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25/06/2001

Milton Santos morre de câncer aos 75

Milton Santos

Geógrafo convivia com a doença havia sete anos; enterro contou com a presença da prefeita Marta Suplicy

   O corpo do geógrafo Milton Santos foi sepultado às 16h de ontem no cemitério da Paz (zona sul de São Paulo), na presença de cerca de 150 pessoas. Professor emérito da USP (Universidade de São Paulo) e um dos mais renomados intelectuais do país, Santos morreu às 3h10 de domingo, no Hospital do Servidor Público Estadual, Vila Clementina (zona sul).


   Santos sofria de um câncer de próstata diagnosticado havia sete anos. Sua morte foi atribuída a uma insuficiência respiratória provocada por carcinomatose, quando o câncer já atinge vários órgãos do corpo.


   Apesar do diagnóstico da doença, Santos manteve um ritmo de trabalho intenso nos últimos anos. Continuou dando aulas na USP até o ano passado, quando lançou dois novos livros. Reclamava de dores aos amigos, mas dizia que deixar o trabalho seria uma "concessão à doença".


   Continuou a frequentar a universidade até março e pretendia escrever um novo livro sobre o urbanismo de Salvador, tema de sua tese de doutorado nos anos 60, durante exílio na França.

   No último dia 16, Santos recebeu em casa a amiga e discípula Maria Adélia, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "Ele me disse: vamos continuar. Era uma despedida".

   No domingo retrasado Santos teve seu estado de saúde agravado. Foi internado na quarta-feira, dia 20, já com um quadro bastante crítico. A doença tinha atingido os ossos e a medula óssea, o que provocava dores intensas que não cessavam nem com analgésicos.

   Na noite da quinta-feira, diante do quadro terminal, a família e os médicos decidiram sedá-lo, de forma a evitar mais sofrimentos.

   Santos se despediu da mulher, Marie-Hélène, do filho, Rafael, e de alguns poucos amigos antes de ser sedado. Segundo os médicos, Milton Santos permaneceu no leito número 8, da hematologia, no 13º andar do Hospital do Servidor, sem a ajuda de aparelhos.

   De acordo com Rafael Santos, que estava a seu lado na madrugada de ontem, seu pai teve "uma morte tranquila".

   O enterro reuniu ex-alunos, colegas e amigos. Professores das universidades federais da Bahia, Ceará, Santa Catarina e Rio de Janeiro viajaram para o enterro. A prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, que havia convidado Santos a organizar um grupo de estudos sobre o impacto da globalização nos centros urbanos, também compareceu. Estava acompanhada do ex-marido e senador, Eduardo Suplicy (PT-SP).

   O corpo de Santos foi velado em cerimônia reservada. O presidente Fernando Henrique Cardoso enviou nota à família, mas decidiu não se manifestar publicamente. (Folha de S. Paulo)

Um filósofo da geografia

AZIZ AB'SABER

   Milton Santos foi um filósofo da geografia. Foi um intelectual comprometido com a sociedade e com os excluídos. Um cidadão que reuniu o conhecimento do mundo do seu tempo para pensar as necessidades do Brasil.

   Eu digo isso com sinceridade porque o conheci quando ele veio da Bahia como advogado e professor secundário de geografia. Tivemos uma longa convivência.

   Ele fez toda a sua trajetória dentro das universidades. Primeiro, na PUC de Salvador, depois na Universidade Federal da Bahia e, depois de 1964, no exílio. Vivendo em condições sofridas, Milton se retirou para a França.

   Lá, ele teve a idéia de buscar um estudo seu sobre o centro urbano de Salvador e transformá-lo em uma tese de altíssimo nível. Aí começou a sua carreira internacional, recebendo o espaço que havia sido negado no Brasil.

   Uma vez, Milton nos disse que inspirava o seu comportamento no ideário de Jean-Paul Sartre: o intelectual tem conservar toda a independência imaginável.

   Milton foi assim. A sua militância não era a da politica partidária, mas no campo das idéias. Por isso, ele se diferenciou dos demais. Tinha uma energia permanente e se desdobrava em brigas do cotidiano pelas idéias originais.


AZIZ NACIB AB'SABER, 76, geógrafo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.


Geógrafo publicou mais de 40 livros e recebeu 20 títulos "honoris causa"


   Um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil, o geógrafo Milton Santos, 75, recebeu 20 títulos "honoris causa" pelo mundo. Foi o único pesquisador fora do mundo anglo-saxão a receber, em 1994, o prêmio Vautrin Lud, o "Prêmio Nobel" da geografia.

   Publicou mais de 40 livros (veja quadro ao lado) e 300 artigos. Foi consultor da OIT (Organização Internacional do Trabalho), OEA (Organização dos Estados Americanos) e Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura).

   Conciliava seu trabalho acadêmico com a participação na Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, da qual fazia parte desde 91, e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano. Escrevia regularmente na seção "Brasil 501 d.C." do Mais!.

   Milton de Almeida Santos nasceu a 3 de maio de 1926, em Brotas de Macaúba, na Chapada Diamantina (BA). Filho de professores primários, aprendeu a ler e a escrever aos cinco anos. Só foi matriculado num ginásio aos dez anos -o Instituto Baiano de Ensino, em Salvador. Aos 15 anos, dedicava suas horas de folga a ensinar colegas menores do colégio.

   Descendente de escravos emancipados antes da Abolição, Santos chegou a pensar em cursar engenharia, mas desistiu quando o alertaram que havia resistência aos negros na Escola Politécnica.
Isso não impediu que enfrentasse várias manifestações de racismo.

   Durante a fundação da Associação dos Estudantes Secundários da Bahia, da qual Milton Santos participou ativamente, foi convencido a não se candidatar ao cargo de presidente: seus colegas argumentaram que, como ele era negro, não seria capaz de conversar com as autoridades.

   Terminado o ginásio, Milton seguiu para a Universidade Federal da Bahia, onde formou-se em direito, em 1948. Dez anos depois, Milton Santos tornou-se doutor em geografia, pela Universidade de Estrasburgo (França).

   Milton Santos também atuou como jornalista, tendo acompanhado Jânio Quadros numa viagem a Cuba, em 1960, época em que já era um geógrafo conhecido em seu Estado. Tornou-se amigo e profundo admirador de Jânio, chegando a ser subchefe da Casa Civil e representante do governo federal em seu Estado. Mas se decepcionou com a renúncia, em 61.

   Em 1964, presidiu a Comissão Estadual de Planejamento Econômico, órgão do governo baiano. Durante sua permanência na comissão, Milton Santos foi autor de propostas polêmicas, como a de criar um imposto sobre fortunas.

   No regime militar, Milton Santos combinava as atividades de redator do jornal "A Tarde", de Salvador, e a de professor universitário, defendendo posições nacionalistas. Acabou sendo demitido da Universidade Federal da Bahia e passou 60 dias preso em Salvador. Só foi libertado porque sofreu um princípio de infarto.

   Aconselhado por amigos, aceitou convite para lecionar no exterior. Foi professor das universidades de Toulouse, Bordeaux e Paris (França); Toronto (Canadá); Lima (Peru); Dar Assalaam (Tanzânia; Columbia (EUA); Central de Venezuela e Zulia (Venezuela). Voltou definitivamente ao Brasil em 1977, para lecionar na USP.


REPERCUSSÃO

ANTONIO CANDIDO, crítico literário, professor emérito da USP: "A morte de Milton Santos é uma perda irreparável. Ele representava nas ciências humanas o que se pode chamar de ala combatente. O que foi Florestan Fernandes na sociologia, ele foi na geografia humana. Nos seus trabalhos, o rigor científico nunca foi obstáculo a uma consciência social desenvolvida e profundamente arraigada nos problemas do Brasil. Era um cientista de vanguarda e um grande cidadão".

CELSO FURTADO, economista e ex-ministro do Planejamento (63-64) de João Goulart: "Conheci o Milton na Europa, no exílio, depois do golpe de 64. Era uma pessoa modesta, muito simples, e só aos poucos fui percebendo a grandeza de seu pensamento. Não era apenas um cientista social, era um homem de pensamento muito rico e abrangente. Nunca tinha visto um geógrafo com tamanha amplidão de vista e percepção dos problemas maiores da sociedade".

MARTA SUPLICY, prefeita de São Paulo: "São Paulo perde um colaborador que organizava um grupo para pensar o impacto da globalização nos grandes centros urbanos, mas o Brasil perde muito mais. Perde um dos seus grandes pensadores, alguém que não tinha o medo de pensar o novo, uma pessoa como Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro".

MARCO AURÉLIO GARCIA, secretário da Cultura de São Paulo: "O país perde um de seus últimos intelectuais com visão abrangente e profunda do Brasil. A inteligência sofreu um golpe. Mas as idéias e o exemplo do professor Milton Santos perdurarão".

PAULO SÉRGIO PINHEIRO, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP: "Conheci o Milton em setembro de 1967, em Paris, na casa de Celso Furtado. Era um mestre e um grande humanista. Foi um dos maiores geógrafos do século 20. Para a USP e a cultura brasileira, é uma perda chocante".

CARLOS LESSA, economista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro: "O Milton era uma figura de proa do país. Ele está para a geografia moderna no mesmo nível que o Fernand Braudel [historiador francês" está para a história. Era um intelectual engajado nas causas sociais e democráticas".

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, economista, professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro: "Milton Santos morreu? Ai, mas que má notícia você me deu agora. É uma mágoa terrível. Eu queria muito bem a ele. Ia deitar para dormir um pouco, mas agora não vou mais conseguir. Eu o prezava muito. É só o que tenho condições de dizer agora".


FRASES

"O fato de eu ser negro e a exclusão correspondente acabam por me conduzir à condição de permanente vigília"

"Não sou militante de coisa nenhuma. Essa idéia de intelectual, apreendida com Sartre, de uma independência total, distanciou-me de toda a forma de militância"

"A cultura oficial brasileira (...) nutriu-se de uma visão vesga do mundo."

"Havia um autoritarismo explícito que convocava à oposição da inteligência, mas hoje há um autoritarismo encapuzado, mais eficaz, porque nasce niilista e termina niilista"

"O debate atual do Brasil é esse: não dá para dar as costas à globalização, só que ela está sendo descrita de maneira incorreta"

MILTON SANTOS
depoimento à revista Adusp, nº 17

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