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O dicionário de Lampião

03/06/2004

 

 

Fabiano Accorsi/ÉPOCA

POLIGLOTA  Pernambucano radicado em São Paulo, Navarro fala as várias 'línguas' do país
 

JOSÉ TELES

   Jornalista, 47 anos, o pernambucano Fred Navarro lançou, em 1998, uma compilação de termos e expressões empregadas pelos nordestinos, num dicionário que intitulou Assim Falava Lampião. Mas não ficou por aí. Continuou pesquisando por mais cinco anos o linguajar dos Estados da região. O resultado está no Dicionário do Nordeste. Navarro, que atualmente, mora em São Paulo, concedeu entrevista ao Jornal do Commercio sobre seu livro, e as peculiaridades do quase dialeto nordestino

JORNAL DO COMMERCIO – Por que várias expressões contidas no seu dicionário não constam dos dicionários clássicos?

FRED NAVARROÉ puro desconhecimento, ou seja, ignorância mesmo. Se pensarmos nas outras regiões do Brasil, que obviamente também têm lá suas palavras e expressões próprias, dá para imaginar o tamanho do “rombo”.

JC – No prefácio, Marcos Bagno ressalta como a imprensa é conservadora, não aceitando palavras que não façam parte da chamada língua culta.

FN – O problema é que herdamos dos portugueses esse gosto meio rococó pelo “falar difícil”. Não é à toa que até hoje o nosso sistema judiciário utiliza uma linguagem tão esotérica, parece armênio. Nossa imprensa deveria ser mais coloquial, aproximando-se da linguagem do cidadão comum, que anda na rua, e que lê jornal.

JC – A importância desse livro não é apenas catalogar, como também registrar expressões que, por culpa sobretudo da TV, vão desaparecendo no Nordeste. Por exemplo, “bala perdida”, em lugar de “bala doida”, como se dizia até uns pouco anos atrás.

FN – É um trabalho de memória. Há palavras e expressões que se não forem registradas tendem a desaparecer. Nossos meios de comunicação em geral não dão importância a esse aspecto de nossa cultura, o que denota preconceito. É quase como se nossas elites tivessem vergonha de como o povo fala, quando deveria acontecer o contrário.

JC – No Sertão, principalmente, esta influência da mídia ainda é mais avassaladora. Expressões como “dar de corpo” (com o significado de “defecar”), que já foi usada no interior, não é mais falada, e nem está no dicionário.

FN – Vou incluí-la numa próxima edição, pode ter certeza... Mas discordo em parte de você, o Sertão talvez tenha sido menos influenciado do que o litoral. Penso que a juventude das grandes cidades é mais permeável ao linguajar televisivo do que a do interior. Em geral elas viajam mais, trocam mais informações do que nossos sertanejos.

JC - Chama atenção no livro é a quantidade de sinônimos para orgãos sexuais, e para o sexo em geral. É impressão, ou os nordestinos são mais desavergonhados ao falar de sexo?

FN - É impressão, pelo que pude investigar. Todas as línguas e dialetos têm enormes quantidades de palavras, gírias e neologismos para os órgãos sexuais. No nosso caso, a diferença é a quantidade de palavras que apela para o bom humor, a sacanagem, a picardia.

JC – Além de sexo, nomes de doenças são usados como se fossem palavrões. Isto se deve à miséria da região, onde essas doenças eram tão comuns que se tornaram xingamentos?

FN - Sim. As expressões derivadas de bexiga comprovam isso: bexiga-lixa, da bexiga, bexiguento, com a bexiga e outras.

JC - Sei que é cedo, mas você já pensa em uma nova edição ampliada. Ou melhor, continua coletando termos, expressões, para essa nova edição?

FN – Esse trabalho não tem fim, a língua é um organismo vivo e está se modificando a cada novo dia.

(© JC Online)


Dicionário contém termos ignorados pela alta cultura

   Um trabalho de oito anos, com cerca de 200 livros lidos, 220 discos pesquisados, além de centenas de anotações tomadas em conversas no dia-a-dia, informações coletadas em todo o Nordeste. Assim o jornalista e escritor Fred Navarro chegou aos cinco mil verbetes do seu Dicionário do Nordeste (Estação Liberdade, 399 páginas), que será lançado hoje, às 19h, na Livraria Imperatriz, do Shopping Tacaruna. O dicionário é a edição ampliada de Assim Falava Lampião, de 1998, primeira compilação de termos e expressões nordestinas escrita por Navarro, que continha 2.500 verbetes.

   Uma obra desse tipo redime um pouco o “descompasso, quase abismo, entre o que se produz nos meios acadêmicos em termos de conhecimento da língua falada pelos brasileiros e o que circula na sociedade em termos de idéias sobre essa mesma língua”, conforme ressalta, Marcos Bagno, professor de lingüística da Universidade de Brasília. Uma constatação fácil. Basta folhear o livro para se deparar a cada página com vários termos que não constam dos dicionários clássicos da língua portuguesa feitos no Brasil.

   A preocupação com a especificidade do linguajar regionais do País é antiga. Já em 1920 foi publicado O Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral, dois anos mais tarde, O Linguajar Carioca, de Antenor Nascente, e, em 1931, A Língua do Nordeste, de Mário Marroquim, preciosas fontes para os estudiosos até hoje. Em anos recentes, têm surgido minidicionários de baianês, pernambuquês, porém nenhum com o fôlego do livro de Fred Navarro.

(© JC Online)


Confira lista de verbetes

Ababacado - Panaca, leseira, palerma: "Vai ficar aí parado, com essa cara de ababacado?"

Bamburim - Jogo infantil consistindo em jogar uma moeda para o alto para ver quem consegue pegá-la antes de chegar ao chão  

Casa de Noca - Lugar onde ninguém manda, casa-de-mãe-Joana. "Silêncio! Mas que barulho é esse? Isso aqui tá parecendo mais a casa de Noca!"  

Dor-de-menino - Dores do parto, as contrações que antecedem o parto, de acordo com Luiz Gonzaga: "-Lula! Pronto, patrão! - Monte na bestinha melada e risque! Vá ligeiro buscar Samarica Parteira que Juvita  já tá com dor-de-menino..."  

Estar pebado - Sem saída, enrascado, encurralado, na PB, CE e PE. "João está pebado... Comprou um carro novo e não está conseguindo pagar as prestações".

Filar - O verbo tem dois sentidos: 1. "Colar", receber dicas ou respostas de terceiros para fazer melhor uma prova ou um teste. "Só me salvei porque filei de Goretti o tempo todo". 2. Faltar à aula, ao trabalho ou a um compromisso, o mesmo que gazear, gazetar ou gazetear  

Góia - Restinho do cigarro, bituca, coxia, piúba. "Você deixa o góia pra mim, por-favor?"  

Invocado - Cheio de direito, brabo, brigão. "Puxa, nunca conheci na vida um cara mais invocado...". 2. Exagerado, em demasia. "Tinha um ciúme invocado, emburrado..."  

Jebu - Sinônimo de chabu, fenônemo que acontece quando falha um dos fogos de São João  

Kombeiro/kombista - Perueiro, motorista de kombi-lotação. A primeira é usada em PE e a segunda em AL  

Lá e Lô - Frente e verso, um lado e o outro, um extremo e o outro. Batida lá e lô, no dominó, é quando uma pedra, com duas diferentes faces (terno e quina, por exemplo), encerra o jogo nas duas extremidades  

Malocar - Esconder, subtrair, encafifar. "Quero saber quem malocou o meu isqueiro!"  

Não-me-toque - Doce feito com tapioca de goma, leite de coco e açúcar, e assim chamado porque desmancha facilmente nos dedos.

Opaba - Na BA é o terreno à beira-mar que costuma alagar nos meses chuvosos. Palavra de origem tupi-guarani
 

Pabola - No CE é sujeito fandarrão, gabola, cheio de goga  

Quartuda - Bunduda, com os quartos largos, em AL  

Reboque - No NE, é sinônimo de prostituta  

Sambocar - Tirar o pedaço, arrancar, extrair  

Tá com a bixiga! - Significa "eu não acredito. Isso é impossível!". "O campinense ganhou de 5x0? Tá com a bexiga!"  

Uma cebola / Uma pinóia - São equivalentes a coisa nenhuma. "Tia Eugênia, / que sentia muito mais alívio que saudade com aquela partida, / resmungava baixinho: / Visitar uma pinóia, dizem isso porque moram longe / e ninguém vai aparecer nessa tal de rua Bambina". "Nos rumos do encantamento", em Janela, de Marly Mota.  

Vuco-vuco - 1. Confusão, fuá, bagunça. 2. Lugar apertado, rua estreita ou loja cheia de gente.  

Xeleléu - Em Pernambuco é coisa ou pessoa sem importância, sem valor. "Que roupinha mais xeleléu, hein?  

Zunir - Atirar alguma coisa em alguém, jogar pedras: "Zuniu a pedra e feriu o menino; Zuniu ovos podres no orador".

(© JC Online)


Palavrório arretado

Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro, reúne 5 mil expressões usadas da Bahia ao Maranhão

BEATRIZ VELLOSO

Leitor, atenção: o texto que vem a seguir não é bolodório. Entender o que virá nas próximas linhas pode ser de lascar o cano, mas não desanime. Caso não consiga acompanhar o raciocínio, não fique popeiro - fique peixe. O Dicionário do Nordeste, escrito pelo jornalista pernambucano Fred Navarro, esclarece todas as dúvidas. São cerca de 5 mil verbetes, usados da Bahia ao Maranhão. O livro, resultado de oito anos de pesquisa, é mais do que uma reunião de palavras e expressões: é um passeio pela história e pela cultura dessa região do país.

Para escrever o dicionário, Navarro (que nasceu no Recife, mas mora em São Paulo há 15 anos) fez inúmeras viagens ao Nordeste. Visitou cidades do litoral e do interior da Bahia, do Ceará, de Alagoas, do Piauí, da Paraíba. Recolheu verbetes até no arquipélago de Fernando de Noronha. Leu e consultou centenas de livros - de clássicos como o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, ou Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, a romances como Os Tambores de São Luís, de Josué Montello. E ouviu muita música: Mundo Livre S/A, Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Mastruz com Leite, Lenine.

 

Bom humor é a marca registrada do vocabulário da região

O autor comprovou o que já suspeitava: o vocabulário do Nordeste é marcado, principalmente, pelo bom humor. 'O falar dos nordestinos tem uma picardia e uma malandragem que só encontram par nas gírias dos cariocas', diz Navarro. Ele explica que muitas palavras consideradas erradas (como 'fruita' ou 'avoar') existem, na verdade, desde os tempos do início da colonização do Brasil. 'No sertão, onde houve menos contato com as novidades que chegavam ao litoral, o português clássico ficou mais preservado', explica.

Outra curiosidade é o fato de que todos os povos que passaram pelo Nordeste em algum período da História, de franceses a ingleses, deixaram marcas no vocabulário. Em alguns Estados, até hoje usa-se 'brote' para pãozinho ou biscoito - herança direta do 'brood' holandês, que quer dizer pão. E mais: muitas expressões usadas no Sul e no Sudeste do país com determinada acepção surgiram no Nordeste - com significados opostos. É o caso de 'o cão chupando manga'. 'Em São Paulo o pessoal diz isso para descrever uma mulher muito feia. Mas no Nordeste o termo é usado para uma pessoa que sabe muito e é muito boa em alguma atividade', explica Navarro. Em tempo: para quem não entendeu as primeiras linhas deste texto, 'bolodório' quer dizer conversa mole, 'de lascar o cano' significa difícil, trabalhoso, 'popeiro' equivale a irritado e 'fique peixe' é o mesmo que fique tranqüilo.

Título
Dicionário do Nordeste
Autor
Fred Navarro
Editora
Estação Liberdade
Preço e Páginas
R$ 36/408

(© Revista Época)


Trechos do Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro

Abufelar
1.
O sentido mais comum é irritar, pegar no pé, encher o saco: "Pare de me abufelar, está ouvindo?" 2. No CE, porém, tem também o sentido de pegar escondido alguma coisa, sem pedir autorização ao dono: "Ela não podia abufelar meu vestido sem me pedir! Ela vai ver só!"

Agoniado [u]
Com dor de barriga, apertado: "Ela chegou todfa agoniada e faz mais de meia hora que não sai do banheiro." Ver dor de necessidade.

Bicuda / bicudo
1.
No MA significam bicanca, chute na bola com o bico da chuteira. 2. Em algumas regiões do Nordeste, bicudo é sinônimo de barbeiro, procotó, o inseto que transmite a doença de Chagas.

Brau
1.
Na BA, é cafona, brega, segundo Caetano Veloso: "Preta Chique / Essa Preta é Bem Linda / Essa Preta é Muito Fina / Essa Preta é Toda a Glória do Brau"...

É lasca!
1.
É dito quando se comemora um grande feito ou uma bioa not[icia: "Nosso time é lasca! Não perde pra ninguém há dois meses!"" 2. Ou justamente ao contrário, em tom de lamento: "É lasca! Levar o gol no último minuto é sacanagem, é azar demais!"

É lenha!
Na BA equivale a dizer "é lasca!", "é fogo!", "é uma parada!". O uso do verbo lenhar, no sentido de trepar, copular, tem origem na região Norte.

Embirar
Casar, juntar, unir: "Os pais faziam o arranjo, vinha o padre e embirava o casal de trouxas." Caetés, Graciliano Ramos, citado no Dicionário Aurélio. Embira é um arbusto que fornece fibra de boa qualidade.

Homeopatia
Em PE é sinônimo de cachaça, pinga, dengosa, pindaíba.

Lesado
No CE é igual a idiota, abilolado, besta como aruá, celé.

Leseira
1.
Bobeira, idiotice, vagareza: "Não se pense, por isso, que na base do Dom Pedro só se fala leseira, camaradas." Um chope para a gordinha, Ronildo Maia Leite...

Malacas
Em PE e em AL quer dizer seios murchos, moles, caídos: "Dona Zefinha tem duas malacas enormes, não é?" Ver peitas.

Pinicão
Sinônimo de beliscão.

Torengo
Em PE é pessoa muito baixa, baeco, toco de amarrar besta.

Xeta [ê]
1.
Um beijo mandado de longe pelos ares. 2. Provocação, charme, gesto de sedução.

(© Revista Época)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


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