ritmos" transformou o músico em ícone imaginário. E
a história da banda recomeçou em 2000, com Du Peixe
assumindo a composição das letras e os vocais em
"Radio S.amb.A".
Com essa formação, a banda deu continuidade a um
trabalho sempre original, presente nos álbuns "Nação
Zumbi" (2002) e "Futura" (2005). Nos shows, Du
Peixe, Lúcio Maia e companhia ainda tocam hinos da
época de Chico, como "Maracatu atômico" (de Jorge
Mautner e Nelson Jacobina) e "Manguetown".
(©
G1)
A última vez de Chico Science em Recife
Um relato do derradeiro show do músico em sua
cidade. Apresentação mostrou o então novo disco,
"Afrociberdelia".
Daniel Buarque Do G1, em São Paulo
Zeca Miranda Especial para o G1, do
RioClaro que ninguém nem imaginava que aquele era o
último show, em casa, de Chico, assim mesmo, íntimo
como todo pernambucano sempre se referiu a seu
conterrâneo mais famoso na última década. Mas mesmo
se todo mundo soubesse, o show de despedida teria
que ser igual àquela apresentação no Clube Português
- na ocasião do lançamento do disco "Afrociberdelia"
- em setembro de 1996: perfeita. E muito bem
guardada na memória de quem estava presente.
Tínhamos 15 anos e, junto com amigos, fomos ver o
que o segundo disco da banda trazia de novo ao vivo.
No Abril Pro Rock de 1996, sob uma tempestade, os
mangueboys já haviam dado uma amostra do que era o
novo trabalho da banda, mas os atrasos e a chuva não
permitiram uma boa apresentação. Dois anos antes, já
tínhamos assistido ao show de lançamento de "Da lama
ao caos", o primeiro disco, numa apresentação para
poucas pessoas que ainda conheciam pouco de Chico.
Agora ele voltava famoso, consolidado, e prometendo
um futuro que acabou não se concretizando como todos
imaginávamos.
Na hora em que Chico "veio com a Nação Zumbi aos
nossos ouvidos falar", como na introdução "Mateus
Enter" que abriu aquela noite, parecia que todo
mundo tinha enlouquecido. Estávamos do lado direito
e bem à frente do palco. O primeiro a entrar, ainda
com as luzes apagadas, foi o baixista Dengue.
Segurando um incenso na mão, que logo em seguida é
fixado ao amplificador do baixo, Dengue observa a
entrada do restante da banda. Todos prontos, feita a
contagem, entra, como um "pipoco" de trovão, o
pequeno Chico.
Daí para frente, quem estava ali naquela noite já
tinha a certeza de que os caras fariam um dos shows
mais inesquecíveis que aquela cidade já vira.
Na terceira música, o já então hit "Manguetown",
ao soar das primeiras notas um de nós [Zeca] subiu
ao palco de pouco mais de um metro e meio e foi para
o lado de Chico, mas acabou voltando à platéia.
Instantes depois dezenas de pessoas tentaram fazer o
mesmo e logo o palco estava tomado. Todos queriam
dançar, pular, confraternizar com aquele conterrâneo
tão igual a nós, mas tão destacado e importante para
a música brasileira. Foram tantos que show precisou
ser interrompido.
Como um artista que já domina seu público, sem
nenhum nervosismo e com toda simpatia, diz “pessoal,
vocês fazem o show aí embaixo e a gente faz aqui em
cima”. Todos obedeceram. A música recomeça do
início, e o show seguiu cada vez mais matador.
Chico tinha lançado apenas dois discos, e o show se
baseava neles, sem deixar faltar nenhuma das músicas
mais esperadas. Tudo deu certo, do som, ao palco, ao
público.
Além da grande apresentação musical daquela noite,
alguns paradigmas foram quebrados ali. O Clube
Português é um tradicional local da classe média
recifense, que nos fins de semana abrigava, até
então, shows de axé e pagode, que dominavam a cidade
antes da revolução iniciada pela turma do
manguebeat. A tão famosa diversidade pela qual
Recife é conhecida hoje, tomava formas definitivas
ali, já deixando de ser um som restrito aos guetos e
undergrounds de onde aqueles rapazes saíram.
No mesmo clube, anos depois, passaram grupos como
Cordel do Fogo Encantado, Mundo Livre, Dj Dolores.
Todos de alguma maneira, iluminados pelo que, um
dia, Chico Science e Nação Zumbi fizeram ali.
A transformação e efervescência cultural se
comprovaria exatamente um dia após aquele domingo em
que Chico morreu, dez anos atrás. Na semana
pré-Carnaval de 1997, quando normalmente a cidade do
frevo fingia ser a Bahia, ele dividiria um trio
elétrico, isso mesmo, trio elétrico, com o mestre
Antônio Carlos Nóbrega, no bloco Na Pancada do
Ganzá, tocando músicas nada parecidas com axé.
O show aconteceu mesmo com a morte dele, como uma
homenagem. O bloco era, independente do que havia
acontecido, um dos mais felizes na praia de Boa
Viagem. Pouco depois o axé perdeu espaço
definitivamente para a música tradicional de
Pernambuco. Francisco de Assis França morreu, mas já
havia deixado a casa pronta, o terreno batido e a
ressonância dos seus tambores ecoando.
E o show? Terminamos sentados no bar, com uma
garrafa de água na mão, cansados de tanto pular e
gravando definitivamente o momento na memória.
Zeca Miranda é jornalista e guitarrista da
banda Superoutro
(©
G1)
Mangue beat. Manguebeat. Manguebit.
Silvio Meira
O movimento mangue mudou a história da música e da expressão
artística no Recife nos anos 90. E foi essencial na criação da atitude
que resultou no Porto Digital, o sistema local de inovação de tecnologia
de informação do Recife.
Dois de fevereiro é dia de Iemanjá. É meu aniversário, também. E foi num
domingo, no dia em que Chico Science estava indo de Recife a Olinda,
naquele fim de tarde de sol em 1997, pra ver a Cabralada tocar.
Esperamos, esperamos, o maracatu era energia pura, a Treze de Maio
lotada, mas Chico nunca chegou. Chico nunca chegou e, no fim da noite,
eu estava no necrotério, com Sonaly Macedo, onde Chico tinha ido parar
depois de um acidente inacreditável no Salgadinho. Foi o pior
aniversário da minha vida.
O povo do mangue, nome de beat tão interessante quanto a batida
propriamente dita, renovou a cena musical do Recife e de boa parte do
Brasil como se fosse um big bang. Chico, 04, Mabuse, Renato L, Lúcio
Maia e tantos outros teóricos e práticos do movimento botaram nossas
vidas de ouvido pra baixo. A trilha de quase tudo, aqui, era de repente
daqui mesmo e pra mim, que começava a entender o encanto de alfaias,
abês e loas dos maracatus de baque virado, o beat do mangue era como se
fosse meu. E não era só eu, muito mais gente tava na mesma onda,
atitude, jeito de enxergar o mundo, de misturar as idéias, de achar que
muito, muito mais era possível.
Dois anos antes daquela tarde de maracatu em Olinda, virei professor
titular do Centro de Informática da UFPE, numa cerimônia
tradicionalmente precedida por um conjunto de câmera executando Bach,
Mozart e similares. Pois pra mim foi Júlio Glasner no som, detonando
Computadores fazem Arte (artistas, como dizia Chico, fazem dinheiro)
quando entrei no auditório e Da Lama ao Caos depois do discurso de posse
e antes da cana que durou dois dias... Tudo de acordo com a letra:
“...eu me organizando posso desorganizar/ ...eu desorganizando posso me
organizar”.
Nosso lema na informática da UFPE era e ainda é Ciência & Gréia. Ou
Competência com Irreverência. Dá no mesmo. No começo da década de 90 nós
também estávamos achando que não só era preciso mudar, mas que era
possível mudar. O caldo de cultura que se pensava, via e ouvia no delta
do Capibaribe, principalmente depois que o movimento mangue começou a
tormar forma e nós começamos a nos ver nele e como parte dele, era a
base de onde muitos de nós tiramos idéias e energia para começar uma
aventura de tecnologias da informação que continua sendo construída,
como a mesma força de antes, até hoje. E que não dá sinais de voltar
atrás.
Recife sempre teve empresas de software. Sempre, aqui, significa desde a
década de 60, quando a maioria dos leitores não tinha nascido e eu ainda
jogava bolinha de gude. E tinha empresas porque havia uma demanda
regional sofisticada e capaz de sustentar empresas locais que viriam a
ter caráter nacional décadas depois. Mas a globalização começou a pegar
a periferia com todo seu poder de destruição e renovação, bem no tempo
do movimento mangue, na década de 90. Foi o fim dos bancos locais e
regionais, a falência das pequenas indústrias, o fim dos incentivos da
Sudene. Enfim, o fim de muitos sonhos, planos e projetos.
E os acadêmicos de Recife tinham sonhos, planos de construir centros de
ensino e pesquisa que contribuíssem para o crescimento da economia
local, para a geração de emprego tecnológico, para a criação de novas
empresas. Mas a globalização tirava nosso tapete a cada dia e os alunos
que formávamos tomavam o rumo do Rio, São Paulo, Seattle e Londres. Foi
aí, nesta mesma época, que o povo da tecnologia, tanto os mais novos
quando os mais velhos do que Chico, resolveram mudar o jogo. Se Chico
fazia para o mundo, por que não nós, também?
Se a economia local -- que demandava uma informática local -- estava
desaparecendo em suas formas clássicas, porque não apostar em uma
informática de classe mundial, feita aqui mas para o mundo, atraindo
para cá problemas complexos e criando demandas locais que poderiam não
só manter muitos dos nossos melhores cérebros aqui mas, ao mesmo tempo,
atrair gente de fora pra cá, como tanta gente que estava sendo tragada
pra Recife por causa, exatamente, do mangue beat? Se nosso mangue “bit”
fizesse o mesmo, poderíamos, com o tempo -- quem sabe?- - tornarmo-nos
muito mais relevantes...
A partir do começo dos anos 90, Recife atraiu o Softex (programa
nacional de software), a RNP (Rede Nacional de Pesquisa), vários
programas de pesquisa cooperativa em TICs nas universidades, as empresas
de software se fortaleceram e aumentaram em número, suas associações se
tornaram mais sólidas, o C.E.S.A.R (Centro de Estudos e Sistemas
Avançados do Recife) apareceu, gerando (hoje) mais de 600 empregos em
TICs e atuando diretamente na criação ou renovação de mais de trinta
empreendimentos. Em 2000, o esforço desembocou no
Porto Digital,
sistema local de inovação situado no antigo bairro do Recife, o mesmo do
Bar Fogão onde o povo do mangue bebia sempre.
O Fogão desapareceu. Mas cento e tantas empresas de software e de sua
cadeia de valor vieram para o Porto Digital, trazendo mais de três mil
pessoas que tornam vivo, de dia, o bairro que só existia à noite, quando
os caranguejos com cérebro faziam uma festa em algum lugar.
O mangue não é mais o mesmo. A batida ideal que Chico procurava gerou
muitas batidas possíveis, de Otto a Silvério a Cordel a Mombojó a
Carfax, entre muitas outras. A busca de Chico fez renascer os maracatus,
base de muitas de suas batidas, que estavam mais prá lá do que prá cá
antes dele. Hoje há muitas dezenas de batuques ativos, formados depois
que as alfaias -os pesados tambores de madeira do Nação Zumbi- ganharam
o status dado pelo mangue. É como se um pedaço da África tivesse, de
novo, desembarcado aqui, cheio de esperança, seus tambores embalados de
alma e vida.
Para nós, de tecnologia, foi e é o mesmo. Aprendemos com Chico e o povo
do mangue que é possível conceber, criar e fazer aqui. E levar tudo, pro
mundo, a partir daqui. Estamos e vamos continuar fazendo isso. Com
parabólicas e fibras óticas apontadas para o mundo, os pés no mangue, na
periferia, na história da qual não podemos e não queremos fugir, fazemos
do e no Recife o liquidificador de coisas ao qual nada é imune. Entra
dia, sai ano, haverá alguém escrevendo um manifesto. Outro alguém atrás
de mais uma batida ideal. Outros escrevendo software, gente fazendo
design e interfaces, uns tantos testando, outros criando robôs, fazendo
circuitos integrados, celulares, o que vier.
Ainda acho que não é uma boa idéia lembrar a morte pra comemorar vidas.
Mas assim manda a tradição. Prefiro comemorar aniversários, como se
estivéssemos todos vivos. Como Chico está. Na Cabralada, domingo
passado, depois do ensaio, o batuque continuou tocando bases do CSNZ de
1994. Mas não é só: mais do que na música, o legado de Chico vive em
todos os que lutam, nas suas muitas periferias, para fazer muito mais do
que os poucos centros do mundo dizem que eles deveriam se limitar a
fazer. Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi!...
Silvio Meira
Professor Titular de Engenharia de Software do Centro de
Informática da Universidade Federal de Pernambuco em Recife,
cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R)
e engenheiro formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).
A coluna de Silvio Meira foi publicada excepcionalmente nesta
sexta-feira, em vez de no sábado, como de costume, em memória aos dez
anos da morte de Chico Science
(©
G1)