Na
terça-feira a Globo leva ao ar ‘A Pedra do
Reino’, de Luiz Fernando Carvalho. Inspirado
na obra de Ariano Suassuna, o programa põe o
Nordeste em cena.
Renata Gallo
O sertão não
virou mar, mas o pessoal de Tapeorá, no
sertão da Paraíba, presenciou cenas jamais
vistas durante os três meses que a equipe de
A Pedra do Reino - minissérie que estréia na
próxima terça-feira - se instalou por lá. Em
uma cidade de pouco mais de 13 mil
habitantes, o grupo com mais de 100 pessoas
de Luiz Fernando Carvalho não passou
desapercebido.
Carvalho, o mesmo diretor de Hoje é Dia de
Maria, escolheu Taperoá, a cidade da
infância de Ariano Suassuna, para começar o
seu Projeto Quadrante - uma viagem audaciosa
que pretende mapear o Brasil. “É uma espécie
de caravana que estou propondo para que se
conheça o País, muitas vezes desperdiçado em
função de uma visão centralizadora do eixo
Rio-São Paulo”, diz.
Depois de A Pedra do Reino, virá Capitu, de
Machado de Assis, que será filmado no Rio.
Também estão previstos Dançar um Tango, da
obra de Sérgio Faraco, em Porto Alegre e
Dois Irmãos, em Manaus, de Milton Hatoum.
Para ele, Quadrante é um projeto de vida.
Para A Pedra do Reino, Carvalho saiu do Rio
com uma pequena equipe trabalho e muita
vontade de encontrar novos parceiros. Em
Taperoá, montou ateliês e oficinas.
“Talentos locais trazem os seus territórios,
as memórias. É um conjunto ético e estético,
porque além da construção de uma fabulação,
promovem um retrato mais justo do País.”
Os novos talentos de Carvalho não se limitam
aos atores (em sua maioria desconhecidos, à
exceção de Cacá Carvalho e do paraibano Luiz
Carlos Vasconcelos). Bordadeiras, artesãos,
costureiras, poetas, músicos e cantores
locais também participam do projeto.
Taperoá, que na língua Tupi significa aldeia
abandonada, foi ocupada pela trupe de
Carvalho. A Secretaria de Saúde se
transformou no ateliê de figurino e um
armazém de algodão virou sala de ensaio. Uma
arena de 2.000 m² foi construída para servir
de palco.
Para compor o cenário da série, o cenógrafo
João Irênio se inspirou nas lápides dos
antigos cemitérios sertanejos. Algumas casas
de moradores se misturaram ao cenário, como
a de seu Salatiel, que foi usada para
abrigar o personagem principal da série,
Quaderna. Por coincidência, o paraibano, 82
anos, foi colega de escola de Suassuna.
Para transformar as 700 páginas do livro de
Suassuna (Romance d´A Pedra do Reino, de
1971) em uma série de cinco episódios, foi
criada uma narrativa em três tempos: o
presente, quando Quaderna é um velho
palhaço, o tempo passado e o tempo passado
que invade o presente, quando os personagens
do passado ocupam o espaço do narrador.
(©
Agência Estado)
Carvalho prega
"descontrole" na TV
Em "A Pedra do Reino",
minissérie que estréia terça, diretor de
"Lavoura Arcaica" reconstrói universo mítico
do sertão
Releitura da obra de
Ariano Suassuna inaugura o projeto
"Quadrante", que levará à telinha Machado de
Assis e Milton Hatoum
Divulgação

O ator
Irandhir Santos na pele do
protagonista Quaderna na velhice,
vestido de palhaço e narrando suas
memórias no centro da praça de
Taperoá, na Paraíba
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SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando era criança, o pai de Quaderna
deu-lhe chá de cardina para tomar. A
beberagem, dizia-se no sertão paraibano nos
distantes anos 30, ajudava a "abrir a
cabeça" dos garotos, mas diminuía sua
"homência", ou seja, sua virilidade.
Quaderna então cresceu,
alucinado pelo sol inclemente e a obsessão
de escrever uma "obra magnífica" que o faria
ser eleito "grande gênio da raça".
A trajetória delirante,
verborrágica e quixotesca desse herói
sertanejo conduz a minissérie "A Pedra do
Reino", arriscada investida do diretor Luiz
Fernando Carvalho, 47, que vai ao ar a
partir da próxima terça-feira, na Rede
Globo, depois de "Casseta & Planeta" (por
volta das 22h30).
Releitura do romance de
Ariano Suassuna, a série usa recursos já
apresentados em "Hoje É Dia de Maria"
(2005), que confrontava o naturalismo
narrativo com a criação de um universo
lúdico e simbólico.
Agora, Carvalho busca
dissociar-se ainda mais da narrativa formal
e linear. Os cinco capítulos de "A Pedra do
Reino" correspondem aos cinco livros em que
se divide a obra de Suassuna, mas cada um
evolui de forma particular.
O que alinhava a história
é menos um referencial cronológico do que a
intenção de provocar experiências
"sensoriais" nos espectadores. Nas palavras
de Carvalho, roubadas das páginas do próprio
escritor paraibano, o seriado é um
"circorama da phantasmagoria".
O diretor de "Lavoura
Arcaica" (2001) diz que está propondo uma
"uma narrativa do descontrole" dentro de um
universo televisivo tomado por apenas "uma
forma de narrar". Apesar disso, não acredita
na hipótese de a obra parecer hermética para
o público comum. "A Pedra" faz parte do
projeto "Quadrante", que prevê a adaptação
de outras três obras literárias pelo
diretor. A próxima será "Dom Casmurro", de
Machado de Assis.
Depois virão "Dois
Irmãos", de Milton Hatoum, e "Dançar Tango
em Porto Alegre", de Sergio Faraco. Leia,
abaixo, os principais trechos da entrevista
que Carvalho concedeu à Folha.
FOLHA - Você diz que
nunca pensou "A Pedra do Reino" como cinema.
Mas a série tampouco parece se identificar
muito com TV. Como você definiria essa
releitura da obra?
LUIZ FERNANDO
CARVALHO - Me
pergunto se é necessário um nome. O que vejo
é um organismo dividido em cinco partes. O
pouco que realizei para TV foi no caminho de
tentar humanizar a narrativa, na maioria das
vezes forjada de forma hegemônica e
industrial. Se na televisão tenho a sensação
de estar sendo vigiado por todos os lados,
no cinema é o contrário. Como se estivesse
sozinho em meu quarto, falando com meus
segredos: livre, dentro do cativeiro do
rigor.
Meu modo de rodar "A Pedra
do Reino" não diminui a TV nem engrandece o
cinema, mas também não se deixa escravizar
por essa ou aquela linguagem artificial.
Quero me libertar do peso industrial que
transforma tudo em uma leitura anódina dos
seres e da vida. Também não vejo "A Pedra do
Reino" como cinema. Gostaria de insistir que
é um projeto de TV e para a TV, mas, talvez,
simplesmente, uma outra TV.
FOLHA - Os dois
primeiros capítulos expõem o deslumbramento
do personagem e o mundo mítico que o cerca.
A "trama" propriamente dita só começa no
terceiro capítulo. Não acha que corre o
risco de o seriado tornar-se pouco
acessível?
CARVALHO
- Pertenço ao grupo
daqueles que acreditam que o público não é
burro, mas doutrinado debaixo de um cabresto
de linguagem. Luto contra isso. Sabendo da
dimensão que a televisão alcança no Brasil,
tratá-la apenas como diversão me parece
bastante contestável. Precisamos de
diversão, mas também precisamos nos orientar
e entender o mundo.
Procuro um diálogo entre
os que sabem e os que não sabem; um diálogo
simples, sóbrio e fraterno, no qual aquilo
que para o homem de cultura média é
adquirido e seguro torne-se também
patrimônio para o homem mais comum, pobre, e
que, em relação a tantas questões, está
ainda abandonado.
FOLHA - Não crê que
pode parecer hermético ao público mais
amplo?
CARVALHO -
Fomos adestrados para compreender e gostar
de apenas um modo de narrar.
Somos induzidos pelo
cinema norte-americano. Por uma linguagem
que leva as pessoas a gostar mais daquilo
que podem controlar. Existe uma ideologia do
controle, e o que proponho é uma narrativa
do descontrole, algo que provoque um
desequilíbrio sensorial, que quebre o tédio
cartesiano que reina.
Não acho que a pessoa mais
letrada vá entender melhor do que quem tem
uma formação simples, pois é preciso pegar
pelo sensorial. É como se estivéssemos num
centro de macumba. Proponho uma cosmogonia
que não quer ser didática.
FOLHA - O discurso
dos extremistas de "esquerda" e de "direita"
de Taperoá dialoga com a política atual?
CARVALHO
- A carapuça vai encaixar
como uma luva. Quaderna se sente um
estrangeiro em relação à moral estagnada
daquela Taperoá, que é um microcosmo do
Brasil. Suas idéias expõem as máscaras do
pseudopoder, do falso intelectualismo,
transformando seu discurso em metáfora
revolucionária.
Com a fala emblemática,
enraizada, Quaderna reúne as reflexões, as
emoções e o riso que nos são hoje
necessários.
Vejo o Brasil paralisado.
Em que as pessoas têm dificuldade em
imaginar um país melhor.
FOLHA - De que modo
Glauber Rocha o inspirou nessa releitura?
CARVALHO
- A "Pedra do Reino" é um
romance selvagem. O espaço da imaginação do
mundo sempre foi um espaço selvagem, por
pertencer mais ao inconsciente. O selvagem
está associado ao indeterminado, ao estado
bruto, a um fluxo de imagens que não foi
desbastado pela oficialidade da razão.
O universo sertanejo do
romance, épico e barroco, naturalmente nos
aproxima da obra selvagem de Glauber. Em
algumas seqüências, mesmo sem pensar muito
nisso, sem fazer uma mínima força sequer,
estava o cara ali, presente.
(©
Folha de S. Paulo)
saiba
mais
Obra evoca romances
de cavalaria
DA REPORTAGEM LOCAL
Mistura de romance de
cavalaria com literatura de cordel e
pontuada por referências da cultura popular
sertaneja e de tradições árabes e ibéricas,
"Romance d'A Pedra do Reino" (1971) é a mais
importante obra de Ariano Suassuna.
O paraibano celebrizou-se
por idealizar, nos anos 70, o Movimento
Armorial, que buscava criar uma arte erudita
a partir da cultura popular.
A história é narrada por
Pedro Diniz Ferreira Quaderna, em três
momentos. No primeiro, ele está preso
durante o período do Estado Novo
(1937-1945), em Taperoá, na Paraíba, e
começa a escrever sua história, a partir das
memórias de seus ancestrais.
Noutro, ele é um velho
palhaço que conta seu passado num teatro
improvisado no centro do vilarejo. Enquanto
num terceiro momento enfrenta o juiz
corregedor que investiga a morte de seu
padrinho, dom Pedro Sebastião
Garcia-Barreto.
(SC)
(©
Folha de S. Paulo)
crítica
Minissérie desafia
os códigos
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Não é de hoje que a TV foi buscar na
literatura um sinal de nobreza para
distinguir algumas produções no volume de
folhetins popularescos. Mas quase sempre
esse recurso funcionou como redução do
literário ao narrativo e à sofisticação
visual, no trabalho consistente de diretores
de arte e figurinistas para reconstituir
épocas.
Contudo, o que Luiz
Fernando Carvalho vem realizando, desde
"Hoje É Dia de Maria", constitui um sinal de
ruptura com essa concepção de "qualidade".
Trata-se de abordar a literatura como
manancial expressivo, e não apenas como
fonte sofisticada de histórias. A distinção
anunciada em "Hoje É Dia" tornou-se
essencial no resultado de "A Pedra do Reino"
e consiste na idéia de artesanato.
Naquela produção, a forma
artesanal restringia-se à execução de
cenários e figurinos. Agora, passou a servir
de princípio ao próprio modo de narrar e à
estrutura do relato, com a incorporação de
colagens de cortes abruptos, da encenação
feita de achados e do desempenho dos atores.
Tudo cria um conjunto marcado por mudanças
rítmicas que transmitem a vertiginosidade do
texto.
Por outro lado, o
artesanal cria uma alternativa à dicotomia
arte e indústria, pois oferece um meio-termo
pelo qual a TV pode almejar obter uma
singularidade expressiva no próprio âmbito
industrial que já consolidou.
Não se trata, ressalte-se,
de mimetizar modos canonizados do cinema
novo para a TV, apesar de não ser difícil
identificar sinais glauberianos. Mas de
desafiar de dentro os códigos da televisão,
elevando-a a um patamar criativo que
desafiará hábitos do espectador padrão.
A PEDRA DO REINO
Avaliação: ótimo
(©
Folha de S. Paulo)