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Rodrigo Fonseca - O Globo O sertão universal 'Árido movie', do pernambucano Lírio Ferreira, não impressiona Veneza Carlos Helí de Almeida
VENEZA, Itália - O Brasil continua gerando expectativas de um mundo exótico, fonte inesgotável de histórias folclóricas. É o que se pôde concluir depois da coletiva de imprensa de Árido movie, a primeira direção solo do pernambucano Lírio Ferreira, que concorre em Veneza na mostra paralela Horizontes, destinada a produções de perfil mais experimental. O novo filme do co-autor, com Paulo Caldas, de Baile perfumado (1996) conta a história de um jornalista obrigado a se confrontar com suas próprias raízes após a morte do pai, no interior de Pernambuco. A primeira projeção do filme para a imprensa, ocorrida na tarde de quarta-feira, não chegou a lotar a gigantesca sala Palagalileo, com cerca de 2 mil lugares. Também não foi recebido com o entusiasmo que se poderia esperar, apesar das evidentes qualidades deste road movie que explora temas tão caros quanto intrínsecos ao sertão brasileiro, como a falta d'água, o misticismo e a rivalidade entre famílias - a vendeta, uma tradição tão antiga quanto a ocupação do Nordeste, foi estudada com sucesso em Abril despedaçado, de Walter Salles. Tudo contado sob o ponto de vista de Jonas (Guilherme Weber), um homem do tempo de TV, um sujeito da cidade grande e moderna, que volta à terra em que nasceu para o funeral do pai (Paulo César Pereio), que fora assassinado. Talvez influenciada por outros filmes brasileiros recentes ambientados no Nordeste, uma repórter de TV quis saber de Lírio se a fé cega e a violência eram características intrínsecas da região. - Não há como negar a forte religiosidade do povo nordestino. Basta lembrar as romarias geradas pela crença nos milagres de Padre Cícero. Mas a violência não é privilégio do Nordeste - disse Lírio, que exibe a nova cria no Festival do Rio, no final do mês. A suposta frustração dos estrangeiros em relação a Árido movie pode ser talvez explicada pela ausência de elementos alegóricos, fantásticos ou exóticos tradicionalmente associados ao cenário em que transita. O ritmo é pulsante, o diálogo é coloquial e absolutamente contemporâneo (o uso de algumas expressões muito específicas da região se perde na tradução para qualquer língua) e a jornada existencial do protagonista, na verdade, acaba sendo compartilhada por personagens paralelos, que mergulham no mesmo caminho da descoberta. Bob (Selton Mello), Falcão e Verinha (Mariana Lima) são amigos de Jonas dos tempos da faculdade que sonham com os édens das plantações de maconha. Soledad (Giulia Gam) é uma videomaker que faz um documentário sobre o líder de uma seita religiosa (José Celso Martinez Corrêa) que usa uma água especial para salvar a alma dos fiéis. Em Árido movie a experiência do sertão libertador e muitas vezes opressor é vivenciada por outsiders, que perambulam por terras desérticas, mas dotadas de beleza própria, como estrangeiros em sua própria cultura. Até mesmo a fotografia do filme, assinada por Murilo Salles, nega a exuberância de cores e luzes atribuídas à região. - O sertão real é assim mesmo, borrado, escuro, de cores pálidas. A produção do nordeste é a mais naturalista possível - explicou Salles, depois do encontro com a imprensa estrangeira. Por essas e outras razões é que Salles, que também funcionou como produtor do filme, entende Árido movie como ''um objeto estranho'' ao cinema brasileiro atual. - Esse negócio de quanto mais regional mais universal é a maior mentira. Graciliano Ramos, que escreveu sobre o sertão, é menos traduzido em outras línguas do que Jorge Amado porque o folclore vende mais do que uma observação mais profunda sobre a cultura daquela região - diz o produtor. Lírio, por seu lado, diz que Árido movie não representa, necessariamente, uma ruptura com a estética e os propósitos de Baile perfumado, projeto que bebia nas fontes inebriantes do pop e do movimento musical mangue beat. Mas as afinidades culturais com a saga do fotógrafo que registrou Lampião, nos anos 30, permanecem intactas. - O título do filme é uma homenagem ao período em que Baile perfumado foi feito, quando em Pernambuco se articulava um cinema moderno, mas de raiz. É um contraponto ao movimento mangue beat. Na verdade, os dois filmes fazem parte de uma mesma linha evolutiva. Em Baile, o passado dialogava com o futuro, com o nosso presente, através da música, das roupas dos personagens. Árido movie faz o caminho inverso: é uma história atual, contemporânea, que se debruça sobre o nosso passado - descreve o diretor. Pressionado a enquadrar o cinema que faz, Lírio recorre a uma fala de Meu Velho, o líder messiânico interpretado por Zé Celso no filme: ''Isso aqui é e não é, mas está acontecendo''. FESTIVAL DE VENEZA SILVANA ARANTES "Agora está me caindo a ficha. Vou andando por Veneza e me lembrando das caras das pessoas de Arcoverde (interior de Pernambuco), da mulher da sorveteria, por exemplo", diz o diretor brasileiro Lírio Ferreira, autor de "Árido Movie". O filme foi apresentado ontem oficialmente no Lido, dentro da seção Horizontes do 62º Festival de Veneza. A seção é paralela à disputa pelo Leão de Ouro mas também competitiva. A "ficha" que "caiu" para Ferreira numa imaginaria ponte Arcoverde-Veneza é: "Como algo feito no interior pode depois ganhar uma dimensão tão grande". "Árido Movie", seu segundo longa (o primeiro foi "Baile Perfumado"), levou quatro anos para ser concluído. "Paramos um ano inteiro por falta de dinheiro", diz o cineasta Murilo Salles, que produz e fotografa o longa-metragem. O caráter artesanal da produção, de R$ 1,38 milhão, não compromete seu bom resultado. "Árido Movie" é um filme consistente sobre o retorno ao Nordeste de um homem adulto, que havia deixado a região na infância para viver em São Paulo, onde se tornou o "repórter do tempo" na TV. O protagonista Jonas é interpretado pelo ator Guilherme Weber. ""Árido Movie" é o "Em Busca do Tempo Perdido" do Lírio", diz Weber, sobre o caráter pessoal e memorialístico da trama. Pessoalmente, o ator paranaense diz que se sentiu, "como sulista, recuperando a memória genética brasileira". A relação do Nordeste com a fé e a violência surgiu na entrevista coletiva sobre o filme, na manhã de ontem. Mas por um viés "folclorizado do Brasil", na interpretação de Ferreira, Salles e Weber. Folclorizar o Nordeste é tudo o
que a equipe de "Árido Movie" não quer. A sessão oficial competitiva, que aconteceu depois da conversa com os jornalistas, deixou todos mais contentes. "Eu que não sou de chorar, chorei", disse Salles. Ele se emocionou com os aplausos da sala, ocupada em aproximadamente 60%, que duraram "quase todo o letreiro, que tem seis minutos". Foi a primeira vez que Weber viu o filme. A cópia só ficou pronta nas vésperas da projeção no festival. Por isso, o ator teve de contornar o susto quando, pela manhã, perguntaram qual era sua opinião sobre o fato de seu rosto aparecer sem foco na primeira vez que Jonas surge na tela. Na conversa posterior com a Folha, Weber contou a história entre risadas. Pensei: "Sem foco? E deu tanto trabalho fazer!". Jonas de fato aparece inteiramente
desfocado, na televisão ao fundo da cena, onde seu pai, vivido por Paulo
César Pereio está prestes a ser assassinado. O assassinato, que leva Jonas de volta ao lugar onde nasceu e ao encontro de seus enigmas pessoais, faz do filme "um bangue-bangue existencial cientifico musical", na definição de Ferreira, que não ousou mencioná-la à platéia de jornalistas estrangeiros. A definição lembra a prosa do cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e não é à toa. "A cidade do filme se chama Rocha em homenagem a ele", diz Ferreira. "Qualquer filme que eu fizer vai estar impregnado de Glauber Rocha. "Árido Movie" está." Ao ouvir isso, Salles rebate: "Eu, como carioca, discordo. Acho que "Árido Movie" é bressaniano [de Júlio Bressane]". É a ocasião para Ferreira sacar uma frase que aparece no filme, dita por José Celso Martinez Corrêa e que se tornou seu bordão preferido para concordar discordando, ou vice-versa: "É. Não é. Mas está sendo". |
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