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Cordel encantado

06/08/2004

Gilvan Samico

Gilvan Samico, um dos maiores gravuristas brasileiros vivos, dono de uma obra que injeta requinte e elementos oníricos nos signos populares e míticos, reúne 204 obras em São Paulo

Ivan Claudio

   Artista reticente, de palavras tão econômicas quanto o traço rigoroso de suas obras, o gravador pernambucano Gilvan Samico, 76 anos, diz que de uns tempos para cá está ficando mais falador. “Sempre fui aquele tipo de pessoa que chamamos de enrustida. Hoje, falo mais do que devo.” Contrariando a fama de arredio, ele até brinca com o fato de ser considerado um dos maiores nomes vivos do seu ofício. “Fazer gravura não estava nos meus planos e costumo dizer que se não fosse por uma série de queros não seria hoje quem sou.” Os “queros” a que ele se refere foram as respostas afirmativas – e econômicas – dadas aos convites que lhe foram feitos na vida. “Quer estudar com fulano?” “Quero!” Os fulanos, no caso, eram Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi, dois gigantes da gravura brasileira. Ambos exerceram influência sobre as obras do início de carreira de Samico. Estes trabalhos, e muitos outros que aos poucos foram dando lugar a uma arte singular, podem agora ser admirados em toda a sua beleza na mostra Samico: do desenho à gravura, em cartaz na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, onde estão reunidas 204 obras

Simetria e ressonâncias medievais estão presentes em trabalhos como A espada e o dragão, de 2000

   Estudos e matrizes – Trata-se de uma exposição especial. Pela primeira vez, Samico exibe os 45 desenhos expressionistas que realizou entre 1957 e 1959, quando era aluno de Abramo. Em complemento, uma sala inteira é dedicada aos estudos e matrizes de dois trabalhos recentes – A espada e o dragão (2000) e A caça (2003). Com curadoria do igualmente pernambucano Ronaldo Correia de Brito, a mostra não é exatamente uma retrospectiva. A cronologia óbvia levaria a uma visão mecânica da produção de Samico, que nos últimos tempos só faz uma gravura por ano. “Quero provocar alguns tropeços”, afirma Brito, mais afeito às aproximações visuais e temáticas entre os trabalhos. Assim, Barco do destino e as três garças do rio (1965) pode ser vista ao lado de O rapto do sol (1984). “Na primeira, ele busca algo que encontrou mais tarde”, explica Brito, acenando para os mesmos temas marítimos e noturnos, para o fluxo ondulante da fumaça dos navios e para a recorrência de peixes e aves.

   Em O pecado (1964) e A bela e a fera (1996), chama a atenção as oposições feminino versus masculino e mulher versus besta. Como bom apreciador do universo do artista que injetou requinte e elementos oníricos nos signos populares e míticos, Brito caiu na tentação de catalogar todas as figuras e elementos presentes nas obras de Samico. Especialmente aquelas feitas a partir de 1966, quando ele adota o estilo típico que o consagrou em O banho de Suzana, de temática bíblica. “Passei um tempo me dedicando a isso e depois resolvi esquecer”, afirma Brito, que encontrou traços egípcios e até cretenses nas incríveis narrativas visuais. “São temas que reaparecem, um universo ancestral, antigo demais.”

 
Sem título (acima) e O retorno: desenho inédito da fase expressionista e xilogravura de beleza rara  

   Religiosidade – Samico, que há 39 anos vive encastelado na sua casa-ateliê em Olinda, recusa interpretações apressadas. Acha que sua obra tem uma carga de religiosidade. Porém, os assuntos bíblicos lhe atraem mais pela simpatia que pelo fervor. Também rejeita a leitura imediata dos símbolos, mesmo tendo na estante livros de Gustav Jung – estudioso do inconsciente coletivo –, que ele faz questão de não ler. Esquivando-se do clichê surrealista, conta que sonha pouco, ou pelo menos não lembra de nada ao acordar. E que seria uma mentira de sua parte atribuir a inspiração de alguma gravura a passagens da infância, quando, horrorizado, assistia a cobras engolindo rãs. “Tive uma infância muito livre, com muito espaço. Pude conviver com todos os elementos da natureza, com pássaros, cobras, cabras. Mas foi a intimidade com o cordel que me trouxe isso de forma mais intensa.”

   A mostra dá o devido destaque a esta fase de Samico, que se afasta do tom sombrio de obras como Três mulheres e a lua (1959) em favor de uma linguagem brasileira, inspirada na literatura de cordel e suas ressonâncias medievais. Entre as selecionadas, destaca-se Comedor de folhas (1962), início do rompimento com a escala naturalista. “Ao fazê-la, me lembrei de Ananias, um louco manso desse ambiente em que vivia. Ele passava pelo campo, abaixava, tirava tufos de grama e saía comendo”, conta. Por aquele tipo de operação milagrosa que só os grandes artistas sabem fazer uso, Ananias ganhou uma estatura mítica. Assim como os cavaleiros de espadas flamejantes, os malabaristas austeros, as sereias em forma de múmia e todo o bestiário que ele traz de volta dos tempos imemoriais. Afinal, de onde vêm todos estes símbolos? “Quando os faço, estou inventando, criando. Elaboro coisas que não conheço e vão adquirindo forma.” Obcecado pelos espelhos e pelos duplos, Gilvan Samico só tem certeza do gesto inaugural de cada obra: uma linha contínua no meio do papel em branco, demarcando dois planos, dois mundos.

Revista ISTO É)

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