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13/06/2001

João, o mito. Ainda

PEDRO ALEXANDRE SANCHES


   João Gilberto, 70 anos neste 10 de junho, volta aos estúdios de gravação ainda neste ano. A garantia vem de sua empresária, Carmela Forsin, que diz: "Já está na hora".

   Segundo ela, João Gilberto deve concluir o combinado com a gravadora Universal, produzindo simultaneamente os dois sucessores do acidentado "João, Voz e Violão" (2000).

   Por enquanto, as comemorações pelo aniversário ficam por conta do 26º volume da série Folha Explica, já nas livrarias, dedicado a João pelo pesquisador de MPB e amigo próximo Zuza Homem de Mello.

   Uma celebração que o espaço cultural carioca Toca do Vinicius planejava no Maracanã, com público escolar e artistas convidados homenageando João, foi cancelada, segundo a direção do espaço, a pedido do próprio cantor.

   Segundo o diretor da Toca do Vinicius, Carlos Alberto Afonso, João não estaria se sentindo confortável com o formato da homenagem -a empresária do artista nega, mas o mito de reclusão e excentricidade se retroalimenta.

   Segundo conta Zuza, João não se opõe às homenagens -pelo menos não à sua. "Quando tive dúvidas em relação a dados biográficos, ele me deu. Apoiou meu livro, porque tem confiança em que a coisa vai sair direita. Não há nada que ele vá desdizer ou discordar", diz o pesquisador.

  Ele e a empresária de João são unânimes em afirmar que não há comemoração prevista, nem no plano familiar.

   Filha do mito, a cantora Bebel Gilberto manda dizer, de Nova York, onde mora, que não dá depoimentos sobre o pai. O mito pinta e borda.

   A empresária adianta pouco dos próximos passos: "A idéia é que João entre em estúdio logo após a turnê internacional que faz em julho. Deve gravar dois discos juntos, mas sobre seu conteúdo não há nada ainda". A locomotiva-mito põe lenha na caldeira. (Folha de S. Paulo)

O bem (o mal) que ele nos fez (nos faz)

   A esta altura tudo terá sido dito sobre João Gilberto à véspera do festejo por sua entrada na oitava década de vida. Como cantaria talvez Gonzaguinha, ele é gênio, ele é gênio e ele é gênio.

   O bem que João nos fez reside naquilo que os gênios teimam ter de incomum: afrontou todos os parâmetros vigentes e inaugurou uma nova era na música (não só popular) brasileira. Nem é que ele introduzisse o canto masculino doce, como é tão comum afirmar. Mario Reis já o havia feito 30 anos antes; Lúcio Alves, Dick Farney e Tito Madi já avisavam cerca de dez anos antes que João ia chegar.

   Falando só da voz, João fazia mais ou menos o contrário: espetava no canto suave um incômodo fiapo de manga, que excitava com uma coceirinha gostosa as velhas e novas tradições.

   O mal que João nos faz é se haver cristalizado, permitindo que a horda de medrosos o convertesse de gênio renovador a imperador conservador. Escoados 43 anos, hoje só se faz incensar a revolução gagá para sufocar possíveis novos revolucionários.

   Na canonização de João, violenta-se o princípio de grandeza que o construiu. Se a demolição de parâmetros levou João das sarjetas cariocas à história, adorá-lo acriticamente em pique da imitação acovardada é um ato de traição ao monarca. Se se respeitasse João, adorá-lo seria um preceito, mas inverter seus parâmetros seria um impulso natural, irrefreável. O medo move o Brasil. Para trás.

   O bem que João nos fez foi acender por fricção toda uma geração de súditos. Por ele existir audaciosamente, existiram audaciosamente logo após o choque Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Tom Zé, Milton Nascimento etc. etc. etc.

   O mal que João nos faz é nos condenar a ouvir ad infinitum relatos minuciosos do instante mágico em que Caetano, Chico, Gil, Edu, Tom e Milton ouviram pela primeira vez a voz e o violão sobrenaturais. É transformar ouro em cascalho, usar a mágica do instante primevo para conservar bem dentro do buraco o pescoço das avestruzes que não se bronzearam aos primeiros raios de sol da era nova. Ou melhor, velha.
O bem que João nos fez foi chamar amorosamente os exércitos à guerra. Alguém teria de ser pisoteado pela nova ordem, e dezenas de artistas foram. João introduzia a crítica no ato da música, comentando-a amorosa e ferinamente.

   O mal que ele nos faz é, no respeito temeroso que impõe, recriar o monstro mais feio do show biz: o da indulgência que transforma ídolos em ímãs de bajulação e num dado ponto esteriliza qualquer apreciação crítica. Como cantaria talvez Neusinha Brizola, eles vão, eles vão virar zumbis.
A surpresa boa? João Gilberto nada tem a ver com isso! Ele merece cada pingo de "i" nos desgastados rótulos "mito" e "gênio", não só pelo bem que nos fez, mas pelo mal que não nos faz. Pois não parte dele (quase) nunca a esterilização que o cerca. João não quer a figura que se faz dele, mostra baita língua a ela todo dia.

   É movido por essa crença quase messiânica que ele se permite qualquer coisa que o mantenha estritamente artista: chochar seu produtor Caetano, vaiar o público, esnobar a imprensa, não comemorar o que todos fora dele teimam em comemorar.

   João aos 70 é a antinotícia. Está quieto em seu canto, tocando seu violão. Assina com um sonoro não idéias maluquetes como a de homenageá-lo -ele, um cantor de "multidinhas"- num palco para Papai Noel como é o Maracanã. João Gilberto não é Papai Noel, não traz presente a ninguém. O que ele tinha a fazer já está feito, e um dia haverão de compreender que o que ele diz é o contrário do que dizem, ad nauseum, que ele diz. Aliás, ele não diz nada. Os falastrões aqui somos nós. Feliz aniversário, João. (PEDRO ALEXANDRE SANCHES) (Folha de S. Paulo)


Zuza cumpre a meta de resumir mito


   Não espere aqui uma biografia de João Gilberto, muito menos a tal "biografia definitiva". Pelo previsto no próprio programa da coleção Folha Explica, o volume dedicado a João prima pela concisão e, quando possível, pelo didatismo na explicação do maior mito vivo da música brasileira.

   Ser escrito por um amigo seu dá a outra dica: não se trata aqui de confrontar posições, de salpicar de polêmica a grandeza de João. Trata-se, isso sim, de justificar a tal grandeza.

   O trabalho de Zuza Homem de Mello se faz importante no esforço por decupar qual é, de fato, a contribuição musical do cantor/violonista na história do Brasil.

   Zuza o faz pela artimanha inteligente de desmembrar o que ele próprio explica como indissociável em João (e o que, justamente, o diferencia de todo o resto do universo): voz e violão. Explicando separadamente os dois elementos, justifica nos interstícios por que voz e violão formam em João um conjunto único, intransponível.

   O semibiógrafo cumpre a meta de resumir o gênio em poucas palavras: "Folha Explica João Gilberto" decifra o básico. De resto, nossos mitos musicais -João e Roberto Carlos à frente- permanecem no posto que essa cultura capenga os tem deixado repousar, paxás: o de esfinges de tijolo e cimento à espera dos biógrafos que as devorem. (PEDRO ALEXANDRE SANCHES) (Folha de S. Paulo)


João abre a porta da quarta dimensão

TOM ZÉ

   Toda obra de arte é uma miniaturização do real. Uma redução, uma liliputinização. Se não uma redução espacial -já que por vezes as obras acabam por ser maiores do que a coisa representada-, pelo menos uma redução das qualidades sensíveis, como diz Lévi-Strauss.

   A arte que se arrisca no desconhecido, no ignoto, para caminhar nesse fio de navalha, entre o ridículo e o brilhante, precisa de leveza, de espartana economia. Mesmo que seu referente seja a imensidão do apocalipse. Isso a faz ser arte.

   João Gilberto tem levado a miniaturização a tal proficiência radical que deságua numa quarta dimensão.

Escola de samba

   Submete a esse processo tudo o que toma para seu trabalho. Trato de três aspectos dessa estratégia ou filosofia de procedimento:
Da grandeza hollywoodiana do samba-exaltação de Ary Barroso, ele pede migalhas; do clímax caloroso da escola de samba na avenida, toma bagatelas; do entendimento da complexidade shakespeariana do caráter humano, solicita nesgas.

   São João da Cruz, seu xará, diz, em "Subida do Monte Carmelo", que, se você que ser tudo, tem de tomar o caminho onde não é nada. Talvez esse seja o segredo das "miniaturas João", uma antiga e sábia renúncia, o dote da humildade -ou sua transcendência.

   Abordo uma delas: a miniaturização da escola de samba se esconde e se consuma, fragmentada na batida do violão, somada ao tambor disfarçado da voz. Esta vagueia com decidida imprecisão em várias posições rítmicas.
A batida, a famosa levada, é uma pílula concentrada, uma concisão nuclear da bateria de toda a escola: num momento você ouve o surdo, grave, severo, firmando o assoalho da sociedade; noutro momento o violão requebra numa célula do pandeiro, rápida, mas definida e inconfundível; no próximo minuto uma coluna de tamborins graceja no contratempo, e lá vai o coro comendo na avenida, com seus 200 participantes: um.
Geral miniatura, pequenos lampejos de sugestão, átimos, economia de gestos.

   A voz, aparentemente livre e desgovernada, colabora o tempo todo com a percussão, negaceando, retardando, sublinhando o ritmo pela falta, pela ausência; aparentemente por acaso, constrói palavras.

   Construção é bem o que acontece, as palavras plasmam estruturas concretas, tal a concentração mental do cantor, seja na etimologia do significado, seja no mecanismo do trabalho lábio-dental-palatal, empregado para solidificação das consoantes ou para aleitamento das vogais.
O texto, a letra da música, se converte num formigueiro de substantivos. Verbos, adjetivos, pronomes, até as discretas preposições e as tímidas conjunções, todos são substantivados em pedras do alicerce.

   Como alguns pássaros que põem pedras no estômago para moer os grãos que engolem inteiros, João mastiga as palavras com pedras na boca, à maneira de Demóstenes, o orador grego.

Shakespeare e miniatura

   O último disco do cantor, "João Voz e Violão", produzido por Caetano Veloso, é uma fita de cinema. Teatrinho de bonecos. Porque a entonação da voz compõe também uma miniatura da personalidade do compositor, principalmente aquilo de feminino que, presente no compositor, faz dele um compositor.

   Por exemplo: Gil, em 63, quando compôs "Eu Vim da Bahia", era exato daquele jeito que João conta cantando. Aquela faceirice de seu caráter, aquele Gil camisa-listrada-a-sair-por-aí.

   É Gil namorado de Belinha, falando com os amigos e caminhando para a Escola de Música com uma sanfona enorme, que ele carrega. Mas ela também o carrega, àquele menino caminhando pela rua da Bahia; parece que ouvimos Gil dizer: "Ah, meu nego, tá vendo o relógio de pulso que ganhei da namorada?". Pois é, pois é... E lá vai ele, balangando com outros meninos. Está lá. João consegue pôr a situação na música. É Shakespeare no microscópio, um teatrinho de bonecos, vocal, apenas. Outro recurso miniatural.

   Não conheci os outros compositores do disco, mas dá para vê-los, pela miniaturização contida nas quebradas da voz, nas sutilezas do sotaque, na metafísica do ambiente onde o compositor viveu, quadro que o negaceio da voz oferece com tanta informação e detalhes que chegam a condensar uma narrativa biográfica. Romance. Está lá. É o disco "João, Voz e Violão".
Sem dúvida, uma experiência de terceira dimensão, porque nela Euclides vai mesmo para o espaço. (Folha de S. Paulo)


Cantor demonstra amor recíproco por SP

ZUZA HOMEM DE MELLO

   João Gilberto não exagera quando, em seus shows nesta cidade, declara abertamente seu amor por São Paulo. Afinal foi aqui que seu primeiro disco, "Chega de Saudade", iniciou a trilha do sucesso que se espalhou pelo Brasil.

   O radialista Walter Silva, no seu "Pick Up do Picapau", da rádio Bandeirantes, foi o grande responsável, ao programar com uma frequência inusitada o disco que não agradara aos próprios divulgadores da gravadora Odeon, encarregados de promovê-lo. O Picapau foi um dos maiores entusiastas de João Gilberto, sabendo reconhecer os méritos daquela novidade do segundo semestre de 1958, que ainda seria admirada no mundo.

   Com o sucesso de "Chega de Saudade", a partir da boa receptividade entre os paulistas, foi realizada a gravação do segundo disco simples de João Gilberto, o chocante "Desafinado", e logo depois, em 1959, completou-se o álbum "Chega de Saudade", o primeiro LP de bossa nova.
João passou a ser assediado para cantar na capital paulista, para onde veio frequentemente. No início de maio de 1960 foi contratado para cantar no clube Paulistano, onde aconteceu um pequeno imprevisto que, como se dizia na época, "causou espécie" entre os associados presentes: João esqueceu-se da letra de "Desafinado" e parou o espetáculo. Foi um rebuliço, mas muita gente ficou boquiaberta com a música de João Gilberto.
Um mês depois ele voltava a São Paulo, como integrante do elenco musical do show de inauguração da TV Excelsior, canal 9, ao lado de grandes cartazes como Ary Barroso, Dorival Caymmi e Dick Farney.

   Mas seu grande momento nesse período na capital paulista se deu em junho de 1961: no dia 27, foi realizado um show promovido no auditório da Universidade Mackenzie estrelado por Vinicius de Moraes, Agostinho dos Santos, o organista Walter Wanderley, além de alguns desconhecidos dos estudantes paulistanos, como Baden Powell e Geraldo Vandré.

   Quem brilhou para aquela platéia de umas 1.500 pessoas que lotava a sala foi João Gilberto. Em setembro ele retornava para um show de bossa nova em outro clube do Jardim América, o Harmonia, cuja diretoria ficara durante um ano enciumadíssima, tentando engolir o pioneirismo do Paulistano. O clube Pinheiros não podia ficar por baixo e também contratou João para seus associados em novembro de 1961.

   João Gilberto participou várias vezes de programas da TV Excelsior no auditório da rua Nestor Pestana, o teatro de Cultura Artística arrendado na época. Num deles, foi promovido um encontro de João com Orlando Silva, seu maior ídolo. No entanto nada existe gravado em vídeo ou mesmo áudio dessas apresentações históricas, inclusive a última delas, meses após o concerto do Carnegie Hall, quando João recebeu seu cachê e embarcou de vez para os Estados Unidos, em 1963.

   Ainda nos anos 60, seu primeiro retorno como astro internacional se deu no programa "O Fino da Bossa", comandado por Elis Regina. "Com vocês, Joããão Gilberto!", anunciou ela entusiasmada para uma platéia sedenta do ídolo. João não ficou nada satisfeito com o som de retorno e parou após a terceira música. No Brasil ainda não se usava retorno no palco. Quem estava na mesa de som era este seu criado.

   João retornou a São Paulo para um programa de televisão que ficou célebre e foi gravado nos estúdios do Sumaré, na TV Tupi. Cantou sentado no chão com Gal Costa e Caetano Veloso, jogou pingue-pongue, no que era um mestre, e deixou os membros da equipe técnica encantados com suas gentilezas, embora exaustos por terem gravado a noite toda.
Enquanto vivia nos Estados Unidos, João Gilberto voltou outras vezes a São Paulo, incluindo um concerto no Teatro Municipal, do qual tive a honra de ser seu apresentador.

   Mas as primeiras vindas de João Gilberto a São Paulo são muito anteriores a essa fase de sucesso. Ele ainda não era o "papa da bossa nova" e estava empenhado na busca do som de voz e violão que procurava.

   No começo dos anos 50, João frequentava a calçada do Captain's, bar do hotel Comodoro, na Duque de Caxias, onde músicos e cantores formavam uma rodinha nos intervalos dos "sets" de uma das melhores músicas da cidade. Naquele trecho de calçada, em frente ao hotel que ainda está lá, aconteceram alguns dos maiores "papos de músicos" em São Paulo, entre eles, João Gilberto vivendo de bicos ocasionais.

   Um deles foi quando o cantor Agostinho dos Santos convocou-o para acompanhá-lo ao violão em um show. Mas não havia muita estabilidade na vida daquele baiano extravagante e inconstante, cantor de conjunto vocal e violonista, um ouvido superdotado, que os músicos da noite de São Paulo já sabiam ser um prodígio.

   Por volta de 1953, João costumava se encontrar de madrugada num banco de jardim da praça da República com três outros músicos, para cantar num quarteto vocal que formaram de brincadeira. Depois que terminavam seu trabalho nas boates do centro da cidade, o pianista João Donato (que tocava no Arpège) e os contrabaixistas Shú Viana e Sabá iam se divertir, cantando a quatro vozes o que mais gostavam.

   As vocalizações eram criadas principalmente por Donato e Shú, e uma das músicas preferidas era "Minha Saudade", que repetiam dezenas de vezes. Shú é o único que está morto. Além de tocar clarineta, foi um dos melhores baixistas da noite em São Paulo, tocando principalmente com Dick Farney e Moacyr Peixoto. Engraçadíssimo, tratava todo mundo de "major", era um sósia do saxofonista Paul Desmond, do quarteto de Dave Brubeck, que estava no auge da moda. Quando não podia atender a um compromisso que jurara cumprir, tendo até recebido um adiantamento, Shú tinha o hábito de "mandar o Lima" em seu lugar. "Ué!", espantava-se depois ao encontrar o contratante furioso, "eu mandei o Lima em meu lugar, aquele "fdp" me paga".

   Pois esse quarteto vocal, formado por João Gilberto, João Donato, Shú Vianna e Sabá, cantava horas a fio em São Paulo, até o dia raiar, mas para eles mesmos. A única platéia possível começava a surgir quando amanhecia, eram os primeiros trabalhadores com suas marmitas, descendo dos ônibus a caminho do batente.

   Oficialmente esse grupo de oito ouvidos de elefante nunca existiu, nunca chegou a atuar junto em qualquer espetáculo ou gravação, nenhum dos quatro faria carreira em conjunto vocal, sua verdadeira cachaça. Seu estúdio era mesmo aquele banco de jardim na praça da República.
João Gilberto já amava São Paulo, embora estivesse muito longe do que ainda seria.


A implosão sonora de João Gilberto

JÚLIO MEDAGLIA

   No final do ano de 1958, ainda jovem, acompanhei meus pais numa viagem que fizeram à cidade de Franca. Circulando pelas ruas, ouvi numa loja de discos uma estranha voz de cantor que, apesar de despojada e inteiramente desvinculada da musicalidade popular da época, esta repleta da verborragia melodolorosa do abolerado ninguém-me-ama/ niguem-me-quer, exercia sobre mim fascínio fora do comum. Permaneci estático por alguns momentos e em seguida comprei a bolacha de 78 rotações com a música "Chega de Saudade".

   O desconhecido cantor-anticantor era João Gilberto. Ao voltar a São Paulo, comecei a procurar amigos com o disco debaixo do braço e me dei conta que impactos semelhantes ocorreram, como um feitiço, com pessoas de diversos círculos artísticos.

   Os poetas concretistas, que trabalhavam num projeto literário radical e hermético, criando poemas com pinça e lupa, alguns deles com uma única palavra, identificavam-se com aquela sutil música de câmara popular e até discorriam sobre ela em longos artigos. No fechado círculo dos pintores concretistas, igualmente rigorosos em suas formas geométricas e teorias, criavam-se analogias entre seus trabalhos e aquele despojamento interpretativo.

   Os músicos eruditos da vanguarda, às voltas com o recém-revivido dodecafonismo, desciam de seus pedestais e comparavam seus desafiadores projetos de "atomozação" e filtragem do som àquela linguagem musical coloquial, àqueles arranjos cristalinos e harmonias corajosas. Os amantes das tradições brasileiras viam em João a versão moderna do canto falado de Noel, a delicadeza expressiva de um Mario Reis e a impostação vocal espontânea e fluente de um Orlando Silva dos anos 30, o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Até o grande Niemeyer, cujas linhas arquitetônicas caracterizavam-se pela simplicidade e economia de formas, abandonava a prancheta e ia trabalhar em projetos cenográficos ao lado de Jobim.

   Os cultores da mais ousada e sofisticada cultura popular do século, o jazz, vibravam com o novo estilo -a bossa nova-, já que em diversos aspectos ele lembrava a vanguarda daquela música no momento, o cool jazz. O trompete frágil de Miles Davis atuava na mesma frequência do murmúrio vocal de João, e os revolucionários e transparentes arranjos de Gil Evans lembravam os de Jobim. Aliás, a propósito de Jobim, considerado por Ella Fitzgerald e Stan Getz como o maior melodista da segunda metade do século 20, teve seu projeto musical substancialmente influenciado pelo "estilo" João Gilberto. É só ouvir os arranjos de Tom anteriores ao LP "Chega de Saudade".

   No antológico LP "Canção do Amor Demais", com Elizeth Cardoso, nota-se a velha tradição orquestral das rádios e o manuseio sinfônico típico dos arranjadores americanos convencionais como Kostelanetz, Mantovani ou Melachrino. Em "Chega de Saudade" e no seguinte "Canção do Amor Demais", as toneladas sonoras são substituídas pela sutileza -por frases curtas, pelo emprego supereconômico de efeitos instrumentais.
E, se a música norte-americana nos forneceu um sem-número de elementos estruturais via jazz, eles foram aqui reprocessados e devolvidos em forma de bossa nova. É bom que se diga que, enquanto as outras músicas latino-americanas entraram no mercado americano como fundo musical de festinhas de aniversário ou formatura, como "recuerdos" exóticos dos mares do sul, nossa música ali penetrou através de sua elite musical, dos mais refinados e modernos músicos de jazz. Posteriormente é que ela foi popularizada através do maior cantor pop do século, Frank Sinatra.

   Pessoalmente tive oportunidade de conhecer o prestígio de João nos Estados Unidos. Em meados de 60, regendo no festival de Tanglewood, promovido pela Sinfônica de Boston, uma das quatro "grandes" americanas, liguei para João em Nova York e o convidei para vir assistir ao meu concerto. Foi só correr a notícia que ele estaria na cidade, mais metade da orquestra me procurou e pediu, encarecidamente, que o levasse a um local agradável que tinham encontrado. Lá os músicos permaneceriam discretamente nas proximidades, na esperança de que João viesse a cantarolar e dedilhar informalmente o violão.

   Chegaram, inclusive, a angariar uma boa quantia em dinheiro para oferecê-lo posteriormente, como uma espécie de cachê simbólico. Essa era a consideração que o país de 2.000 sinfônicas profissionais, 50 mil amadoras e 10 milhões de músicos sindicalizados tem pelo nosso "Baiano-Bossa-Nova". Entendi, também, por que a revista "Down Beat", a bíblia do jazz, chegou a afirmar que há 40 anos nenhum outro músico havia influenciado tanto a música americana como o tinha feito o hoje setentão João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira. (Folha de S. Paulo)

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