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O dia em que Dona Senhorinha cantou

10/06/2008

Mário de Andrade conversa com crianças


Ela lembra da gravação, feita em 1938, para a Missão Folclórica de Mário de Andrade, cujos CDs serão lançados hoje no Sesc

Jotabê Medeiros

Quando ela tinha 18 anos, vivia em Tacaratu, no sertão de Pernambuco e, um dia, acercou-se de sua casa um sujeito que dizia querer gravar umas músicas. Isso foi há quase 70 anos.

Ela chamou uma prima, sobrinho, sobrinha, mais umas senhoras da rua, mais um tal de seu Manoel, um outro que tocava sanfona, gente que conhecia de cantar nas igrejas e nas festas de carnaval. "O homem perguntou se a gente sabia alguma coisa. Aí a gente começou a cantar", contou ao Estado, na semana passada, Senhorinha Freire Barbosa, a Dona Senhorinha. O homem que bisbilhotava por ali era Antonio Ladeira, um dos quatro expedicionários da Missão Folclórica de Mário de Andrade, que registrava manifestações culturais do nordeste brasileiro, em 1938.

"Mário de Andrade não tinha muita idade, não. Era um senhor distinto. Eu me lembro de tudo. Eles vinham de caminhão. Foram ao Brejo do Padre, a Arco Verde. Eu cantei Mandei Cortar Capim e Oh Roseira. Eu cantei e os outros respondiam." Os aventureiros do Sul ficaram boquiabertos.

Hoje, Dona Senhorinha mora no Recife. Teve 11 filhos (seis vivos), 8 netos, um bisneto. Vai fazer 87 anos. Sua voz está registrada nas gravações da missão de Mário, seis CDs que serão lançados hoje, às 21 horas, no Sesc Vila Mariana, junto com cantos de carregadores de piano, carimbós, aboios e outros sons. Dona Senhorinha é uma rara sobrevivente daquela viagem ao fundo do Brasil musical.

"Naquela época, depois que Mário de Andrade passou, Marisa Matarazzo veio a Pernambuco e fez convite para educar minha voz e para eu ser cantora. Mas minha mãe era viúva e não deixou. Eu cantava muito, cantava em casamento, na igreja, no carnaval, no domingo de ramos. Fui a Rainha do Carnaval de Tacaratu."

Redescoberta por Carlos Sandroni lá na praia de Boa Viagem, ela vinha a São Paulo para cantar essa semana, mas um problema na coluna impediu. "Isso tudo tava quase esquecido, para lhe dizer a verdade. Era uma chama que estava quase se apagando, a cinza já estava cobrindo."

Só recentemente é que ela ouviu a própria voz de novo, depois de quase 70 anos, quando lhe trouxeram os CDs para mostrar. "Quando eles ligaram a música, lembrei imediatamente de tudo, de todo mundo, toda aquela coisa boa."

Toda aquela coisa boa que a expedição de Mário recolheu volta hoje à cena. Dona Senhorinha só estará presente nas gravações antigas, mas haverá shows de diversos grupos, como A Barca, Responde a Roda, TEBEI, entre outros.

O material compila sete horas de música, além de quatro volumes bilíngües compostos por catálogo fonográfico e ensaios. Mário de Andrade, então Diretor do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo (1935-1938), coordenou aquele trabalho, que foi levado a cabo pelo arquiteto Luiz Saia, o músico e maestro Martin Braunwieser, o técnico de gravação Antônio Ladeira e Benedito Pacheco, assistente técnico de gravação.

Mário de Andrade temia a desaparição das manifestações mais ricas do folclore nordestino, e resolveu coordenar um trabalho de registros de danças, folguedos, vestimentas e cantos de todo tipo, como as cantorias dos carregadores de piano do Recife. O trabalho rendeu filmes, fotografias, desenhos, partituras, documentos e gravações fonográficas.

O material, que compõe o acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, encontrava-se sob a guarda do Centro Cultural São Paulo e até hoje só estava disponível para consulta de pesquisadores. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, o lançamento dessa coleção visa a partilhar a riqueza do acervo.

"Hoje, toda a colheita sonora de Mário e sua Missão sai dos armazéns", festejou Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, que comercializa os CDs. A coleção traz três encartes, cada um com dois CDs que totalizam sete horas de música, ilustrações e desenhos de violeiros, manifestações folclóricas, danças e pessoas que compunham o cenário da época. Há ainda um volume que reúne textos de pesquisadores como Marcos Branda Lacerda, Flávia Toni e Jorge Coli.

O Cine Olido exibe, a partir de hoje, cerca de 16 documentários brasileiros de produções recentes com a temática regional. A Vitrine da Dança traz grupos populares de todo o país na quinta, sexta e sábado. Na quinta, às 19 horas, um colóquio debate as questões da política cultural. Telê Ancona Lopez e Marco Antônio de Moraes são os participantes.

Na Praça de Eventos do Sesc Vila Mariana, de quinta a sábado, a partir das 12h30, haverá apresentação de grupos que trabalham aquelas manifestações registradas pela Missão, como o Samba de Roda de Vinhedo (SP), os Índios Pankararus (SP), a Barca de Santa Maria (PB), o Coco de TEBEI (PE), o Jongo de Tamandaré (SP), o grupo de Congos de Pombal (PB), Grupo Responde a Roda.

Lá no Recife, Dona Senhorinha se emociona. "Cantei muito, mas só gravei daquela vez. Não consegui gravar no tempo que queria, e minha voz já não é mais aquela. Mas vocês vieram me relembrar muita coisa boa."

(SERVIÇO)Missão de Pesquisas Folclóricas. Sesc Vila Mariana/ Teatro (608 lug.). Rua Pelotas, 141, telefone 5080-3000. Hoje, às 21 horas. R$ 7,50 a R$ 15

(© Agência Estado)

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