O bem (o mal) que ele nos
fez (nos faz) A esta altura tudo terá sido
dito sobre João Gilberto à véspera do festejo por sua entrada na oitava década de
vida. Como cantaria talvez Gonzaguinha, ele é gênio, ele é gênio e ele é gênio.
O bem que João nos fez reside naquilo que os gênios
teimam ter de incomum: afrontou todos os parâmetros vigentes e inaugurou uma nova era na
música (não só popular) brasileira. Nem é que ele introduzisse o canto masculino doce,
como é tão comum afirmar. Mario Reis já o havia feito 30 anos antes; Lúcio Alves, Dick
Farney e Tito Madi já avisavam cerca de dez anos antes que João ia chegar.
Falando só da voz, João fazia mais ou menos o
contrário: espetava no canto suave um incômodo fiapo de manga, que excitava com uma
coceirinha gostosa as velhas e novas tradições.
O mal que João nos faz é se haver cristalizado,
permitindo que a horda de medrosos o convertesse de gênio renovador a imperador
conservador. Escoados 43 anos, hoje só se faz incensar a revolução gagá para sufocar
possíveis novos revolucionários.
Na canonização de João, violenta-se o princípio
de grandeza que o construiu. Se a demolição de parâmetros levou João das sarjetas
cariocas à história, adorá-lo acriticamente em pique da imitação acovardada é um ato
de traição ao monarca. Se se respeitasse João, adorá-lo seria um preceito, mas
inverter seus parâmetros seria um impulso natural, irrefreável. O medo move o Brasil.
Para trás.
O bem que João nos fez foi acender por fricção
toda uma geração de súditos. Por ele existir audaciosamente, existiram audaciosamente
logo após o choque Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Tom Zé, Milton
Nascimento etc. etc. etc.
O mal que João nos faz é nos condenar a ouvir ad
infinitum relatos minuciosos do instante mágico em que Caetano, Chico, Gil, Edu, Tom e
Milton ouviram pela primeira vez a voz e o violão sobrenaturais. É transformar ouro em
cascalho, usar a mágica do instante primevo para conservar bem dentro do buraco o
pescoço das avestruzes que não se bronzearam aos primeiros raios de sol da era nova. Ou
melhor, velha.
O bem que João nos fez foi chamar amorosamente os exércitos à guerra. Alguém teria de
ser pisoteado pela nova ordem, e dezenas de artistas foram. João introduzia a crítica no
ato da música, comentando-a amorosa e ferinamente.
O mal que ele nos faz é, no respeito temeroso que
impõe, recriar o monstro mais feio do show biz: o da indulgência que transforma ídolos
em ímãs de bajulação e num dado ponto esteriliza qualquer apreciação crítica. Como
cantaria talvez Neusinha Brizola, eles vão, eles vão virar zumbis.
A surpresa boa? João Gilberto nada tem a ver com isso! Ele merece cada pingo de
"i" nos desgastados rótulos "mito" e "gênio", não só
pelo bem que nos fez, mas pelo mal que não nos faz. Pois não parte dele (quase) nunca a
esterilização que o cerca. João não quer a figura que se faz dele, mostra baita
língua a ela todo dia.
É movido por essa crença quase messiânica que ele
se permite qualquer coisa que o mantenha estritamente artista: chochar seu produtor
Caetano, vaiar o público, esnobar a imprensa, não comemorar o que todos fora dele teimam
em comemorar.
João aos 70 é a antinotícia. Está quieto em seu
canto, tocando seu violão. Assina com um sonoro não idéias maluquetes como a de
homenageá-lo -ele, um cantor de "multidinhas"- num palco para Papai Noel como
é o Maracanã. João Gilberto não é Papai Noel, não traz presente a ninguém. O que
ele tinha a fazer já está feito, e um dia haverão de compreender que o que ele diz é o
contrário do que dizem, ad nauseum, que ele diz. Aliás, ele não diz nada. Os
falastrões aqui somos nós. Feliz aniversário, João. (PEDRO
ALEXANDRE SANCHES) (Folha de S. Paulo)
Zuza cumpre a meta de
resumir mito
Não espere aqui uma biografia de João Gilberto, muito menos a tal
"biografia definitiva". Pelo previsto no próprio programa da coleção Folha
Explica, o volume dedicado a João prima pela concisão e, quando possível, pelo
didatismo na explicação do maior mito vivo da música brasileira.
Ser escrito por um amigo seu dá a outra dica: não
se trata aqui de confrontar posições, de salpicar de polêmica a grandeza de João.
Trata-se, isso sim, de justificar a tal grandeza.
O trabalho de Zuza Homem de Mello se faz importante
no esforço por decupar qual é, de fato, a contribuição musical do cantor/violonista na
história do Brasil.
Zuza o faz pela artimanha inteligente de desmembrar o
que ele próprio explica como indissociável em João (e o que, justamente, o diferencia
de todo o resto do universo): voz e violão. Explicando separadamente os dois elementos,
justifica nos interstícios por que voz e violão formam em João um conjunto único,
intransponível.
O semibiógrafo cumpre a meta de resumir o gênio em
poucas palavras: "Folha Explica João Gilberto" decifra o básico. De resto,
nossos mitos musicais -João e Roberto Carlos à frente- permanecem no posto que essa
cultura capenga os tem deixado repousar, paxás: o de esfinges de tijolo e cimento à
espera dos biógrafos que as devorem. (PEDRO ALEXANDRE SANCHES) (Folha
de S. Paulo)
João abre a porta da quarta
dimensão
TOM ZÉ
Toda obra de arte é uma miniaturização do real.
Uma redução, uma liliputinização. Se não uma redução espacial -já que por vezes as
obras acabam por ser maiores do que a coisa representada-, pelo menos uma redução das
qualidades sensíveis, como diz Lévi-Strauss.
A arte que se arrisca no desconhecido, no ignoto,
para caminhar nesse fio de navalha, entre o ridículo e o brilhante, precisa de leveza, de
espartana economia. Mesmo que seu referente seja a imensidão do apocalipse. Isso a faz
ser arte.
João Gilberto tem levado a miniaturização a tal
proficiência radical que deságua numa quarta dimensão.
Escola de samba
Submete a esse processo tudo o que toma para seu
trabalho. Trato de três aspectos dessa estratégia ou filosofia de procedimento:
Da grandeza hollywoodiana do samba-exaltação de Ary Barroso, ele pede migalhas; do
clímax caloroso da escola de samba na avenida, toma bagatelas; do entendimento da
complexidade shakespeariana do caráter humano, solicita nesgas.
São João da Cruz, seu xará, diz, em "Subida
do Monte Carmelo", que, se você que ser tudo, tem de tomar o caminho onde não é
nada. Talvez esse seja o segredo das "miniaturas João", uma antiga e sábia
renúncia, o dote da humildade -ou sua transcendência.
Abordo uma delas: a miniaturização da escola de
samba se esconde e se consuma, fragmentada na batida do violão, somada ao tambor
disfarçado da voz. Esta vagueia com decidida imprecisão em várias posições rítmicas.
A batida, a famosa levada, é uma pílula concentrada, uma concisão nuclear da bateria de
toda a escola: num momento você ouve o surdo, grave, severo, firmando o assoalho da
sociedade; noutro momento o violão requebra numa célula do pandeiro, rápida, mas
definida e inconfundível; no próximo minuto uma coluna de tamborins graceja no
contratempo, e lá vai o coro comendo na avenida, com seus 200 participantes: um.
Geral miniatura, pequenos lampejos de sugestão, átimos, economia de gestos.
A voz, aparentemente livre e desgovernada, colabora o
tempo todo com a percussão, negaceando, retardando, sublinhando o ritmo pela falta, pela
ausência; aparentemente por acaso, constrói palavras.
Construção é bem o que acontece, as palavras
plasmam estruturas concretas, tal a concentração mental do cantor, seja na etimologia do
significado, seja no mecanismo do trabalho lábio-dental-palatal, empregado para
solidificação das consoantes ou para aleitamento das vogais.
O texto, a letra da música, se converte num formigueiro de substantivos. Verbos,
adjetivos, pronomes, até as discretas preposições e as tímidas conjunções, todos
são substantivados em pedras do alicerce.
Como alguns pássaros que põem pedras no estômago
para moer os grãos que engolem inteiros, João mastiga as palavras com pedras na boca, à
maneira de Demóstenes, o orador grego.
Shakespeare e miniatura
O último disco do cantor, "João Voz e
Violão", produzido por Caetano Veloso, é uma fita de cinema. Teatrinho de bonecos.
Porque a entonação da voz compõe também uma miniatura da personalidade do compositor,
principalmente aquilo de feminino que, presente no compositor, faz dele um compositor.
Por exemplo: Gil, em 63, quando compôs "Eu Vim
da Bahia", era exato daquele jeito que João conta cantando. Aquela faceirice de seu
caráter, aquele Gil camisa-listrada-a-sair-por-aí.
É Gil namorado de Belinha, falando com os amigos e
caminhando para a Escola de Música com uma sanfona enorme, que ele carrega. Mas ela
também o carrega, àquele menino caminhando pela rua da Bahia; parece que ouvimos Gil
dizer: "Ah, meu nego, tá vendo o relógio de pulso que ganhei da namorada?".
Pois é, pois é... E lá vai ele, balangando com outros meninos. Está lá. João
consegue pôr a situação na música. É Shakespeare no microscópio, um teatrinho de
bonecos, vocal, apenas. Outro recurso miniatural.
Não conheci os outros compositores do disco, mas dá
para vê-los, pela miniaturização contida nas quebradas da voz, nas sutilezas do
sotaque, na metafísica do ambiente onde o compositor viveu, quadro que o negaceio da voz
oferece com tanta informação e detalhes que chegam a condensar uma narrativa
biográfica. Romance. Está lá. É o disco "João, Voz e Violão".
Sem dúvida, uma experiência de terceira dimensão, porque nela Euclides vai mesmo para o
espaço. (Folha de S. Paulo)
Cantor demonstra amor
recíproco por SP
ZUZA HOMEM DE MELLO
João Gilberto não exagera quando, em seus shows
nesta cidade, declara abertamente seu amor por São Paulo. Afinal foi aqui que seu
primeiro disco, "Chega de Saudade", iniciou a trilha do sucesso que se espalhou
pelo Brasil.
O radialista Walter Silva, no seu "Pick Up do
Picapau", da rádio Bandeirantes, foi o grande responsável, ao programar com uma
frequência inusitada o disco que não agradara aos próprios divulgadores da gravadora
Odeon, encarregados de promovê-lo. O Picapau foi um dos maiores entusiastas de João
Gilberto, sabendo reconhecer os méritos daquela novidade do segundo semestre de 1958, que
ainda seria admirada no mundo.
Com o sucesso de "Chega de Saudade", a
partir da boa receptividade entre os paulistas, foi realizada a gravação do segundo
disco simples de João Gilberto, o chocante "Desafinado", e logo depois, em
1959, completou-se o álbum "Chega de Saudade", o primeiro LP de bossa nova.
João passou a ser assediado para cantar na capital paulista, para onde veio
frequentemente. No início de maio de 1960 foi contratado para cantar no clube Paulistano,
onde aconteceu um pequeno imprevisto que, como se dizia na época, "causou
espécie" entre os associados presentes: João esqueceu-se da letra de
"Desafinado" e parou o espetáculo. Foi um rebuliço, mas muita gente ficou
boquiaberta com a música de João Gilberto.
Um mês depois ele voltava a São Paulo, como integrante do elenco musical do show de
inauguração da TV Excelsior, canal 9, ao lado de grandes cartazes como Ary Barroso,
Dorival Caymmi e Dick Farney.
Mas seu grande momento nesse período na capital
paulista se deu em junho de 1961: no dia 27, foi realizado um show promovido no auditório
da Universidade Mackenzie estrelado por Vinicius de Moraes, Agostinho dos Santos, o
organista Walter Wanderley, além de alguns desconhecidos dos estudantes paulistanos, como
Baden Powell e Geraldo Vandré.
Quem brilhou para aquela platéia de umas 1.500
pessoas que lotava a sala foi João Gilberto. Em setembro ele retornava para um show de
bossa nova em outro clube do Jardim América, o Harmonia, cuja diretoria ficara durante um
ano enciumadíssima, tentando engolir o pioneirismo do Paulistano. O clube Pinheiros não
podia ficar por baixo e também contratou João para seus associados em novembro de 1961.
João Gilberto participou várias vezes de programas
da TV Excelsior no auditório da rua Nestor Pestana, o teatro de Cultura Artística
arrendado na época. Num deles, foi promovido um encontro de João com Orlando Silva, seu
maior ídolo. No entanto nada existe gravado em vídeo ou mesmo áudio dessas
apresentações históricas, inclusive a última delas, meses após o concerto do Carnegie
Hall, quando João recebeu seu cachê e embarcou de vez para os Estados Unidos, em 1963.
Ainda nos anos 60, seu primeiro retorno como astro
internacional se deu no programa "O Fino da Bossa", comandado por Elis Regina.
"Com vocês, Joããão Gilberto!", anunciou ela entusiasmada para uma platéia
sedenta do ídolo. João não ficou nada satisfeito com o som de retorno e parou após a
terceira música. No Brasil ainda não se usava retorno no palco. Quem estava na mesa de
som era este seu criado.
João retornou a São Paulo para um programa de
televisão que ficou célebre e foi gravado nos estúdios do Sumaré, na TV Tupi. Cantou
sentado no chão com Gal Costa e Caetano Veloso, jogou pingue-pongue, no que era um
mestre, e deixou os membros da equipe técnica encantados com suas gentilezas, embora
exaustos por terem gravado a noite toda.
Enquanto vivia nos Estados Unidos, João Gilberto voltou outras vezes a São Paulo,
incluindo um concerto no Teatro Municipal, do qual tive a honra de ser seu apresentador.
Mas as primeiras vindas de João Gilberto a São
Paulo são muito anteriores a essa fase de sucesso. Ele ainda não era o "papa da
bossa nova" e estava empenhado na busca do som de voz e violão que procurava.
No começo dos anos 50, João frequentava a calçada
do Captain's, bar do hotel Comodoro, na Duque de Caxias, onde músicos e cantores formavam
uma rodinha nos intervalos dos "sets" de uma das melhores músicas da cidade.
Naquele trecho de calçada, em frente ao hotel que ainda está lá, aconteceram alguns dos
maiores "papos de músicos" em São Paulo, entre eles, João Gilberto vivendo de
bicos ocasionais.
Um deles foi quando o cantor Agostinho dos Santos
convocou-o para acompanhá-lo ao violão em um show. Mas não havia muita estabilidade na
vida daquele baiano extravagante e inconstante, cantor de conjunto vocal e violonista, um
ouvido superdotado, que os músicos da noite de São Paulo já sabiam ser um prodígio.
Por volta de 1953, João costumava se encontrar de
madrugada num banco de jardim da praça da República com três outros músicos, para
cantar num quarteto vocal que formaram de brincadeira. Depois que terminavam seu trabalho
nas boates do centro da cidade, o pianista João Donato (que tocava no Arpège) e os
contrabaixistas Shú Viana e Sabá iam se divertir, cantando a quatro vozes o que mais
gostavam.
As vocalizações eram criadas principalmente por
Donato e Shú, e uma das músicas preferidas era "Minha Saudade", que repetiam
dezenas de vezes. Shú é o único que está morto. Além de tocar clarineta, foi um dos
melhores baixistas da noite em São Paulo, tocando principalmente com Dick Farney e Moacyr
Peixoto. Engraçadíssimo, tratava todo mundo de "major", era um sósia do
saxofonista Paul Desmond, do quarteto de Dave Brubeck, que estava no auge da moda. Quando
não podia atender a um compromisso que jurara cumprir, tendo até recebido um
adiantamento, Shú tinha o hábito de "mandar o Lima" em seu lugar.
"Ué!", espantava-se depois ao encontrar o contratante furioso, "eu mandei
o Lima em meu lugar, aquele "fdp" me paga".
Pois esse quarteto vocal, formado por João Gilberto,
João Donato, Shú Vianna e Sabá, cantava horas a fio em São Paulo, até o dia raiar,
mas para eles mesmos. A única platéia possível começava a surgir quando amanhecia,
eram os primeiros trabalhadores com suas marmitas, descendo dos ônibus a caminho do
batente.
Oficialmente esse grupo de oito ouvidos de elefante
nunca existiu, nunca chegou a atuar junto em qualquer espetáculo ou gravação, nenhum
dos quatro faria carreira em conjunto vocal, sua verdadeira cachaça. Seu estúdio era
mesmo aquele banco de jardim na praça da República.
João Gilberto já amava São Paulo, embora estivesse muito longe do que ainda seria.
A implosão sonora de João Gilberto
JÚLIO MEDAGLIA
No final do ano de 1958, ainda jovem, acompanhei meus
pais numa viagem que fizeram à cidade de Franca. Circulando pelas ruas, ouvi numa loja de
discos uma estranha voz de cantor que, apesar de despojada e inteiramente desvinculada da
musicalidade popular da época, esta repleta da verborragia melodolorosa do abolerado
ninguém-me-ama/ niguem-me-quer, exercia sobre mim fascínio fora do comum. Permaneci
estático por alguns momentos e em seguida comprei a bolacha de 78 rotações com a
música "Chega de Saudade".
O desconhecido cantor-anticantor era João Gilberto.
Ao voltar a São Paulo, comecei a procurar amigos com o disco debaixo do braço e me dei
conta que impactos semelhantes ocorreram, como um feitiço, com pessoas de diversos
círculos artísticos.
Os poetas concretistas, que trabalhavam num projeto
literário radical e hermético, criando poemas com pinça e lupa, alguns deles com uma
única palavra, identificavam-se com aquela sutil música de câmara popular e até
discorriam sobre ela em longos artigos. No fechado círculo dos pintores concretistas,
igualmente rigorosos em suas formas geométricas e teorias, criavam-se analogias entre
seus trabalhos e aquele despojamento interpretativo.
Os músicos eruditos da vanguarda, às voltas com o
recém-revivido dodecafonismo, desciam de seus pedestais e comparavam seus desafiadores
projetos de "atomozação" e filtragem do som àquela linguagem musical
coloquial, àqueles arranjos cristalinos e harmonias corajosas. Os amantes das tradições
brasileiras viam em João a versão moderna do canto falado de Noel, a delicadeza
expressiva de um Mario Reis e a impostação vocal espontânea e fluente de um Orlando
Silva dos anos 30, o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Até o grande Niemeyer,
cujas linhas arquitetônicas caracterizavam-se pela simplicidade e economia de formas,
abandonava a prancheta e ia trabalhar em projetos cenográficos ao lado de Jobim.
Os cultores da mais ousada e sofisticada cultura
popular do século, o jazz, vibravam com o novo estilo -a bossa nova-, já que em diversos
aspectos ele lembrava a vanguarda daquela música no momento, o cool jazz. O trompete
frágil de Miles Davis atuava na mesma frequência do murmúrio vocal de João, e os
revolucionários e transparentes arranjos de Gil Evans lembravam os de Jobim. Aliás, a
propósito de Jobim, considerado por Ella Fitzgerald e Stan Getz como o maior melodista da
segunda metade do século 20, teve seu projeto musical substancialmente influenciado pelo
"estilo" João Gilberto. É só ouvir os arranjos de Tom anteriores ao LP
"Chega de Saudade".
No antológico LP "Canção do Amor
Demais", com Elizeth Cardoso, nota-se a velha tradição orquestral das rádios e o
manuseio sinfônico típico dos arranjadores americanos convencionais como Kostelanetz,
Mantovani ou Melachrino. Em "Chega de Saudade" e no seguinte "Canção do
Amor Demais", as toneladas sonoras são substituídas pela sutileza -por frases
curtas, pelo emprego supereconômico de efeitos instrumentais.
E, se a música norte-americana nos forneceu um sem-número de elementos estruturais via
jazz, eles foram aqui reprocessados e devolvidos em forma de bossa nova. É bom que se
diga que, enquanto as outras músicas latino-americanas entraram no mercado americano como
fundo musical de festinhas de aniversário ou formatura, como "recuerdos"
exóticos dos mares do sul, nossa música ali penetrou através de sua elite musical, dos
mais refinados e modernos músicos de jazz. Posteriormente é que ela foi popularizada
através do maior cantor pop do século, Frank Sinatra.
Pessoalmente tive oportunidade de conhecer o
prestígio de João nos Estados Unidos. Em meados de 60, regendo no festival de
Tanglewood, promovido pela Sinfônica de Boston, uma das quatro "grandes"
americanas, liguei para João em Nova York e o convidei para vir assistir ao meu concerto.
Foi só correr a notícia que ele estaria na cidade, mais metade da orquestra me procurou
e pediu, encarecidamente, que o levasse a um local agradável que tinham encontrado. Lá
os músicos permaneceriam discretamente nas proximidades, na esperança de que João
viesse a cantarolar e dedilhar informalmente o violão.
Chegaram, inclusive, a angariar uma boa quantia em
dinheiro para oferecê-lo posteriormente, como uma espécie de cachê simbólico. Essa era
a consideração que o país de 2.000 sinfônicas profissionais, 50 mil amadoras e 10
milhões de músicos sindicalizados tem pelo nosso "Baiano-Bossa-Nova". Entendi,
também, por que a revista "Down Beat", a bíblia do jazz, chegou a afirmar que
há 40 anos nenhum outro músico havia influenciado tanto a música americana como o tinha
feito o hoje setentão João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira. (Folha de S. Paulo)
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de JOÃO GILBERTO e outros na seção MÚSICA, subseção ELES |