Com uma teatralização solar, que estréia amanhã,
ele espera ampliar o reconhecimento de uma obra de grande envergadura
Beth Néspoli
Sai a cor negra, o tom soturno, entra a alegria
solar dos brincantes, o intenso colorido dos mantos e bandeiras das
cavalhadas, dos bois de reisados, a beleza das manifestações culturais
populares do Brasil. Projeto acalentado há mais de 20 anos, Antunes Filho
suspende sua série de tragédias gregas para finalmente encenar, ou
teatralizar, como ele prefere, A Pedra do Reino - espetáculo inspirado no
Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Vai-e-Volta e ainda História do
Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana, de Ariano
Suassuna.
Antunes não abriu a sala de ensaios nem mesmo para o autor do livro, Ariano
Suassuna, que estará presente na estréia. "Quero o impacto" é frase dita por
ambos. Mas sobre a encenação, antecipa: não há qualquer tecnologia no palco.
A trilha sonora, assinada por ele, a partir de pesquisa musical de Raul
Teixeira e poesias de Ariano Suassuna, será executada ao vivo pelo elenco.
Com exceção de Geraldo Mário - o conhecido Geraldinho, cria do CPT - todos
os demais 19 atores são novatos, selecionados na mais recente audição feita
por Antunes. "Gosto da tradição teatral do ator que fala sem microfones,
tudo no peito. Microfonia é bom para show. No teatro, tira a humanidade,
encaixota a palavra. E o Suassuna fala tão bonito."
Também não há cenário algum, "antes de mais nada para facilitar a cavalgada
no tempo e no espaço" do personagem central Quaderna. "Acho que é o meu
trabalho mais bem realizado nesse sentido, tive a felicidade de resolver bem
a brincadeira com diversos tempos e espaços", afirma Antunes. Do ponto de
vista formal, a ausência de cenografia contribui para ressaltar as cores e
os diversos elementos de cena. "Quero destacar os conjuntos que remetem aos
bonecos de argila do mestre Vitalino, aos florais de Brennand." Outro
cuidado foi com o sotaque que não vai subir ao palco diretamente. "Não estou
preocupado com isso; Lee Thalor, o ator que faz Quaderna é de Goiânia;
claro, se a construção da frase é tipicamente nordestina, isso já provoca
uma prosódia, uma musicalidade diferente."
A Pedra do Reino, que deveria ser o primeiro livro de uma trilogia, foi
lançado em 1971 e há uma rica fortuna crítica sobre esse alentado romance,
inspirado na saga familiar de Ariano Suassuna e transmutado, pelo talento do
artista, na poética de um Brasil multifacetado, mais que isso, na saga
universal do ser humano em busca de um mundo com mais beleza e justiça.
Desde o português Antonio Quadros, que analisou a obra de Suassuna à luz de
Jung, levantando os arquétipos presentes no livro, até brasileiros como a
professora Idelette Muzart, atualmente professora titular de Literatura e
Civilização Brasileira na Universidade de Paris X, muitos se debruçaram
detidamente sobre essa obra de grande estatura.
Antunes deseja com essa montagem chamar atenção para a dimensão poética
desse romance e para a grandeza de seu protagonista, o 'rei apalhaçado'
Quaderna, síntese da sabedoria e dignidade do homem do povo, em qualquer
cultura, sempre ridicularizadas por pretensos, e pretensiosos, intelectuais.
No início da semana, o Estado conversou com Antunes Filho e com Ariano
Suassuna em locais e tempos diferentes.
(©
Agência Estado)
Mestres na
difícil ciência de decifrar o Brasil
Autor e diretor falam sobre o que os moveu na
criação do livro e da peça
A Pedra do Reino foi publicado em 1971, época do
milagre brasileiro, início da euforia do consumo. Em seguida vem a década de
80, dos yuppies, do individualismo e da valorização do modelo cultural
americano. Neste início de século, ao contrário do esperado, a globalização
provocou o fortalecimento da identidade cultural e a valorização da tradição
como fonte de reinvenção e atualização das culturas. Isso facilitaria agora
a recepção desse livro, cuja poética é de afirmação de identidade por meio
da cultura de raiz popular?
Antunes - Desde a minha primeira tentativa de encená-lo, em 1984, eu
estranhava que esse livro de estatura extraordinária, de alto teor poético,
que fala das cicatrizes de um Brasil profundo e levanta questões importantes
a serem discutidas, não tivesse seu valor reconhecido. Eu já falava, na
época, que era o livro mais importante depois de Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa. Por que não emerge? Mais ainda do que o livro, o personagem
do Quaderna? Acho que dentro da escritura brasileira não existe outra
personagem tão rica. Temos o Policarpo Quaresma, o Macunaíma, os 'detrás da
veneziana' do Machado de Assis, o Diadorim. Quaderna é mais complexo, mais
contraditório. Tenho essa sorte: pego um negócio e coloco o foco certo. Foi
assim com Nelson e Macunaíma e acho que vai ser assim com Quaderna. Falta
pouco para que esse livro seja reconhecido no patamar de seu merecimento. É
só quebrar a casca do ovo. Eu gostaria muito que isso acontecesse. Não por
mim, mas pela importância de Suassuna, o maior escritor brasileiro da
atualidade.
Suassuna - Sempre achei que a cultura tem papel fundamental na
sobrevivência de um País, mesmo quando diziam que o fator econômico era o
mais importante. Talvez eu estivesse errado. Mas agora todo mundo viu que,
na pretensa universalização que é a globalização, quem não se fortalece
culturalmente, desaparece. Tenho impressão que agora está mais fácil ver que
eu tinha razão. Às vezes as pessoas me têm como xenófobo. Isso não é
verdade. Nunca me moveu e não me move qualquer hostilidade. Eu seria até um
ingrato. Ninguém deve mais aos grandes escritores do que eu. Devo a
Shakespeare, Goldoni e Molière, aos grandes russos, principalmente Gogol e
Dostoievski, aos grandes espanhóis, principalmente Cervantes e Calderón de
la Barca. No grande conceito da cultura universal cada país tem de
contribuir com sua nota peculiar.
O que mudou da primeira tentativa para essa que estréia amanhã?
Suassuna - O fracasso da primeira tentativa não foi culpa só de Antunes,
foi minha também. Eu pretendia escrever uma trilogia chamada A Maravilhosa
Desaventura de Quaderna, o Decifrador e A Demanda Novelosa do Reino do
Sertão. Como A Pedra do Reino, o segundo livro teria cinco partes, das quais
eu escrevi apenas duas e publiquei no Diário de Pernambuco como folhetim. Aí
peguei a primeira parte e publiquei em livro com o título Ao Sol da Onça
Caetana, mas depois cheguei à conclusão que tinha cometido um erro. Quaderna
mudou completamente, acabou-se a ironia, porque eu deixei que a minha
história pessoal entrasse pela história e pela personalidade de Quaderna.
Enquanto A Pedra é narrado por Quaderna, O Rei Degolado é narrado por
Suassuna. Eu já tinha descoberto que era um erro, parei, não publiquei a
segunda parte. Enquanto isso, aqui em São Paulo, Antunes pegou e resolveu
somar as duas partes. Não foi culpa dele, não mandei dizer a ele que não
aceitava mais aquilo.
Antunes - Tem uns burrinhos dizendo que o Ariano é reacionário porque
fala de rei, de uma luta oligárquica, de coronéis. Acontece que era o pai
dele, era a mãe dele. Para entender A Pedra do Reino é preciso ser
dialético. Quaderna diz que é monarquista de esquerda, é muito engraçado.
Apesar de não ter nada a ver com Suassuna tem tudo a ver com ele e foi isso
que de certa maneira, na primeira versão, deu problema. Eu falava muito da
mãe dele, do pai dele. Desta vez, brinquei um pouco só no começo. Não posso
fazer A Pedra do Reino sem a História do Rei Degolado. As pessoas precisam
entender a Guerra da Princesa para entender essa história.
Nessa guerra, o município de Princesa, na Paraíba, declarou sua
independência com bandeira, hino, constituição, em 1930. Quando rebenta a
Revolução de 30, o pai de Suassuna é assassinado por conta dessas disputas
políticas regionais. Essas informações estão no espetáculo de alguma forma?
Antunes - Como pano de fundo. Para justificar outras coisas, dar
humanidade a Quaderna. O que é fundamental é o personagem, sofredor e
pícaro. Quaderna ,com sua máscara picaresca, põe no bolso João Grilo,
Policarpo, Macunaíma. Arquétipo do rei com cara de palhaço. Isso é colocado
claramente no espetáculo, um rei com cara de palhaço que tem uma dor
profunda, de ver a mãe cercada pela polícia em determinado momento (isso
aconteceu com a mãe de Suassuna, não do Quaderna).
Se a matéria-prima é pessoal, há transmutação pela arte. Seria redutor
ater-se ao Suassuna, não? No início do livro, Quaderna tem vergonha da
ascendência dele, mas a gente entende isso como o brasileiro com vergonha de
sua identidade.
Antunes - Mas quanto mais eu falar no Quaderna, mais do Suassuna eu falo
e mais ele fica prestigiado, pela grandeza do personagem.
Suassuna - De quem Quaderna tem vergonha é do rei degolador, o bisavô
dele, d. João Ferreira Quaderna, o Execrável. Mas perde a vergonha ao
perceber que os reis europeus tinham degolado ainda mais gente, que Henrique
VIII não ficava atrás. E passa a ter orgulho de sua ascendência.
No livro há vários arquétipos, histórias universais comuns a muitas
culturas, como a cegueira vidente, a exemplo de Tirésias e Édipo; a disputa
entre irmãos, como entre Caim e Abel, o fora-da-lei que ganha a adesão dos
oprimidos. Há um trabalho consciente na criação e no trabalho sobre eles?
Antunes - Robin Hood, Zorro - Quaderna é um deles. A cegueira é outro
desses arquétipos, aquela coisa pré-socrática, 'cega-te e saberás das
coisas', nossos sentidos nos enganam. O cego enxerga, porque vê lá dentro,
mais profundo. Por isso tem de brigar muito para não deixar esses bobinhos
dizerem que Susassuna é reacionário por causa de rei. São os arquétipos.
Velhas batalhas internas. Sou uma legião por dentro. Todos somos. Mas não
precisa ressaltar isso no espetáculo. Os arquétipos estão o tempo todo lá.
Suassuna - Acho que eles vêm das profundezas da alma humana. Depois a
razão ajeita aqui e ali. Tem um fato que já disse, mas vou repetir. Eu
primeiro tentei escrever a biografia do meu pai, mas a carga de sofrimento
foi muito grande, abandonei esse projeto. Tentei fazê-lo num poema épico, e
também deixei. Algum tempo depois, comecei a escrever A Pedra do Reino. A
princípio não percebi que era uma espécie de substituição, até que minha
irmã Germana notou que a morte do padrinho de Quaderna era a morte de João
Dantas, que era primo legítimo de minha mãe e foi assassinado na Casa de
Detenção do Recife, em outubro de 1930. Ele estava preso por ter matado o
presidente João Pessoa e foi encontrado com a garganta cortada, no terceiro
andar, numa cela trancada. A versão oficial foi suicídio, mas a gente sabe
que foi assassinato.
Mas é igual à morte do padrinho de Quaderna!
Suassuna - Pois é, mas eu só notei quando Germana falou. Quando crio
alguma coisa, reescrevo muitas vezes. Aí, na versão seguinte, eu acentuei um
pouco essa semelhança. Não é que os Quadernas sejam os Suassunas, e o Garcia
Barreto sejam os Dantas Villar que é minha família materna, mas uma
recriação exagerada e um pouco caricaturada das duas famílias. Porque o meu
bisavô era um sujeito de gente terrível mesmo.
Como o Execrável?
Suassuna - Não chegava a tanto, mas quase. Eu não sou o Quaderna, mas o
fiz nascer no mesmo dia que eu, 16 de junho. Só que eu nasci em 1927, ele é
30 anos mais velho.
Recentemente o Brasil viveu uma dessas lições nacionais de tons trágicos
com a derrota na Copa do Mundo. Faltou o coração guerreiro e galopante de
Quaderna nos jogadores, faltou a vontade de luta característica do herói. O
Brasil está precisando dessa injeção de valores que o livro traz?
Antunes - Sou amante do futebol, mas fiquei à margem. Assisti a um jogo
só. Era evento, um grande evento internacional, o bezerro de ouro no seu
esplendor, todos os jogadores comprometidos com coisas de alto consumo.
Espero que a lição tenha sido entendida. Quando o Brasil perdeu, eu pensei:
que bom, agora a gente vai enxergar.
Suassuna - Não foi por acaso. Dou muita importância ao futebol. Para
analisar o processo histórico brasileiro parto do Machado de Assis. Ele
dizia que no Brasil existiam dois países, o oficial e o real. Dizia ele que
o país real é bom, revela os melhores instintos. Mas o país oficial é
caricato e burlesco. Nossos jogadores são pessoas egressas do Brasil real
com todas as qualidades do Brasil real, mas são jogados numa estrutura
oficial, numa seleção organizada como empresa. E eles são pegos. Robinho é
uma figura extraordinária, símbolo do Brasil real, com sua alegria, sua
maneira como jogar.
É um pícaro?
Suassuna - É, ele é João Grilo. Tem gente dizendo que eles receberam
dinheiro, mas não acredito nisso. Eles ficaram perturbados, subornados pelos
patrocinadores, por toda essa estrutura. O povo brasileiro é um grande povo,
merecia uma classe dirigente melhor.
O Lula veio desse país real.
Suassuna - Por isso votei nele quatro vezes e vou votar de novo.
Suassuna certa vez disse que tinha escrito A Pedra do Reino em forma de
romance porque o teatro tem a limitação do tempo - uma peça deve ter no
máximo duas horas - e em A Pedra do Reino ele pôde se expandir. Aí vem você,
Antunes, e sintetiza em menos de duas horas. Não teme essa redução?
Antunes - Mas o espectador amplia novamente. Essa amplitude vai estar na
cabeça de quem assistir. A pessoa vai navegar, velejar, imaginar... Tenho
certeza de que vão sair do espetáculo pensando no Brasil. A arte pode
provocar muita coisa. Gostaria muito de acertar nesse espetáculo: por
Ariano, pelo Brasil. Se eu acertar, as pessoas vão sair do teatro com o
Brasil galopando no coração. Não aquela coisa falsa da Copa do Mundo, não
patriotismo besta, nacionalista, mas galope de Brasil profundo.
O senhor, Suassuna, não viu ensaio, não leu o texto. Se for uma decepção,
poderá impedir a temporada? Isso pode acontecer?
Suassuna - Não. Antunes é um grande diretor, não vai me decepcionar.
Quando ele resolveu retomar, pediu que eu fizesse a adaptação, mas eu não
tinha tempo e disse: faça você mesmo, fica como obra sua. Eu já tinha
amadurecido, ele também. Não vi ensaio, não quis ler. Quero ver como
espetáculo de teatro, não vou ver A Pedro do Reino, vou ver a obra de
Antunes Filho. Quero o impacto. Mas a expectativa é grande.
B.N.
(©
Agência Estado)
Antunes retoma o Brasil com Suassuna
Após tragédias gregas, diretor adapta o romance brasileiro "A Pedra do
Reino"
Projeto surgiu na década de 80, mas teve de superar a resistência do
escritor paraibano, que temia um espetáculo autobiográfico
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
"Voltei ao meu velho estilo", avisa Antunes Filho. Ele interrompe um ciclo
de tragédias gregas (Sófocles e duas vezes Eurípides, montados desde 1999) e
reabre as entranhas do Brasil real da literatura, para citar Machado de
Assis, com a teatralização do romance "A Pedra do Reino", de Ariano
Suassuna.
O sonho cultivado e adiado desde os anos 80 é materializado hoje, com o seu
grupo Macunaíma, braço do CPT (Centro de Pesquisa Teatral do Sesc), em
pré-estréia no teatro Anchieta, em São Paulo. A temporada começa amanhã. A
ponte livro-palco aparece aqui e ali na carreira do diretor, como divisor de
águas: em "Macunaíma" (1978), da obra homônima de Mário de Andrade, e em "A
Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1986), de João Guimarães Rosa. O último
fio-terra com o país, por assim dizer, foi a peça "Vereda da Salvação"
(1993), de Jorge Andrade. Ao visitar tal universo, Antunes, 76, diz que se
deixa levar pelo espírito moleque. "Comigo o Brasil flui, posso abrir meu
coração, não tem esforço como na tragédia grega. É fechar os olhos e a coisa
sai; é epidérmico." Mas às vezes deixa hematomas, como na peleja com
Suassuna para convencê-lo da idéia.
Desde o início, há pelo menos 20 anos, era intenção de Antunes tomar por
base o "Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta"
(1971) e sua continuação, "História d'O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão
- Ao Sol da Onça Caetana" (1977).
Quase biografia
Ocorre que, nessa que seria a primeira parte da continuação de "A Pedra do
Reino", Suassuna, 79, se deu conta de que havia cometido um erro de
apreciação. "Se você ler os dois livros, verá que o [personagem
protagonista] Quaderna que aparece no segundo não é o mesmo do primeiro.
Queria fazer um personagem que de certa forma encarnasse o povo brasileiro,
e ali ele estava mais reduzido à história pessoal de Ariano Suassuna. Eu
parei o projeto por causa disso, mas não avisei o Antunes", afirma.
Quando o diretor tentou surpreendê-lo com a boa-nova, a teatralização pendia
justamente para o lado biográfico do qual Suassuna fugia como o diabo da
cruz. Trocaram cartas de zanga. Só retomaram o assunto -e a paz- nestes anos
2000, quando Suassuna leu num jornal de Brasília que Antunes ainda
acalentava encenar "A Pedra do Reino" e lhe deu carta branca. "Ele
[Suassuna] não é o Quaderna, mas tem muito do Quaderna. É nesse limite que
esbarram certos problemas", afirma Antunes, que manteve a junção dos dois
livros.
Utopias
Brasileiro e sertanejo, o narrador atravessa os dois romances oscilando
faces de rei e palhaço, de dor e humor que rimam tragicidade. Se Macunaíma é
o arquétipo do herói sem caráter, Quaderna é o herói movido pelo moinho da
utopia, devagar e sempre.
Como nesse trecho substancial da lavra de Suassuna: "Eu, ao montar no meu
cavalo Pedra-Lispe, ao colocar na minha pobre cabeça a minha pobre coroa de
flandre de palhaço e de rei -eu galopo também pelas estradas e descaminhos
desse meu reino e Castelo da Raça Brasileira, e oponho, assim, às misérias,
feiúras e tristezas da vida real, a galope livre do sonho e da desaventura,
sentido-me ir, como um Dom Sebastião, talvez grotesco mas indomável, ao
encontro de Deus, de meu Povo e da sagrada Morte Caetana- ao encontro da
morte que me imortalizará".
Quem o interpreta é o ator de nome artístico e próprio Lee Thalor, 22, que
faz sua estréia profissional após cursar o CPT. Nascido em Goiás, ele diz
identificar-se com os traços regional e universal da obra.
Existem mais 19 intérpretes, a maioria em seu primeiro trabalho com Antunes.
O grupo assume a direção musical, canta e toca. O palco surge praticamente
nu, como a mente do protagonista a ser preenchida por peripécias. Os
figurinos e adereços foram criados para remeter à memória a às invenções de
Quaderna, por meio de uma pesquisa que inclui a história política da Paraíba
e do Nordeste coronelista da década de 30. Há citações ainda à Coluna
Prestes, ao Cangaço, à Revolução de 30, enfim, ao início da Era Vargas.
O maior desafio, diz Antunes, é equilibrar os tons picarescos e dramáticos
que às vezes não se comportam. Nas entrelinhas, ambiciona a montagem como
espelho crítico "diante da imoralidade que presenciamos na política e na
atitude de alguns brasileiros". Leia-se corrupção. Em sincronicidade, como
diria Jung, referência obrigatória para o diretor, o teatro abraça duas
epopéias: Zé Celso com "Os Sertões" e Antunes com "A Pedra do Reino" (ele
assistiu a uma das partes no Oficina e saiu revigorado).
"Se eu pudesse escolher um patrono para a minha carreira de escritor, seria
Euclydes da Cunha. É como se "Os Sertões" fosse o Velho Testamento e "A
Pedra do Reino", pelo menos na minha intenção, um Novo Testamento, uma
herança de "Os Sertões'", afirma Suassuna.
A PEDRA DO REINO
Quando: pré-estréia hoje, às 21h, para convidados; temporada começa a
partir de amanhã; sex. e sáb., às 21h, e dom., às 19h
Onde: Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000)
Quanto: R$ 10 a R$ 20
(©
Folha de S. Paulo)
POR QUE VER
O encontro de Antunes Filho com a literatura brasileira costuma
revitalizá-lo. O histórico de mais de duas décadas de intenções com a
teatralização de "A Pedra do Reino" e o manancial de brasilidade e de
contradições em Ariano Suassuna apontam condições propícias a um novo salto
(©
Folha de S. Paulo) |
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