Ele passou a vida dentro d’água,
buscando navios a nado. Conheça a incrível história
desse velho do mar
por Marcia Bindo
Do alto do barco, dá para ouvir a
imensidade de mar chamando. Uma voz macia, sussurrada.
Ele apruma os pés na beirada, estende os braços para
trás, estufa o peito e salta num vôo ligeiro. A água
suaviza a queda, envolve-o com um abraço de boas-vindas.
Está em casa. Logo os botos vêm chegando, como de
costume, para fazer companhia na travessia.
Esta é a história de um peixe chamado
José. Há mais de seis décadas ele passa a maior parte do
tempo na água. Nada quase diariamente cerca de 10
quilômetros por dia, está habituado a saltar de navios
de mais de 40 metros de altura e é capaz de façanhas
homéricas no mar – mesmo com seus 80 anos. Zé Peixe,
como é conhecido em Aracaju, é reverenciado por
marinheiros dos sete cantos por sua humildade, bravura e
profundo conhecimento das coisas do mar.
Uma lenda viva
E, como toda lenda, tem suas
particularidades. Desde que começou a trabalhar no porto
de Aracaju, Zé Peixe nunca mais tomou um bom banho de
chuveiro. Para quê, se está sempre na água? Também quase
não bebe água doce. Gosta mesmo é de dar uns golinhos de
água salgada nos trajetos que nada. “Faz um bem danado à
saúde”, diz ele.
Conhece como ninguém os segredos da Boca
da Barra, onde o rio Sergipe se abre para o mar e bancos
de areia se formam de uma hora para outra, colocando em
risco as embarcações. Sabe a profundidade das águas pela
cor e as correntezas pela variação de temperatura e
direção do vento.
Zé Peixe é o prático mais conhecido do
planeta. Prático é o sujeito que ajuda os comandantes a
conduzir os barcos na entrada e saída do porto,
orientando-os a manobrar com segurança. Sua presença é
obrigatória em qualquer cais do mundo no momento de
atracagem e saída dos navios. O que faz de Zé Peixe uma
espécie rara é a maneira como trabalha: ele vai buscar o
navio a nado, enquanto seus colegas recorrem a um barco
de apoio. E, quando tira o navio do porto, em vez de
voltar de barco ele zapt!, salta no mar. Faz assim:
enrola a camisa, coloca junto com os documentos e os
trocados em um saco plástico e amarra fi rme no calção;
mergulha e volta para casa com braçadas elegantes,
ritmadas, sem movimentar as pernas para não atiçar os
tubarões. “Se for uma distância mais ou menos, o
importante é não se afobar. O jeito é não brigar com as
ondas nem ir contra a correnteza”, ele fala, sempre
gesticulando suas nadadeiras.
Quando Zé Peixe chega ao porto é uma
alegria só. Ele curva seu corpo para cumprimentar
funcionários, marujos e capitães, como se os estivesse
reverenciando. “Não existe ninguém como ele”, diz um.
“Uma fi gura lendária de Aracaju”, afi rma outro.
“Peixinho é um ídolo”, conta outro homem do mar.
É certo que o porto de Aracaju não é lá
muito movimentado. Mas, por causa de Zé Peixe, ganhou
fama internacional, espalhada por navegantes de fora que
lá atracaram. “Os gringos me chamam de Joe Fish”, diz.
Certa vez, um capitão russo de um cargueiro chegou a
pedir que o detivessem quando estava para se lançar ao
mar – achou que ele estava se suicidando.
Zé é peixe miudinho. Tem apenas 1,60
metro de altura e 53 quilos. Mesmo franzino, já realizou
muitas grandezas. A maior proeza foi quando socorreu o
navio Mercury, que ardia em chamas em alto-mar, vindo
das plataformas da Petrobrás e com funcionários a bordo.
Zé pegou carona num rebocador, ligeiro chegou ao navio e
conduziu a embarcação até um ponto onde todos pudessem
saltar e nadar para terra fi rme. “Eu só fiz o que tinha
de fazer, compreende?” Ele não gosta de falar muito de
si mesmo. “Por causa de sua condição física exemplar,
ele conseguiu salvar inúmeras vidas”, conta Brabo, o
chefe dos práticos, que há 26 anos convive com Peixinho.
Em 1941, ele e toda a população de Aracaju viram na
praia os corpos de náufragos de três navios bombardeados
por embarcações alemãs na Segunda Guerra Mundial. A
partir daí, ninguém nunca mais se afogou perto dele.
Maré cheia
Desde menino novo, Zé dá suas pernadas
no rio Sergipe. Os pais, dona Vectúria e seu Nicanor,
que ensinaram. De sua casa, era só cruzar a rua de terra
para dar no rio. Em tempo de maré cheia, a água vinha
bater na porta. Moleque arretado, José Martins Ribeiro
Nunes aprendeu a atravessar o rio para chupar caju na
outra margem do rio. Aos 12 anos já nadava muito bem.
Sua casa era vizinha à Capitania dos Portos e logo foi
reparado pelos marinheiros. De observar a destreza do
menino, um almirante o batizou novamente – virou Zé
Peixe. Quando chegou o tempo certo, com 17 anos,
formou-se prático. Dos cinco irmãos, Rita era a única
que acompanhava as peripécias a nado. Naquela época,
meninas não se banhavam no rio nem podiam sair andando
com trajes de banho – só ela, no meio da molecada. Zé
lhe ensinou tudo sobre o mar. “Ensinou também meus fi
lhos e netos. Ele amarrava nos braços bóias de coco
seco, que não afunda”, diz Rita, uma década mais nova,
que de tanto nadar com o irmão levou o sobrenome Peixe.
Zé nunca saiu da casa onde nasceu, umas
das mais antigas de Aracaju. Nem mesmo quando se casou,
há mais de 40 anos (está viúvo há 20 e não teve filhos).
Ajeitou uma casa para a mulher, mas não arredou o pé de
lá – sempre estava cuidando de alguém da família, ora a
mãe, ora um irmão enfermo. “Vou morrer aqui”, diz. “Mas
só quando o capitão lá de cima desejar.”
Hoje uma avenida asfaltada o separa do
rio. Quando não está no porto, Zé vai até lá para cuidar
de seus três barquinhos de madeira ancorados. “Se não
tiver um barquinho pra brincar fico doidim.” O casebre
por fora é pintado de branco, mas dentro é todo azul.
Está entulhado de cacarecos que juntou pela vida, entre
eles títulos e medalhas. Não joga nada fora e não gosta
que arrumem sua bagunça. Tudo remete ao mar: miniaturas
de barcos espalhados pelos cômodos e desenhos de lápis
de cor grudados nas paredes. E muitas imagens de santos
católicos. Quem chega da família já vai pedindo a
bênção. E tem também quem chega para pedir uns trocados.
É que Zé costuma distribuir seu salário aos pedintes.
Velhos pescadores que não podem mais trabalhar,
desempregados e inválidos conhecem de perto sua bondade.
Espécie rara
Mesmo aposentado há mais de 20 anos, Zé
Peixe continua trabalhando – por gosto. Acorda cedo, com
o escuro. Não tem hora certa para trabalhar. Depende do
fluxo de navios no porto. E das marés. Acostumou seu
corpo a comer pouquinho, porque barriga cheia não se dá
com o mar. Dá gastura. De manhã, basta um pão com café
preto. E, depois, só fruta. Quando passa o dia inteiro
no porto, faz jejum. O doutor já confi rmou: Zé tem
coração de menino. Nunca fumou nem bebeu. Seu vício
mesmo é o mar.
Se não está a pé, está com sua
bicicleta. Sempre descalço. Só usa sapatos aos domingos,
para entrar na missa, ou em ocasiões especiais. “Teve
uma época que, para não fazer feio, o danado andava com
um sapato. Um dia descobri que o sapato não tinha sola”,
confessa o amigo Zé Galera. “Ele é o único que tem
autorização para andar maltrapilho no terminal marítimo,
sempre de bermuda acima da cintura e pés no chão. Por
ser uma raridade, um cidadão totalmentefora do padrão,
ele virou uma exceção às regras”, conclui Galera, que
aprendeu a nadar com ele aos 6 anos e hoje é seu
companheiro na praticagem.
“Ele é meu herói”, diz o deputado
Fernando Gabeira. Quando estava exilado na Alemanha, o
deputado viu uma reportagem sobre Zé Peixe. A história
do bravo nadador chamou sua atenção. Quando retornou ao
Brasil, foi conhecer de perto o tal sergipano. “É uma
figura extraordinária. Tentei fazer um filme sobre a
vida dele, mas ele não quis”, conta.
Zé viveu numa época em que não havia
carro nem televisão. Viu o manguezal sendo aterrado e os
navios minguando com o impulso rodoviário da década de
50. Enquanto Aracaju é tomada por edifícios e shopping
centers que vão transformando os horizontes da cidade,
Zé Peixe ainda ensina aos sobrinhos e aos filhos destes
os mistérios do rio e do mar. Dizem que o mar não estará
para peixe em algumas décadas. Enquanto isso não
acontecer, Zé Peixe continuará nadando por lá. E como
sempre, ao emergir do mar, fará um pequeno sinal na
testa, agradecendo por mais um dia na água.