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Com a palavra afiada no forró

05/07/2006

Nos lados, Anastácia; ao centro, Cecéu com Antonio Barros


Cecéu e Anastácia são exceções no universo masculino deste gênero musical: são compositoras que já emplacaram muitos sucessos

JOSÉ TELES

Embora Marinês e Chiquinha Gonzaga tenham começado a cantar forró, nos anos 50, ainda durante a febre de baião que contaminou o Brasil, durante muitos anos, a divisão de trabalho no gênero privilegiou os homens com o ofício da composição. Basta dar uma olhada na imensa lista de nomes dos fornecedores de músicas para Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, Marinês. Nela, há pouquíssimas mulheres e apenas duas se destacam: Cecéu e Anastácia. A primeira, paraibana de Campina Grande, a segunda, pernambucana do Recife, gravadas e regravadas, no Brasil e no exterior.

Sozinha, ou com o marido Antônio Barros, Mary Maciel Ribeiro, ou Cecéu, assina sucessos como Bate coração (Marinês, Elba Ramalho), Homem com H (Os 3 do Nordeste, Ney Matogrosso), Por debaixo dos panos (Os 3 do Nordeste e Ney Matogrosso), Forró nº1 (Luiz Gonzaga, Elba Ramalho). Lucinete Ferreira, ou Anastácia, sozinha, ou com o ex-marido Dominguinhos, assina os clássicos Só quero um xodó (Marinês, Gilberto Gil), Tenho sede (Gilberto Gil), De amor eu morrerei (Gal Costa).

Tanto uma como a outra também gravam discos e fazem shows. Apresentam-se muito mais no Sudeste, do que no Nordeste. Cecéu e Antônio Barros passam férias em João Pessoa e, no período junino, fazem shows na região. Já Anastácia, há anos é ignorada pelos produtores nordestinos. No São João deste ano ela fez shows (dez) apenas em São Paulo. Por telefone, de João Pessoa e São Paulo, Céceu e Anastácia conversaram sobre suas vidas, carreiras, o mercado da música e, claro, contaram muitas histórias do forró.

O acaso levou Cecéu a abraçar a música profissionalmente. Ela foi criança e adolescente numa Campina Grande que recebia poucas estrelas do rádio: “Com uns nove anos eu vinha pagar alguma conta no Centro, aproveitava para comprar a Revista do Rádio, ficava antenada com o que faziam os grandes artistas da época. Lembro que quando Anísio Silva veio cantar na Rádio Borborema insisti com minha mãe para que ela me levasse para assistir”, conta Cecéu. Mas até os 20 anos ela era apenas uma fã. De vez em quando rabiscava letras de possíveis canções em um caderno. Tudo mudou quando, em 1971, ela conheceu Antônio Barros, já um compositor renomado: “A irmã dele era costureira e fui em sua casa dela num dia em que Antônio estava visitando os pais. Fomos apresentados, acabamos namorando, casando e vivemos juntos há 34 anos”.

Antônio Barros já era um nome consagrado como compositor. Nos anos 60 chegou a fazer parte do grupo de Luiz Gonzaga, mas sua fase de maior sucesso começou com as parcerias com Cecéu, embora a primeira investida do casal no disco passe por longe do forró: “Gravamos um disco como uma dupla romântica, Tony e Mary, pela Copacabana. Eu tinha ainda influência dos bolerões que escutava em Campina Grande”, conta Cecéu, cuja carreira de forrozeira começou com Forró de tamanco, assinada com Antônio Barros e gravada pelo Trio Nordestino.

Daí em diante a dupla tornou-se uma das grifes mais requisitadas entre os astros do forró, do então novato Jorge de Altinho a Luiz Gonzaga. Ela ressalta que nunca cederam parceria para cantor que gravasse suas músicas, nem mesmo para o Rei do Baião: “Ele nunca pediu parceria a gente. Sabemos que acontece muito e depois vale mesmo é quem assina a música editada. Mas comigo e Antônio não tem isso”.

O casal tem cerca de 700 composições gravadas, pelo menos 40 foram sucesso. Algumas, como Procurando tu, tem mais de duas centenas de regravações no Brasil e dezenas no exterior, em alemão, francês e até hebraico. Nem todas canções são assinadas pelos dois (“Por causa de editora”, explica Cecéu). Os dois conseguem viver de direitos autorais, caso raro no Brasil, mas o que recebem, segundo ela, está muito distante do correto: “Direitos autorais no Brasil é uma incógnita. dois anos atrás uma correspondência de uma dessas arrecadadoras trazia Cai cai balão como a música junina mais tocada no Brasil. Ora, esta música até domínio público já é, de tão antiga. Queria que esse pessoal fosse ao Nordeste na época de São João para ver que 90% das músicas que tocam são de músicos nordestinos”, critica Cecéu. “Mas estamos bem economicamente porque também não fui burra. Quando começamos a fazer sucesso passamos a aplicar o que ganhamos”.

SEM PARAR – Cecéu e o marido não param de compor, embora a nova produção esteja quase toda se acumulando em casa: “Marinês, Alcymar Monteiro, Dominguinhos continuam a gravar música nossa. Mas era interessante a gravação de músicas inéditas quando os artistas tinham gravadora. Você editava, as editoras pagavam um advance, que descontavam depois que a música fazia sucesso. Mas com todo mundo independente, quem vai pagar a gente?”, pergunta ela, que aponta ainda a concorrência das bandas como mais um obstáculo para os que continuam fazendo forró: “O interior está uma vergonha. Botam Bruno e Marrone no São João, com uma música que não tem nada a ver. Vi turistas reclamando que vieram ao Nordeste para ver o forró autêntico e se deparam com as bandas que não fazem sucesso no Rio ou São Paulo, como muitos pensam. Tem banda aí que paga para aparecer em programas de TV, mas não é para entrar no mercado do Sul, não. Fazem isso para ganhar prestígio no Nordeste. Com isso, a cultura da região está indo pelo ralo”, protesta.

Cecéu e Antônio Barros (cuja filha Maíra é cantora, com um disco lançado) têm lançado CDs com a regularidade que o mercado permite (o último saiu em 2003, pelo selo da CPC-Umes, produzido pelo pernambucano Marcus Vinicius). Estão pretendendo gravar mais um, reunindo seus maiores sucessos: “As pessoas vivem cobrando da gente um disco com nossos clássicos. Estamos pensando em fazer isso também pra celebrar 35 anos de parceria”, conta Cecéu. O problema seria definir o repertório, de Procurando tu a Proibido cochilar, de Forró desarmado a Vamos lá pra ver, são quase meia centena de clássicos.

(© JC Online)



Anastácia foi de mala e cuia viver com música e amor

Anastácia é recifense, da Macaxeira. Seus primeiros passos na música foram dados na Zona Norte da cidade, quando venceu um concurso de calouros na, hoje desativada, fábrica Othon Bezerra de Melo: “Cantei Pedaço de mau caminho, um bolero-mambo de Fernando Barreto”, diz Anastácia em conversa por telefone, de São Paulo, onde mora há 46 anos. Em 1954, ela cantava no Sesc do Vasco da Gama quando foi descoberta por Clênio Wanderley, um ator que se apresentou e pediu que ela fosse no dia seguinte na Rádio Jornal do Commercio (atual Rádio Jornal). Fui na rádio, fiz um teste e fui contratada como cantora, mas descobriram que eu tinha também talento para humorista e fiquei fazendo as duas coisas”, lembra ela, que cantou acompanhada por Hermeto Pascoal e pelos maestros Clóvis Pereira, Guedes Peixoto, Zezinho e Duda.

Com a inauguração da TV, em 1960, nem todos os artistas do rádio foram aproveitados: “Eu pensei que ia continuar a mesma coisa, mas começaram a trazer artistas de fora e, quando vi que não ia dar para mim, pedi para ir embora. Decidi vir para São Paulo, trazendo uma carta de Amariles Nicéas, que era o diretor da rádio, para Talma de Oliveira (da TV Tupi)”. Anastácia cantou algumas vezes na TV, mas sem receber. Com mãe e irmãs para sustentar (a família veio com ela), conseguiu um emprego na Vasp e achava que seu destino era ganhar a vida com empregos convencionais. Uma dia ela passava pelo centro de São Paulo quando ouviu alguém chamar por Lucinete: “Era um conhecido meu do Recife, um cantor. Ele me deu um cartão de Venâncio e Corumba (dupla caipira e agenciadores de artistas. Eram pernambucanos). Fui várias vezes ao escritório sem encontrar os dois. Deixei uma foto e meu telefone do trabalho”, continua Anastácia. Alguns dias depois, ela recebeu um telefonema de Venâncio, convidando-a para fazer shows com a dupla no Paraná e, em seguida, a levou para a um teste na Chantecler. Anastácia cantou as músicas do seu repertório no Recife, sambas, boleros. Palmeira, da dupla Palmeira & Biá, pediu que ela cantasse um forró: “Escolhi Sebastiana, de Rosil Cavalcanti. O cara mandou que eu parasse, pensei que não tinha agradado”. Pelo contrário. Palmeira não apenas gostou, como rebatizou Lucinete de Anastácia e gravou com ela o primeiro disco, de forró.

Com a forrozeira, surgiu também a compositora, fornecedora de músicas para artistas como Noite Ilustrada (que gravou o samba Conselho de amigo), Waldick Soriano, Marinês. Ela se tornou amiga de Luiz Gonzaga, que vivia fazendo-lhe convites para ir com ele fazer shows no Nordeste: “Não podia, porque estava casada e o marido não deixava. Depois que separei foi que comecei a carreira para valer”, diz Anastácia, que fez programa de TV, shows com Gonzagão e quadros humorísticos na Bandeirantes, com Genival Lacerda. Em 1967, ela voltou para o Nordeste com Luiz Gonzaga, numa turnê que deveria ter sido batizada de O sanfoneiro do Riacho da Brígida: “Eu abria os shows, enquanto isso Gonzaga ia vender o livro dele”.

Quem tocava sanfona com Luiz Gonzaga nesta turnê era o ainda pouco conhecido Dominguinhos. Nos três meses de convivência, Dominguinhos e Anastácia apaixonaram-se e tornaram-se parceiros. A primeira música que assinaram juntos foi De amor eu morrerei. Durante os onze anos que durou o relacionamento, a dupla assinou 190 músicas: “Quando conheci Dominguinhos, ele só fazia música, comecei a botar letra nas melodias dele”.

Em 1967, com o iê-iê-iê no auge, os dois decidiram morar em Aracaju, cidade onde o forró ainda era a música que tocava no rádio: “Não ficamos muito tempo lá. Dominguinhos tinha a família dele, eu tinha a minha”. Até 1972, a parceria era prolífica. Dominguinhos tem discos inteiros com composições feitas com Anastácia: “As coisas começaram a mudar quando ele fez um show com Gonzaga e Caetano e Gal estavam na platéia. Gal convidou Dominguinhos para ir com ela para o Midem, na França. Antes, tocou o show do disco Índia com ela”, continua. Neste ano, os dois fizeram Só quero um xodó, que foi gravado por Marinês, em ritmo de arrasta-pé. Gilberto Gil conheceu a música num bate-papo com Dominguinhos na França e resolveu gravá-la, num compacto que tinha o hoje obscuro samba Afonsinho como música de trabalho. Foi um dos maiores sucessos de sua carreira. Gil voltaria a gravar outra composição do casal para o disco Refazenda, Tenho sede, que tem um história engraçada: “Ouvi Dominguinhos tocar aquela melodia e fiz uma letra. Ele não gostou, disse que parecia coisa de maracatu. Joguei a letra no lixo, e dei uma saída. Quando voltei, ele tinha apanhado a letra do lixo e me disse que, além de bonita, dava certo com a melodia”.

A separação dos dois não foi amigável. Até hoje, Anastácia não esconde a mágoa que sente do músico, que a trocou pela cantora, também pernambucana, Guadalupe: “Acho que o sucesso subiu à cabeça dele. Houve um tempo em que ele limava meu nome, não me citava como parceira porque a outra mulher proibia. Tinha também aquela coisa do machismo. O resultado é que até hoje são poucos os que sabem que as músicas eram feita por mim e Dominguinhos.

Anastácia tem uma discografia de 44 discos, praticamente toda fora de catálogo, cerca de 500 músicas, o que lhe garante um faturamento que dá para sustentar a família: “Não ganho tão bem quanto deveria, porém recebo mais como compositora do que como cantora: “Não faço mais tanto shows, gostaria de cantar novamente no Recife, mas acho que o paulista respeita mais a cultura do que o nordestino. Enquanto aí as atrações são as bandas de bundas, aqui eles gostam do forró autêntico”, critica. Mãe, avó e bisavó, ela está escrevendo suas memórias, um livro que já tem título: De mala e cuia para o sucesso. 50 anos de forró.

(© JC Online)

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