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Festa da música torta

 

Tom Zé, que faz show no Sesc Santana em tributo ao álbum "Estudando o Samba"

Tom Zé faz show para festejar os 30 anos de "Estudando o Samba", disco que "entortou" o gênero e foi lançado no exterior, em 1990, por David Byrne

RONALDO EVANGELISTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos artistas mais complexamente fascinantes da música brasileira, Tom Zé é uma usina de idéias, jogos e brincadeiras musicais. Sua obra-prima, o álbum "Estudando o Samba", lançado em 1976, portanto há 30 anos, é um convite a constantes descobertas e redescobertas, que serão mostradas pelo artista no Sesc Santana, em São Paulo.

Vai de amanhã a domingo o evento "Estudando o Samba", no qual tocam alguns artistas que incorporam a riqueza musical de Tom Zé (Curumim, Wado e Junio Barreto) e o próprio, que sobe ao palco no fim de semana.

Em seu apartamento no bairro paulistano de Perdizes, Tom Zé, na sexta-feira, revelou à Folha segredos do disco que colocou seu nome no mapa da música mundial, quando foi relançado no exterior (com pequenas alterações e sob o nome de "The Best of Tom Zé") pelo selo Luaka Bop, de David Byrne, em 1990.

"O nome do disco ia ser "Entortando o Samba'", contou ele, com o LP na mão e a memória longe. "Mas eu acabei achando muito pretensioso. Aí resolvi colocar "estudando", que em música popular não quer dizer nada, mas em erudita é sofisticado. A minha idéia era pegar tudo o que eu conhecia de samba e botar na máquina de moer carne. Eu queria me vestir com o samba e fazer uma metamorfose tão grande como havia sido a bossa nova."

A inspiração, ele lembra, nasceu de conversa com o maestro tropicalista Rogério Duprat e do fato de o samba na época estar vivendo um momento difícil. "Em 1975, quando comecei a fazer o disco, o samba estava muito denegrido, todo mundo dizia que estava repetitivo, estava mal. Aí um dia o Rogério Duprat me falou uma coisa que me iluminou, disse: "Tom Zé, você veja, o samba está esculhambado, mas, se você pegar aquela estrutura que faz o samba -o surdo, o tarol, a caixa, o tamborim, a cuíca- e analisar, isso é de uma sofisticação que não tem tamanho". E, quando ele me disse isso, rapaz, eu fiquei num contentamento que me deu a idéia de fazer o "Estudando o Samba"."

O baiano promete que irá tocar as músicas do álbum, mas não todas, "senão é muita música, vira um inferno, ninguém agüenta". Ele pretende apresentar a "versão David Byrne" do álbum: "O David Byrne fez uma intervenção que ficou boa. Para lançar o disco "The Best of Tom Zé" nos Estados Unidos, ele invadiu o "Estudando o Samba" com uma música do álbum "Nave Maria" e três do álbum "Todos os Olhos", que é o que eu pretendo tocar. Vai ser a primeira oportunidade de fazer isso, porque na época eu nem cheguei a fazer shows direito do "Estudando o Samba". Eu não tinha banda, quando ia tocar, chamava um músico qualquer".

Novo andamento
Tom Zé se lembra da época em que, logo após o fim da Tropicália e seu afastamento do movimento, passou a se dedicar às suas próprias particularidades. Nesse percurso, começou a se tornar um artista "estranho", "menor", "esquecido", "da linhagem dos patinhos feios", em suas próprias palavras, sempre proferidas com bom humor.

"Quando eu fiz o disco, achava realmente que tinha feito uma coisa importante, mas ninguém ouvia. Eu chegava para amigos como Décio Pignatari e Haroldo de Campos e inventava uma desculpa para pedir a eles para ouvir, dizia: "Eu agora abri as pernas, fiz um disco de sambão". Aí todo mundo ouvia e depois vinha me dizer, "não, está tudo normal'", conta, entre gargalhadas.

Ele fazia sambão, mas jogando com suas próprias regras, usando seu aprendizado de faculdade de música pós-moderna que freqüentou na Bahia. Pequenos detalhes, que deixavam sua música com gosto de acontecimento único, sem quebrar a fluidez do samba ou a riqueza do seu ritmo.

Reinterpretou "A Felicidade", de Tom e Vinicius, mudando seu andamento para o pouco usual 6/8. Ou simplesmente cortou um tempo do compasso da música "Só" no exato momento em que a letra fala sobre o descompasso do autor no riso de sua musa.

"É ótimo botar pequenos segredinhos para a pessoa do outro lado descobrir", resume ele. Segredinhos que continuam sendo descobertos 30 anos depois.

(© Folha de S. Paulo)


ANÁLISE/DISCO

"Estudando o Samba" se afirma entre as obras-primas dos anos 70

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Só o fato de ter sido a garrafa atirada ao mar que salvou Tom Zé de duas décadas de ostracismo já faria de "Estudando o Samba" um grande acontecimento. Mas seu mérito é bem maior: ouvido hoje, este álbum do inquieto compositor baiano se afirma entre as obras-primas da música brasileira nos anos 70.

Naquele mesmo ano de 1976, ao formarem com Maria Bethânia o quarteto Doces Bárbaros, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa sinalizaram não ver mais futuro nas críticas e provocações estéticas do movimento tropicalista, que também contara com Tom Zé. Ali optaram pelas carreiras mais seguras e confortáveis de autores e intérpretes de MPB.

Solitário, Tom Zé insistia no caminho oposto. Depois de lançar os elogiados, embora pouco ouvidos, "Se o Caso É Chorar" (1972) e "Todos os Olhos" (1973), enveredou de vez pela contramão do sucesso popular. Incomodado pelo alto grau de diluição que atingia o samba, naquele momento, Tom Zé decidiu desconstruí-lo, nas 12 faixas de "Estudando o Samba".

A versão de "A Felicidade" (de Tom Jobim e Vinicius de Moraes), que surge no disco logo após o estranho e dissonante samba "Mã", é exemplar. Como um João Gilberto minimalista, Tom Zé recriou o clássico da bossa nova, reduzindo-o a um esqueleto harmônico e rítmico, quase interrompido por uma surpreendente intervenção orquestral.

Mais experimental ainda é "Toc". O repetitivo pulso de samba mantido por um cavaquinho e um violão serve de trilha para uma sucessão de sons inusitados: fragmentos orquestrais, vozes, teclas de máquina de escrever, gritos, ruídos escatológicos.

Já em "Tô", parceria com o sambista Elton Medeiros, Tom Zé parece sugerir o sentido de seu "estudo" do samba: "Eu tô te explicando pra te confundir / Tô te confundindo pra te esclarecer / Tô iluminando pra poder cegar / Tô ficando cego pra poder guiar".

Ironicamente, quando encontrara enfim a essência de sua obra, Tom Zé se viu na iminência de interromper a carreira musical. No texto de apresentação de "Estudando o Samba", Elton Medeiros já revelava que o parceiro "teria que abandonar o lado de pesquisa de seu trabalho", caso este disco também fracassasse nas vendas. Para nossa sorte, o genial Tom Zé jamais desistiu.

Carlos Calado é jornalista e crítico musical, autor de "Tropicália - a História de Uma Revolução Musical", entre outros

(© Folha de S. Paulo)

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