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05/09/2004 Ariano Suassuna é o artista brasileiro que mais explicita os fundamentos da tradição ibero-afro-americana: em seu teatro, na poesia, no romance... Ele não havia
inteirado 20 anos quando, numa fazenda no sertão do Ceará, de propriedade de
um parente seu, ouviu cantar dois famosos violeiros da família Patriota. De
volta ao Recife, promoveu o I Festival de Violeiros do século 20, no vetusto
teatro Santa Isabel, para espanto e mesmo horror da elite letrada, que quis
até proibir o evento. Antes ainda, havia apreendido, aconchegado ao colo de
seu pai, João Suassuna (assassinado em 1930, quando o menino tinha somente
três anos), o fantástico universo da cultura popular. Também devorou, da
biblioteca paterna, obras seminais como Os Sertões, de
Euclides da Cunha, ou a saga de D. Quixote, o fidalgo da
Mancha criado por Cervantes. Ariano Suassuna - Em primeiro lugar,
gostaria de dizer a você que às vezes sou acusado de só dar importância à
vertente ibérica, à negra e à indígena. Sou acusado de ser um arcaico, como
eles dizem, e de não ter interesse pelas outras etnias que vieram depois, o
que não é verdade. Chamo muito a atenção sobre a importância da vertente
ibérica, da vertente negra e da vertente indígena porque estes são os
troncos iniciais da nossa cultura. Além disso, outras pessoas dizem que eu
daria maior importância à herança ibérica do que à negra e à indígena, o que
também não é verdade. Dou muita importância à herança ibérica mas dou
também, como você sabe, à negra e à indígena. Agora, sobre esta cultura
ibérica, sobre a qual nem meus inimigos têm dúvidas de minha ligação com
ela, tenho certas restrições. Por exemplo, você sabe da importância que dou
a Dom Sebastião, sua aventura e seu sonho. Pois agora eu me
volto, pelo fato de ele ter atacado os mouros, tá entendendo? Ele não é um
colonialista comum porque ele, por amor do sonho, teve coragem de morrer,
enfrentou a morte. Não é como estes colonialistas de hoje que ficam
escondidos e os outros vão matar e morrer, não eles. Para ser justo, Dom
Sebastião não era muito bom mas, em todo caso, eu acho que no caso dele o
sonho estava certo mas a empresa, como foi efetivada, foi erro. Entre as
epígrafes d'A Pedra do Reino citei uma frase de Dom Sebastião,
e eu substituí uma palavra. Na citação original, o padre lá do mosteiro
mostra a ele uma espada que foi, se não me engano, de Dom Afonso V,
antepassado dele, e ele fica com a espada na mão, depois devolve e diz:
''Tomai, padre, esta espada, e guardai-a, porque um dia eu me hei de valer
dela contra os mouros''. Aí eu fiz violência à realidade histórica, botei:
''porque um dia hei de me valer dela COM os mouros''. Como se ele fosse se
aliar aos mouros, o que eu acho certo. Ariano - A influência da cultura ibérica em
mim é uma coisa enorme, uma dívida que eu tenho, como tenho com o nosso
romanceiro popular, que é uma herança do romanceiro ibérico. Agora, o nosso
é mais rico. O romanceiro ibérico, praticamente, só tem um ciclo heróico. No
romanceiro brasileiro, a gente tem o ciclo heróico, o de amor e fidelidade,
o religioso, o satírico, e por aí vai. Aconteceu comigo uma coisa curiosa.
Como você sabe, escrevi o Auto da Compadecida montado em três
folhetos. Entre estes folhetos não está o famoso de João Martins de Athayde,
As proezas de João Grilo. Deste eu tirei o nome, que eu queria
dar ao personagem pra prestar uma homenagem exatamente à vertente picaresca
de nossa herança ibérica. Pois bem. Eu pensava que o personagem João Grilo e
o nome João Grilo eram puramente nordestinos e brasileiros, e que aquilo
tinha sido uma criação de João Martins de Athayde, pois bem. Tenho um grande
amigo em Portugal, que não conheço pessoalmente, mas somos grandes amigos,
um cidadão chamado José Cardoso Marques. Este camarada é uma figura
curiosíssima. É ourives, como Gil Vicente, e tem um amor pela
literatura que é uma coisa comovente. Ele tem me mandado muitas coisas da
cultura portuguesa, inclusive da cultura popular. Pois não é que existe lá
em Portugal uma figura picaresca com o nome de João Grilo? Fiquei encantado
quando vi. Além de ser fiel à tradição popular do nosso romanceiro, estou
sendo fiel a nossa herança ibérica. Além disso, n'A Pedra do Reino
tem uma cantiga sebastianista que, aliás, na versão atual, tirei um
verso que dizia ''mas é mentira do mouro/ seu desejo é me enganar''.
Modifiquei aquilo, botei, ''mas é engano do mouro/ nós vamos nos aliar'',
pra ser coerente com a modificação que eu tinha feito das palavras de Dom
Sebastião. Também A Filha do Imperador do Brasil, aquele
romance que Antônio Nóbrega musicou e canta, é uma herança ibérica, como
também a história da Nau Catarineta, que tem como assunto exatamente esta
travessia, que para nós foi tão importante. Ariano - É uma beleza, isso! Ô Eleuda, no
caso de Bocage, não precisou de ponte nenhuma porque ele mesmo tem uma face
obscena e isso toca muito no imaginário do povo brasileiro, era uma coisa
mais ou menos natural. Conheço a poesia erótica e satírica dele, é
curiosíssima! Tenho a obra completa dele, erótica, satírica e picaresca. É
natural transformá-lo aqui num personagem picaresco, uma vez que ele mesmo
tem isso. Por que é que fizeram o mesmo com Camões? Acho que peguei o fio do
mistério, é o seguinte. Um dia, lendo Pereira da Costa, aquele folclorista
pernambucano, ele dá notícia de que, aqui no Recife, no século 19, havia um
poeta picaresco obsceno, muito engraçado, que era apelidado de Camões,
porque tinha um olho cego. Tenho a impressão - como você sabe, não sou um
estudioso nem pesquisador - mas tenho impressão que foi através desse que o
outro Camões entrou com esta personalidade picaresca, que o poeta português
não tinha, ao contrário de Bocage. Inclusive, Pereira da Costa conta algumas
histórias deste Camões nosso, uma figura engraçadíssima. Era um poeta do
tipo de Moisés Sesiom, que não tinha nem nome de família, foi criado ao
deus-dará. Então, ele assinava o nome Moisés e como sobrenome Sesiom, que é
Moisés ao contrário. Engraçadíssimo também, uma figura muito curiosa,
obsceno até onde se pode ser. Você já ouviu falar num escritor do Rio Grande
do Norte chamado Nei Leandro de Castro? Ele tem um livro muito interessante,
uma novela picaresca, As pelejas de Ojuara. Pois bem. Ele cita
Sesiom neste livro dele. Desde menino, sei decorado estrofes obsceníssimas
de Moisés Sesiom. O Camões aqui do Recife era uma espécie de Moisés Sesiom.
Ariano - Fui muito amigo de um cantador,
poeta popular, chamado Manoel de Lira Flores. Este camarada também sabia
versos e versos de Camões decorados. Lembro outra ponte de ligação entre a
cultura erudita da Península Ibérica e da cultura popular brasileira, acho
que já fiz referência a isto em alguma aula por aí por Fortaleza. É o uso da
décima, aquela estrofe de dez versos de sete sílabas, usada por Cervantes,
Calderón de la Barca, Lope de Vega, por este povo. Tenho impressão de que
ela veio pra cá por intermédio de Gregório de Mattos, que usava a décima e
inclusive improvisava glosa sobre mote, do mesmo jeito que o cantador
sertanejo. Uma vez, deram a Gregório de Mattos o mote ''a mais formosa que
Deus''. Ele era membro do cabido da Sé da Bahia e não podia dizer uma
heresia dessa. Então, repare, ele disse assim: ''Com duas moças eu vim/
ontem, de uma romaria/ uma feia parecia/ a outra era um serafim./...
perguntei-lhes, anjos meus/ quem vos pôs em tal estado?/ a feia, que o
pecado/ a mais formosa, que Deus''. É em décima, exatamente a mesma que os
cantadores usam pra glosar os motes. Tenho a impressão que foi pelo caminho
de Gregório de Mattos que ela entrou na cultura brasileira erudita e depois
daí passou pra popular. Depois, a popular devolve à gente. Ariano - É belíssima! Ariano - Você sabe de onde veio o nome histórias de Trancoso? De Gonçalo Trancoso, que era da vila de Trancoso, Portugal, de onde veio também Gonçalo Annes, o Bandarra, foi daí que veio o nome. Todas as histórias baseadas naquele espírito fantástico ficaram sendo chamadas histórias de Trancoso. E formam um universo maravilhoso. Neste romance que estou escrevendo, tem uma parte que é fundamentada no mito da bela e a fera, porque dou importância enorme a este mito. O romance policial, que também me atrai muito, é o conto de fadas moderno. (© NoOlhar.com.br) Os olhos da esfinge
O poeta Fernando Pessoa, em seu único livro publicado em vida,
Mensagem, compara a Europa a uma esfinge que se volta para o
futuro e o futuro está ao Ocidente. E o rosto que mira além do mar é
Portugal. A Península Ibérica - Espanha e Portugal, era habitada por
descendentes de Tubal, segundo o historiador clássico Flávio Josefo. Os
gregos chamavam os tubalinos de iberos. Os iberos receberam diversas levas
migratórias: celtas, fenícios, gregos, romanos, visigodos e berberes (árabes
do deserto). E judeus. (© NoOlhar.com.br) De lá pra cá daqui pra lá Daqui a dois meses, haverá um grande encontro em pleno sertão central do Ceará, reunindo trovadores, poetas e repentistas do Brasil e de vários países do mundo, em especial, os de tradição ibérica
Desde 1996, quando o
cineasta Rosemberg Cariry era secretário de Cultura do Crato, ele pensou em
realizar, por aqui, um grande encontro cultural, que reunisse mestres e
violeiros do Brasil, da América Latina, do mundo, inspirado na época de ouro
da Península Ibérica, ''quando conviveram povos mouriscos, magrebinos, com
os judeus e os cristãos'', diz ele. ''Foi uma época em que as diferentes
culturas destes povos se encontraram, incluindo a tradição clássica grega,
vinda com os árabes, enquanto o restante da Europa mergulhava na Idade
Média. A poesia refina este sentimento profundo, em relação ao amor, com os
trovadores. Foi um momento sagrador''. (© NoOlhar.com.br) Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
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