Na noite de
28 de
dezembro de
1943, a nata
da elite
intelectual
carioca
embaixadores,
escritores,
poetas e
jornalistas
lotou o
Teatro
Municipal do
Rio de
Janeiro para
assistir à
estréia de
Vestido
de Noiva.
O autor, o
então jovem
dramaturgo
Nelson
Rodrigues,
de 31 anos,
passou todo
o tempo na
antecâmara
de um
camarote,
apavorado,
ora de
frente, ora
de costas
para o
palco, a
úlcera
pegando
fogo. Ao
término do
primeiro
ato, duas
palmas foram
ouvidas.
"Estou
frito",
pensou
Nelson.
Acabou o
segundo ato
e as palmas
minguaram.
Nem as irmãs
do autor
aplaudiram.
Ao fim do
último ato,
o pano caiu,
e com ele um
silêncio
esmagador.
Algumas
palmas foram
ouvidas, e
outras, e
mais,
aumentando
até o teatro
ser tomado
por um
estrondo de
aplausos
frenéticos
que ecoou
por minutos.
Nos dias
seguintes,
Nelson foi
acolhido por
aquela elite
intelectual.
O poeta
Manuel
Bandeira e
os críticos
Álvaro Lins
e Décio de
Almeida
Prado, que
conheciam o
texto, já
haviam feito
elogios
públicos
antes da
estréia.
Gilberto
Freyre,
Augusto
Frederico
Schmidt e
Guilherme
Figueiredo
logo
engrossaram
o coro de
admiradores.
Mesmerizados
com o que
viram -um
show de 132
efeitos de
luz, 140
mudanças de
cenas e 32
personagens
conduzidos
pelo diretor
polonês
Ziembinski
-, Otto
Maria
Carpeaux,
Carlos
Drummond de
Andrade e
Alceu
Amoroso Lima
juntaram-se
àqueles que
passaram a
ver em
Nelson a
grande
novidade do
teatro
brasileiro.
Era isso e
mais. Com
Vestido
de Noiva,
Nelson
Rodrigues
entrava para
o clube dos
pensadores
brasileiros,
pertencente
a uma
geração- a
dos anos 30-
que achava
importante
decifrar o
país. Nos
anos
anteriores
ao seu
primeiro
sucesso nos
palcos
surgiram as
três obras
magnas dessa
corrente:
Casa
Grande &
Senzala
(1933), de
Gilberto
Freyre,
Raízes do
Brasil
(1936), de
Sérgio
Buarque de
Hollanda, e
Formação
do Brasil
Contemporâneo
(1942), de
Caio Prado
Júnior.
Nelson
viu-se nesse
time
atacando em
duas frentes
por muito
tempo
desprezadas
pelos
estudiosos,
pela
distância
que
guardavam do
mundo
acadêmico: a
crônica de
jornal e o
teatro. Em
ambos os
casos,
interessava-lhe
menos o
estilo
rebuscado do
ensaio e
mais a
linguagem
direta das
ruas.
Pode-se
dizer que
Nelson fez a
crônica de
seu tempo
mesmo quando
escreveu
teatro. Na
duas formas,
ele teve o
mérito de
resumir, de
forma
acessível, o
Brasil para
os
brasileiros.
Mas será que
ele próprio
se levava a
sério como
pensador das
coisas
brasileiras?
A crítica de
teatro
Barbara
Heliodora
acha que
sim. "Ele
levava sua
obra muito a
sério, e ela
revela que
ele tinha,
mesmo que
não
verbalizados,
certos
princípios
dominantes
para sua
visão das
coisas",
diz.
De fato,
hoje, depois
de anos
alternando
amor e ódio
em relação
ao
pensamento
vigente
entre os
intelectuais
do país, a
obra de
Nelson
obteve uma
certa
unanimidade-
aquela mesma
que ele,
ironicamente,
considerava
"burra".
Nelson virou
santo até
para a
esquerda,
com quem ele
vivia às
turras por
causa de seu
apoio à
ditadura
militar.
Quase três
décadas
depois de
sua morte,
ele será
celebrado na
Festa
Literária
Internacional
de Parati,
que acontece
entre os
dias 4 e
8/7. Ao
mesmo tempo,
está em
curso a
publicação
de toda a
sua obra. A
Agir acabou
de lançar
uma nova
edição da
coletânea
Elas
Gostam de
Apanhar,
no bojo de
um projeto
ambicioso de
colocar no
mercado, em
edições
caprichadas,
toda a obra
de Nelson
fora do
teatro. A
Nova
Fronteira,
que possui
os direitos
sobre a
dramaturgia
do autor,
prepara uma
edição
trilíngüe
(inglês,
português,
francês) de
Beijo no
Asfalto
(1961), além
de uma
versão em
graphic
novel
da peça.
O JORNAL
COMO
PRINCÍPIO DE
TUDO
Nelson é
resultado da
sucessão de
revezes que
marcou sua
vida pessoal
e do
jornalismo
que praticou
desde cedo.
Fumava
quatro maços
de cigarro
ordinário
por dia.
Ficou
tuberculoso
aos 23 anos.
Era
cardíaco,
enxergava
muito mal e
cultivou uma
úlcera
durante
quase toda a
vida. Foi
repórter
policial,
editorialista
político,
cronista
esportivo e
autor de
folhetins,
crônicas,
contos,
romances,
novelas e
peças
teatrais.
Começou a
escrever
teatro
premido pela
falta de
dinheiro,
mas logo foi
tomado de
ambição
literária. A
partir de
então, seu
objetivo
passou a ser
o
reconhecimento
dos grandes
intelectuais
da época-
que ele
atingiu
ainda jovem,
no episódio
descrito no
início desta
reportagem.
Nelson
sempre
esteve no
jornal- e o
jornal, em
sua época,
era o ponto
de encontro
dos
intelectuais.
Suas colunas
e crônicas
misturavam
literatura,
colunismo
social,
crítica
literária e
comentários
políticos.
Fustigava
seus
desafetos
publicamente.
Até Otto
Lara
Resende, de
quem era
amigo e
admirador,
foi alvo da
sanha
rodriguiana.
De acordo
com Victor
Hugo Adler
Pereira,
professor de
literatura
da
Universidade
Estadual do
Rio de
Janeiro, o
jornalismo
não somente
atraía uma
parcela da
intelectualidade
que desejava
interferir
nos rumos da
vida
pública,
como também
oferecia
possibilidades
de ganho aos
jovens
intelectuais.
"Durante os
anos 50 e 60
pode-se
reconhecer
que a
consagração
pública de
alguns
poetas e
escritores
de peso,
como
Drummond,
Cecília
Meireles e
até mesmo
Clarice
Lispector,
deveu-se, em
parte, à
atuação nos
jornais como
cronistas",
afirma.
Segundo o
dramaturgo
Caco Coelho,
que coligiu
num livro os
primeiros
escritos do
autor,
Nelson não
via
diferença
entre
literatura e
jornalismo-
e naquela
época ela,
de fato,
quase não
existia.
COMO ERA O
BRASIL DE
NELSON?
O que torna
a obra de
Nelson
relevante
para
entender o
país em seu
tempo é que
ele buscou o
chamado
"Brasil
profundo" no
subúrbio
carioca. A
chamada
literatura
regionalista,
contemporânea
dos grandes
ensaístas
Gilberto
Freyre,
Sérgio
Buarque e
Caio Prado
Júnior- e
que também
tentava, a
seu modo,
"explicar" o
país -, se
debruçava
sobre o
Brasil
rural.
Nelson era
eminentemente
urbano. A
partir de
A
Falecida
(1953) surge
no teatro
uma parcela
da sociedade
quase
invisível na
produção
cultural
nacional: a
classe
média, até
então só
focalizada
por Lima
Barreto.
Para Fábio
de Souza
Andrade,
professor de
literatura
da USP,
Nelson tinha
faro e pena
de
caricaturista
e, em suas
mãos, o
subúrbio do
Rio
sobrevive à
pesada
estilização
por trás do
moralismo
histriônico.
"Nelson
Rodrigues
tinha alguma
coisa de
vitoriano
deslocado,
de Dickens
da Pavuna,
sem demérito
para nenhum
dos dois. A
atualização
de
arquétipos
míticos e
uma
linguagem
sensível às
imagens
fazem do seu
teatro coisa
difícil de
igualar",
diz.
Em sua visão
do subúrbio,
Nelson
incorporou
até Sigmund
Freud, o que
era
extremamente
ousado para
a época.
"Nelson,
mesmo sem
dominar em
profundidade
as lições
psicanalíticas,
tinha do
assunto
aquela
informação
genérica,
acervo de
todo cidadão
de
conhecimento
mediano, que
autorizava a
tratar de
incesto e
assuntos
familiares",
afirma o
crítico
Sábato
Magaldi. Foi
por causa
disso que
uma peça
como Álbum
de Família
(1945), que
levou o
incesto para
os palcos e
inaugurou,
nas palavras
do próprio
Nelson, a
fase do
"teatro
desagradável",
causou tanto
escândalo e
foi proibida
por duas
décadas. A
influência
freudiana
também está
em Anjo
Negro
(1947), na
relação
incestuosa
entre a
jovem Ana
Maria e seu
pai
presumido, o
negro
Ismael; e em
Senhora
dos Afogados
(1947), na
paixão de
Moema pelo
próprio pai.
O mesmo vale
para
Vestido de
Noiva,
em que duas
personagens
mortas,
Alaíde e
Clessi,
enunciam com
liberdade-
justamente
porque
mortas- o
plano do
inconsciente.
O Brasil de
Nelson era,
assim,
cosmopolita,
de temática
urbana e
ligado às
idéias de
seu tempo.
Mas havia
mais. Como
bom
cronista,
ele
resumiria o
país numa
frase de
efeito que
hoje é um
slogan sobre
o Brasil tão
citado
quanto o
"país do
homem
cordial", de
Sérgio
Buarque, ou
o "país das
idéias fora
do lugar",
de Roberto
Schwarz- um
dos muitos
críticos das
posições
políticas do
autor
durante o
regime
militar.
Nelson é
autor da
expressão
"complexo de
vira-latas",
que surgiu
durante a
cobertura da
Copa do
Mundo de
futebol, em
1958. A
epopéia do
Brasil em
busca de seu
primeiro
título
mundial
parece feita
sob medida
para um
manual de
sociologia-
ou para
ilustrar o
livro
Casa Grande
& Senzala.
Oito anos
antes, o
Brasil havia
perdido a
Copa do
Mundo para o
Uruguai,
derrota
atribuída na
época a dois
jogadores,
por acaso,
negros- o
goleiro
Barbosa e o
lateral
Bigode. Na
Copa de
1958,
coincidência
ou não, o
Brasil
definiu um
time titular
com dez
jogadores
brancos e um
único negro-
o
botafoguense
Didi,
inegavelmente
o grande
craque do
país na
época. No
banco, nas
primeiras
partidas,
ficaram o
mulato
Garrincha e
o negro
Pelé. Quando
os dois
entraram em
campo, a
partir do
terceiro
jogo, o time
passou a
ganhar todos
os jogos e
conquistou o
título. Uma
fábula
destinada a
ilustrar a
obra de
Gilberto
Freyre, para
quem o
Brasil, no
futuro,
deixaria de
considerar a
mestiçagem
uma
desvantagem
para
glorificá-la,
orgulhando-se
deste traço
da
identidade
nacional.
Nas suas
crônicas,
Nelson fez,
por meio do
futebol, com
que o país
se
orgulhasse
de ser um
caldeirão de
raças. Nesse
ponto, é
interessante
notar que
seu irmão,
Mário Filho,
uma figura
estelar na
crônica
esportiva, é
autor do
clássico
O Negro no
Futebol
Brasileiro
(1947).
POR QUE NÃO
TEMOS MAIS
UM CRONISTA
COMO ELE
Uma
explicação
possível é
que o
ambiente
cultural no
Brasil mudou
bastante. Na
época de
Nelson, as
circunstâncias
eram bem
diferentes
das que
vivemos
hoje.
O Brasil era
pequeno,
tudo
acontecia no
Rio de
Janeiro. Nos
anos 30, a
então
capital
federal
contava com
pouco mais
de 2 milhões
de
habitantes,
e era ali
que
circulavam
todas as
discussões
sobre a
formação de
um ideário
nacional .
Além disso,
estava em
curso na
época um
projeto
urbanístico
que expandiu
os subúrbios
cariocas,
levando sua
cultura- as
modinhas, as
serestas de
violão, os
cordões
carnavalescos,
o reisado,
as brigas de
galo- para o
centro, para
o universo
da elite
intelectual,
e foi desse
universo que
Nelson
extraiu a
atmosfera de
suas obras.
A imprensa
escrita
tinha uma
tremenda
influência
no meio
intelectual.
Hoje a força
do jornal é
relativamente
menor.
Ganharam
prestígio as
universidades,
que passaram
a ser as
instituições
de produção
e
intercâmbio
de
conhecimento.
Surgiram
também
outros meios
de
comunicação
- as
revistas, a
TV e depois
a internet.
No que se
refere à
internet,
não deixa de
ser curioso
que os blogs
tenham
desenvolvido
novos
formatos de
crônica,
baseadas
quase sempre
num certo
intimismo
confessional.
No mundo
globalizado,
os
intelectuais
não têm mais
a pretensão
de resumir o
país em
idéias
básicas.
Nunca mais
surgiram
ensaístas-
ou
cronistas,
ou
dramaturgos-
com a
pretensão de
decifrar a
alma
brasileira
simplesmente
porque hoje
ninguém mais
busca isso.
Tudo isso é
verdade, mas
nenhuma
dessas
razões
oculta a
evidência
mais simples
de todas- a
de que
gênios são
mesmo raros.
Por
enquanto,
embora
inúmeros
talentos do
jornalismo e
do teatro
tenham
surgido,
nenhum deles
suplantou o
artista
múltiplo que
foi Nelson
Rodrigues.
Na história
do
pensamento
brasileiro,
Nelson já
foi pulha,
já foi
santo. Mas,
como ele
escreveu
certa vez,
"o gênio,
não sei por
quê, é mais
difícil do
que o santo
ou o pulha".