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Dez anos sem Chico Science

 

Se alguém havia de empurrar a energia musical nordestina para dentro do rock’n’roll e fazer o mundo ouvir, esse alguém tinha de ter um apelido meio brasileiro, meio americano, meio tecnológico, algo assim como Chico Science. O homem nasceu em Olinda, em 13 de março de 1966 — mesmo ano de Marcelo Mirisola, Mike Tyson, Romário, Fernandinho Beira-Mar: mas que gente irriquieta! — e só teve 30 anos para “incentivar a música popular brasileira a ser realmente pop”, nas suas palavras. Em 2 de fevereiro de 1997, ele pediu emprestado o Fiat Uno Mille da irmã — seria difícil estacionar seu Landau 79 nas imediações do show ao qual levava um amigo. Pouco depois, perdia a vida ao bater num poste na divisa de Recife e Olinda.

A carreira musical de Chico Science começou nos anos 80 no grupo Orla Orbe, para o qual levou sua tendência rapper desenvolvida na participação na Legião Hip Hop, grupo de street dance. Depois surgiu o Loustal, banda em que Chico e seus parceiros Lúcio Maia e Alexandre Dengue misturavam rock, hip hop, ska, funk e soul.

Em 1991, alguns jovens reunidos no bar Cantinho das Graças, no Recife — Fred 04, que depois viria a liderar o Mundo Livre S/A — viram Chico Science chegar entusiasmado depois de uma jazz session com os integrantes do Lamento Negro, grupo de samba reggae da periferia. A percussão o entusiasmara: “peguei um ritmo de hip hop e joguei tambor de maracatu. Vou chamar essa mistura de mangue”. Da teoria à prática: ele juntou a turma do Loustal a percussionistas do Lamento Negro, como Toca Ogan, Gira, Gilmar Bola 8 e Jorge du Peixe, e estava fundada a banda Chico Science e Nação Zumbi. Ou melhor, estava fundado o mangue beat, que misturava rock, black music, rap, maracatu, música eletrônica e coco.

Como disse Fred 04, aquela geração percebeu que o Recife tinha muito mais a dizer musicalmente que Seattle, a queridinha da época com seu grunge. Formou-se um ambiente cultural propício ao desenvolvimento sonoro. O mangue beat teve até manifesto, o texto Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred 04.

Entre 94 (ano do disco Da Lama ao Caos) e sua morte, ele “e a Nação Zumbi fizeram aquilo que somente um seleto grupo de músicos tem conseguido: criaram um híbrido capaz de evoluir até se tornar um estilo que um dia será hibridizado por outra geração” — palavras do crítico Neil Strauss no NYTimes após assistir a um show do grupo no Central Park em 1995.

Chico Science e seus parceiros gostavam de afirmar que o mangue beat era uma antena parabólica cravado no manguezal e trasmitindo para o mundo. Aliás, ainda transmite, tendo ecos no som de Mundo Livre S/A, Otto, Nação Zumbi, DJ Dolores, Lenine, Bonsucesso Samba Clube, Mombojó, Junio Barreto, Suvaca di Prata, Mestre Ambrósio, Siba, Cordel do Fogo Encantado, Devotos, Monjolo e Eddie.

(© Bravo Online)


Os albuns de Chico Science

Da Lama ao Caos (1994): O primeiro álbum, gravado por Liminha (produtor-símbolo da década de 1980), não registra com perfeição o impacto sonoro e conceitual do grupo. A eletrônica ainda é tímida, e a captação do baque dos tambores é precária. Soa mais como um disco de rock com rítmica de maracatu. Mas estão lá algumas das melhores composições de Chico (A Cidade, A Praieira, Banditismo por uma Questão de Classe, a faixa-título), e de seus parceiros de movimento (Zero Quatro em Computadores Fazem Arte e Rios, Pontes e Overdrives; Otto — não creditado — nessa última).

Afrociberdelia (1996): Com o jovem produtor BiD, o encontro de uma sonoridade definitiva e moderna, ao mesmo tempo pesada, suingada e detalhista. Um trio de ótimas canções (Manguetown e Macô, mais a releitura de Maracatu Atômico, estabelecendo claramente a conexão com a Tropicália de Gil e a vanguarda de Mautner) sustenta um repertório longo e um tanto irregular. Um terceiro álbum, coletânea póstuma (CSNZ, 1998), raspou o tacho da obra de Chico.

(© Bravo Online)


O que se diz sobre Chico Science

BiD, músico, produtor do disco Afrociberdelia:
Acho que o que ficou de legado foi a liberdade que o Chico tinha pra fazer música, com misturas, sem preconceito, buscando sempre algo diferente, o novo. Graças a ele e a algumas bandas da cena da época, o Brasil voltou a olhar pra si próprio e não depender e copiar o que rolava de tendência gringa. Além disso, mostrou que com uma antena bem conectada no solo (mangue) se tornava possível chegar em qualquer lugar. Ninguém prestava atenção pra Recife naquela época, e Chico, junto da Nação Zumbi, levantou a bandeira sonora local com seu mangue beat. De repente varias bandas começaram a pintar na cena e a própria cultura e Carnaval ficaram bem mais próximos da curiosidade do resto do país e do mundo.

Zeca Baleiro, músico:
Na música, como na história, vez por outra surgem os arautos, aqueles que vêm anunciar algo de novo, com a urgência de um guerreiro. O Chico foi o cara que anunciou uma geração, que abriu portas, talvez sem saber, ao redescobrir a pólvora aos olhos do mercado, este sempre "novidadeiro". A pólvora de que falo é a fusão de cultura popular e cultura pop, que outros artistas nordestinos já haviam experimentado com maestria num passado não muito distante (Alceu, Vital Farias, Fagner, Ednardo...), e que outros contemporâneos seus experimentavam solitariamente em alguns recantos do país, tendência que ele e sua turma do mangue beat trouxeram à luz com o verniz de "movimento" e o suporte de uma cena regional, a de Recife no início dos 90. Para além de sua importância histórica, era um grande performer, com grande desenvoltura no palco, e com aquela coisa misteriosa e cativante que as pessoas costumam chamar de "carisma".

Marco Frenette na revista BRAVO!, novembro/02:
Da Lama ao Caos [é] caso único na história do pop nacional, sendo, a rigor, o primeiro álbum de rock brasileiro, já que aliou a visceralidade e a violência sonora do rock com elementos culturais e ritmos nacionais. Não é rock inglês ou americano cantado em português, como até então acontecia, era rock brasileiro, rock de tambor.

Angeli, cartunista, em entrevista à revista Playboy, setembro/06:
Chico Science é o supra-sumo do que eu gosto de música pop brasileira, com influência do rock e do hip hop. Ele nunca deixou de ser uma continuação do Jackson do Pandeiro, mas quase chegava no metal pesado em algus momentos.

Falcão, vocalista do Rappa, em entrevista à revista Playboy, maio/04:
Eu e D2 somos muito fãs do Chico Science. A morte do cara foi a maior frustração musical que já tivemos.

(© Bravo Online)


Caranguejos com Cérebro

O manifesto do movimento mangue beat, escrito em 1992 por Fred 04

angue, o conceito
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade “maurícia” passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.

Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da “metrópole” só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.

Hoje, os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.

Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.

(© Bravo Online)


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