DALWTON MOURA
Repórter
Ela foi o anjo que, por 32 anos, olhou
por um dos maiores músicos brasileiros de todos os
tempos. A musicista Glorinha Gadelha acompanhou em
Guaramiranga as homenagens prestadas a Sivuca no
Festival Jazz & Blues. E, em meio a um cortejo de
sanfoneiros em um fim de tarde de embevecer, conversou
com o Caderno 3, relembrando alguns dos tantos momentos
vividos ao lado do marido - para ela um músico completo,
que girou o mundo e não chegou a ter o reconhecimento
que merecia como um dos maiores arranjadores da história
da música brasileira
Qual a sensação de estar num festival em
Guaramiranga e ver Sivuca sendo homenageado por grandes
músicos, recebendo tanto carinho deles e do público?
Já tinha sim, através dos músicos com quem eu tenho
contato. É uma idéia sensacional, principalmente porque
esse país hoje cultiva mais a música que dê movimento ao
corpo, né? Não tanto a música que alimente a mente e a
alma. E essa homenagem, eu estou absolutamente comovida.
Desde que cheguei aqui que não parei ainda de sentir
essa coisa boa (pausa). É realmente um espetáculo, o
Sivuca deve estar muito feliz, onde quer que esteja. Ele
estava se preparando pra vir, desde outubro estava em
contato com o pessoal do festival, sobre essa homenagem
que fariam a ele. E ele prometeu que viria de qualquer
jeito, nem que fosse acompanhado de médico, pelo menos
pra assistir ele viria. Ele não assumiu compromisso de
fazer show, mas de fazer um esforço pra presenciar, pra
participar. Ele falava muito nisso.
Já dizia um grande compositor que gostaria que
as homenagens que achassem por bem lhe prestar fossem
feitas em vida, não depois da sua partida. No caso de
Sivuca, você acha que isso aconteceu, que ele recebeu a
atenção e o reconhecimento que merecia?
Olha, Sivuca, por onde ele passava, ele era homenageado.
Ou mínimas, ou pequenas, ou médias, ou grandes
homenagens. Ele recebia homenagens espontâneas, não eram
nem preparadas. Por exemplo, nós estávamos num navio,
nos confins da Noruega, por volta de 85, se eu não me
engano, e havia uma orquestra, uma banda de música só de
crianças, todas trajadazinhas, de uniforme e com um
bonezinho na cabeça. Elas tocaram pra gente e, quando
terminou, Sivuca pegou a sanfona e tocou algumas músicas
só pra eles. Eles ficaram extremamente comovidos e
procuraram algo pra dar pro Sivuca. Como não tinham mais
nada, deram os bonezinhos da orquestra. Nós voltamos por
Brasil com a mala cheia de bonés (risos)...
Mas, além dos acordeonistas, ou dos músicos em
geral, você considera que a extensa obra do Sivuca, como
instrumentista, compositor, arranjador, recebeu a devida
atenção?
Eu acho que pra ninguém o totalmente existe, aquela
coisa de “Basta, já aconteceu, já fechou, encerrou, foi
o máximo...”. Isso não existe. Acho que o trabalho de
Sivuca foi reconhecido sim. Agora, não ainda na sua
dimensão, na sua profundidade, principalmente no que diz
respeito ao Sivuca arranjador. Era a coisa que ele mais
gostava de fazer, escrever arranjos completos, pra
orquestras, bandas de música, pra big bands... Ele só
não escrevia pra coro, pra voz humana, mas pra todas as
outras formações ele escrevia arranjo, e muito bem. Ave
Maria, ele adorava combinar os timbres! Esse novo DVD
dele, que eu estou dando de presente no festival pra
todos os músicos, lá está exposto aquilo que ele mais
gostava de fazer, que é arranjar pra várias modalidades
de grupo, quintetos, sextetos de cordas, cameratas,
orquestras sinfônicas, sexteto de trombones, quinteto de
metais, grupos de jazz, de choro... No DVD ele toca
sozinho também, pra mostrar o virtuosismo dele, mas a
figura do arranjador se sobressai. Ele era um dos
grandes. Já como forrozeiro, que ele era também muito
lembrado, ele não se considerava o melhor. Achava que
era Dominguinhos o pai dele no forró, e ele era pai do
Dominguinhos em outra coisa. Agora, como arranjador, ele
foi muito grande. Tom Jobim já dizia que ninguém
escrevia para cordas, pra violino, cello, viola, como o
Sivuca. Ele era apaixonado por música sinfônica erudita.
Esse fato de talvez não ter recebido todo esse
reconhecimento como arranjador teria a ver com uma certa
falta de visão em torno da figura dele, por ser um
nordestino, um acordeonista?
Isso atrapalhou bastante a vida dele. Tanto que na União
dos Músicos de Nova York, ele era registrado como
guitarrista, porque o acordeom era um instrumento
considerado bastardo. Quando ele tava em Nova York e
começaram a se abrir as portas pra ele nos Estados
Unidos, ele começou a tocar guitarra. Mas não era por
ele, era devido ao preconceito pra chegar a uma condição
melhor, abrir portas e chegar a mostrar o seu talento.
Mas Sivuca era sobretudo um músico, independente do
instrumento, tocaria qualquer um. Mas como caiu na mão
dele a sanfona, como ele gostava de dizer, foi esse o
instrumento que ele adotou. Ele realmente era um músico
completo, tocava de tudo. E gostava de ser chamado de
músico, não de sanfoneiro, porque ele não era só
sanfoneiro, só um instrumentista. Era um músico
completo. E como arranjador, tinha muitas passagens que,
de tão bonitas, eram verdadeiras composições. As
orquestrações tinham trechos que poderiam muito bem ser
novas composições. Por exemplo, quando eu fiz a música
“Canção piazzolada” e dei pra ele fazer o arranjo, ele
fez partes que são uma verdadeira música. O que ele
gostava mesmo de fazer era pegar uma música e arranjar.
Você ouve um arranjo dele e vê a riqueza que tem por
trás.
E como era o Sivuca no dia-a-dia? Correspondia
sempre à imagem de uma figura leve, serena? Costumava
estudar muito pra manter essas habilidades como
arranjador?
Ele era sempre um homem muito doce, muito gentil. Era
uma figura iluminada. E era muito caseiro, gostava muito
de ficar em casa, e não gostava de ter muita gente em
casa. Agora, eu não via Sivuca estudar. Em 32 anos de
casada com ele, Sivuca nunca abriu a sanfona dentro de
casa pra estudar. Quando era pra tocar, assim, fazer um
show em tal canto, montar um repertório para o show tal,
ele marcava um ensaio, reunia os músicos dentro de casa
e lá, no cantinho que ele tinha, de ele trabalhar,
trazia os músicos e ali ensaiava. Mas também não gostava
muito de ensaiar. Às vezes ele só fazia as partituras,
entregava pros músicos e mandava eles se virarem.
Ensaiava algumas marcações com a banda, mas muito pouco.
E como é que ele lidava com os shows? Tinha
aquela ansiedade de muitos músicos em apresentações, ou
se sentia bem?
O palco é sempre uma coisa difícil. Mas ele se sentia
bem. O que ele tinha de preocupação não era nem da parte
dele, e sim do som estar bom, de não ter aqueles apitos,
que ele não podia se ouvir direito. Esse tipo de coisa
ele esse preocupava. No geral, ele gostava de
tranqüilidade.
Ele gostava de ler?
Ele lia. Ultimamente ele tava lendo muito a Nélida
Piñon, “A República dos Sonhos”, que ele deu até um
depoimento na Folha de São Paulo sobre o livro, poucos
dias antes de morrer. E ele tava relendo “Os Sertões”,
do Euclides da Cunha, que ele já tinha lido umas 10
vezes, mas estava relendo porque estava compondo uma
sinfonia, um poema sinfônico a partir d` “Os Sertões”. E
estava lendo outro livro, que eu não me recordo o nome,
mas do Guimarães Rosa.
Há uma célebre história em torno de outras
letras para “João e Maria”, que teriam sido feitas antes
daquela do Chico Buarque. O que é que tem de verdade
realmente nessa questão, que ele comentava com você?
Ele fez “João e Maria” com 17 anos, em 1947, quando
morava em Recife. Ele tinha começado a tocar, fazia
serenata naquela época, 60 anos atrás. E aquela música
que ele fez, aquilo caiu no buchicho dos músicos,
coleguinhas. amigos da patota dele, e alguém mostrou uma
letra praquela melodia, ainda naquela época. Ele não
gostou da letra, porque a letra tinha umas palavras que
não tinham nada a ver com o clima da música. E quando
ele me mostrou, realmente era um horror... Não lembro o
nome dessa pessoa, mas estou atrás dela em Recife, atrás
dessa letra. O rapaz era compositor, fazia letras por
lá. Mas o Sivuca não gostou, não aceitou parceria, e
foi-se embora de Recife. E você acredita que ele
esqueceu essa música? Nunca tocou, nunca gravou. Quando
nós voltamos ao Brasil, em 76, o Chico Buarque pediu uma
música pra algo que ia acontecer no Canecão, com Elizeth
Cardoso, uma coisa assim. Queriam uma música pra Chico.
O Sivuca começou a tentar fazer, até num órgão
eletrônico Yamaha, muito bonito, que a gente tinha
trazido dos Estados Unidos. Ele ficava nesse órgão,
tentando fazer uma, fazer outra. Aí de repente, eu
fazendo as minhas coisas dentro de casa, pertinho dele,
a gente passando uma chuva num apartamento pequenininho
no Rio de Janeiro, enquanto esperava outro, aí ele faz a
melodia (cantarola). E eu: “Meu filho, que coisa linda é
essa, meu filho?”. E ele: “Cê gosta, é, minha filha?”.
“Eu gosto. É essa aí meu filho, a música pro Chico
Buarque”. Aí ele lembrou da música inteira, que ele
tinha esquecido. Fez algumas aparas, colocou uma
harmonia de um músico bem mais entendido em harmonia do
que na época que ele havia feito, né? Aí pronto,
entregou pro Chico, dizendo que tinha feito a música em
1947. E o Chico disse: “Puxa, nessa época eu tinha três
anos, falava ‘Agora eu era’, ‘Agora eu era’...”. E daí
fez a letra, que o Sivuca simplesmente adorou quando
ouviu.
E “Feira de Mangaio”, outro grande clássico,
como nasceu?
A letra e a música de “Feira de Mangaio” fui eu que fiz.
Eu estudava na Columbia, em Nova York, e comecei a fazer
a música na sala de aula lá. A coisa veio todinha,
melodia e letra, tinha até mais dois versos que eu
cortei. Depois da aula, no final da manhã, parei no
McDonalds na esquina da minha casa e telefonei pra ele.
Ele estava no escritório de Harry Belamonte. “Meu filho,
olha, fiz uma música assim, assim, assim (cantarola)”.
Aí cantei a música toda pra ele, letra e música. De
noite, quando ele chegou em casa, pegou a sanfona e a
gente começou a tocar. Ele não mudou nada da música, só
uma palavra: “Zefa de Purcina” (do verso “Tem Zefa de
Puricna fazendo renda”). Era outro nome que eu tinha
colocado, mas eu não gostava. Aí pedi a ele que me desse
o nome de uma pessoa, com tantas sílabas. E ele disse
Zefa de Purcina, e encaixou direitinho.
Que lembranças você tem da época em que conheceu
Sivuca, dos primeiros passos da união de vocês?
Bom, conheci Sivuca em João Pessoa, tava terminando meu
curso de medicina, um amigo meu foi lá em casa me
apanhar pra ir ver Sivuca. Ele tava vindo da África, com
um show que tinha feito lá, na luta daquele Mohammed
Ali. Ele fez o show lá e tinha dois meses sem fazer nada
nos Estados Unidos, se mandou pra cá. Um amigo meu
passou lá em casa e me disse que eu tinha que conhecer o
Sivuca. Eu fui, conheci, apertei a mão e dei pra ele um
livro meu, que eu tinha acabado de lançar, chamado “O
Bailado das Sardinhas”. Entreguei o livro a ele. No
outro dia, recebo um convite de outra família dizendo
que ia oferecer um jantar a Sivuca, e que ele aceitava
com muito prazer, desde que Glorinha Gadelha estivesse
lá. Ele havia lido meu livro e queria me conhecer
melhor. Depois eu voltei pros Estados Unidos, e ele
começou a telefonar, escrever, a me convidar pra casar
com ele... E daí foram 32 anos ao lado dele.
Com tantas viagens e tendo morado em vários
países, Sivuca foi um músico bem globalizado, antes
dessa palavra cair em voga...
Antes de qualquer um chegar, ele foi e fez. Sivuca
falava seis idiomas, falava muito bem o francês, já
tinha morado em Lisboa, depois cinco anos em Paris e nos
Estados Unidos 13 anos. Ele falava seis idiomas, bem
mesmo. Apesar disso, quando eu o conheci, não achei que
ele estivesse nada bem. É tanto que eu o trouxe. Ele
queria voltar pro Brasil, mas tava precisando de alguém
que o convidasse, ajudasse a voltar, porque ele tava
numa fase muito complicada na época.
Já pelos problemas de saúde?
Em abril de 75 eu me casei com ele, e vi que ele não
tava bem, que ele tava muito doente. Eu já havia
pressentido em 74 que as coisas não tavam muito bem pra
ele. Quando eu casei com ele, aí não tive dúvida, eu
médica recém-formada, sabendo muito das coisas, que hoje
não sei mais. Levei ele a vários médicos lá e, como vi
que não iam fazer nada sério, pra valer, eu disse pra
ele: “Se eu fosse você, eu ia tratar desse seu problema
no Brasil”. Aí ele veio pra cá e, quando foi dado o
diagnóstico, já era um câncer, já era uma metástase. Foi
operada uma metástase ganglionar de um câncer primário
de tireóide. Quando a gente abriu, tirou um tumor do
tamanho de uma laranja. Fomos aos poucos, em várias
cirurgias, tirando o resto da tumoração toda. Eu parei
de contar depois da décima-quarta cirurgia. Foi uma dor
muito grande, ao lado da alegria, da música, das
realizações, tinha essa luta muito difícil. Ele foi um
lutador muito grande, e eu também. Eu cuidei dele até o
último instante, foi muito esse lado. Como toda moeda
tem duas faces, tinha a face da música, do palco, dos
holofotes, que muita gente quer assumir agora. Mas teve,
por 32 anos, a outra face da moeda, que foi muito
escura.
E nos últimos anos?
Isso veio piorando. Os últimos 10 anos foram muito,
muito difíceis. Os últimos seis, quase que eu não
resisto (se emociona). Agora, você vê que ele, mesmo
assim, tendo radioterapia, cirurgia em cima de cirurgia,
fazendo tudo pra ele não perder o movimento dos braços,
pra ele continuar tocando, com uma equipe de 11 médicos
pra cuidar dele, ele ajudava muito. Porque ele era um
ser de luz, era sempre muito cooperativo com os médicos.
E tinha eu pra cuidar dele pessoalmente, 24 horas por
dia, equilibrando tudo, tudo. Ele tinha anemia crônica,
devido à doença, e uma grande depressão, também devido à
doença. Essas eram as duas coisas difíceis de vencer:
mantê-lo equilibrado, na parte do organismo, e também
psicologicamente. Mas ele ajudava muito.
Pra terminar, uma curiosidade: como é que ele
reagia nas tantas vezes em que era confundido com o
Hermeto Pascoal?
Ah, o pessoal confundia mesmo, confundia. Mas os dois
ficavam muito bem. Quando a pessoa insistia em
cumprimentar um como se fosse o outro, eles deixavam
passar. “Ô, Hermeto, tudo bem?”. E o Sivuca: “Tudo
bem!”. O outro insistia que era, ele deixava passar. Não
tentavam mais convencer as pessoas do contrário não.