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A dança que nasceu da repressão

10/06/2008

Silvério Pessoa, um dos autores da trilha sonora do espetáculo

Fervo, espetáculo que estréia hoje no Apolo, aborda o frevo desde a gênese, quando escravos recém-libertos executavam passos nas ruas

FABIANA MORAES

Não é fácil desconstruir um ícone, principalmente quando ele se propõe a resumir o ethos musical de um Estado. Mas é essa a idéia do espetáculo Fervo, que estréia hoje no Teatro Apolo, com temporada de três semanas. Nele, dança e música têm lastro no ritmo local por excelência, o frevo, que, se hoje nos remete apenas à idéia pueril dos passos cruzados sob o asfalto quente, há um século era ligado primeiramente a uma massa formada por gente à margem da sociedade. “Eram negros recém-libertos, marginais, capoeiras desempregados que se misturavam nas ruas cerca de 10 anos após a abolição”, diz a coreógrafa Valéria Vicente, que dirige pela primeira vez um grupo de dança.

Valéria – assim como os bailarinos Jaflis Nascimento, Calixto Neto, Iane Costa e Lêda Santos e os músicos Yuri Queiroga e Silvério Pessoa, responsáveis pela trilha do espetáculo – integra uma espécie de tour de force que tenta afastar o frevo de seu aspecto meramente folclórico. A violência inerente ao ambiente de cem anos atrás – também presente hoje – é o mote para trabalhar a linguagem longe dos clichês que poderiam facilmente ser empregados. “Hoje vive-se a mesma situação, é uma violência historicamente construída”, fala Valéria, que volta a trabalhar com o frevo após ter se dedicado nos últimos anos apenas à dança contemporânea.

Para executar a coreografia, ela formou um grupo que traz informações de diferentes nuances – e mesmo técnicas – do ritmo. Jaflis Nascimento (filho de Nascimento do Passo, primeiro a elaborar uma sistematização da dança) é responsável por levar a informação mais espontânea, “bruta”, da manifestação ao espetáculo. Já bailarinos como Calixto Neto, que integra a trupe da Escambo Cia. de Criação, trazem movimentos de quem estudou a técnica com olho de pesquisador. “Essa é de fato uma característica de Fervo, englobar trabalhos com diferentes lapidações”, diz Valéria. Calixto, aliás, é o único do elenco que ainda não tinha experiência com o frevo. “É bem diferente do trabalho com a dança contemporânea, uso partes do meu corpo que antes não eram necessárias. Também temos que dosar a respiração de uma maneira nova”, comenta.

Participam ainda do projeto a atriz e figurinista Isa Trigo, professora na Universidade Estadual da Bahia (Uneb), o bailarino e coreógrafo Marcelo Sena (que assina a produção artística e a assistência de coreografia) e Luiz Guimarães, músico, produtor e compositor que realizou a produção da coleção Os melhores frevos do século.

ABERTURA – Apesar de usar uma ótica diferente para abordar o frevo, o espetáculo que estréia hoje no Apolo não deixa de prestar sua homenagem ao ritmo em si. Para isso, foram chamados os integrantes do grupo Guerreiros do Paço, que estudam a linguagem do frevo na cidade há quase dois anos. O grupo, que tem célula na Escola de Frevo do Recife, realiza um trabalho louvável para promover o ritmo. Para um dos dançarinos, Eduardo Araújo, o frevo, bastante citado como um fenômeno artístico de vital importância ao pernambucano, é ainda artigo de luxo nas ruas do Estado. Restrito ao Carnaval, ele precisa brigar por um espaço que, a priori, seria seu.

“Nós formamos o grupo justamente porque é muito difícil escutar um frevo em meses diferentes do Carnaval”, conta Eduardo. O Guerreiros do Paço realiza trabalhos com comunidades de quatro localidades: em Rio Doce e Jardim Brasil (Olinda) e Escola Municipal Mário Melo e Praça do Hipódromo (Recife). No último local, acontecem, todos os sábados, aulas que reúnem os professores do grupo (são quatro) e alunos que aprendem frevo gratuitamente. Dezesseis pessoas vindas do Guerreiros estarão presentes na abertura do espetáculo hoje. “Começamos com uma capoeira, depois entra um dobrado (fanfarra), seguido por dançarinos que interpretam movimentos do frevo. Depois, quatro passistas entram em cena”, descreve Eduardo.

Serviço: Fervo - de 14 a 29 de setembro, no Teatro Apolo. Quintas, às 20h, e sextas às 21h. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

(© JC Online)


Uma trilha que dá um chega para lá na tradição

JOSÉ TELES

“Eu chamaria a trilha uma desconstrução do conceito tradicional de frevo. Para fazer este trabalho com Yuri (Queiroga), parti da mesma estrutura do meu disco Micróbio do frevo”, explica Silvério Pessoa a concepção da música de Fervo.

Ele tomou várias liberdades para criar a trilha, desde samplear frevos antigos a inserir noticiário policial, acoplados a uma gama variada de recursos eletrônicos, despindo-se de qualquer purismo para encaixar a música dentro da dança contemporânea: “No roteiro há, por exemplo, valsa, música que se dançava quando o frevo começava a nascer. Mas valsas também com elementos atuais, eletrônicos”, comenta ele sobre a última faixa da trilha, o tema Fim de fantasia.

Momentos da trilha não tem vida própria fora do balé, mas a grande parte pode ser escutada como uma das poucas manifestações de frevo de vanguarda: “É um trabalho instrumental, mas em alguns trechos eu uso a voz tão reprocessada no estúdio que é confundida com o som de uma guitarra”. Além de vozes como recurso instrumental, adiciona diversas outras decorando os temas.

Gravado em uma semana, a trilha de Fervo já recebeu propostas de transformar-se em disco, possivelmente ainda este ano, “A idéia é que seja lançado até novembro. Acho que deve ser vendido na segunda temporada do espetáculo”. Há trechos de música eletrônica que passam por longe do frevo, caso das faixas Medo (I e II), que não têm vida própria fora do espetáculo. Em outra, Frevo macumba mescla-se o ritmo com toque de terreiro candomblé.

Em Frevo mundiça (Caosminhada de Amon Tobin na Rua da Moeda), Silvério e Yuri vão ainda mais longe. Fazem um rock pesado, quase metal, temperado com a percussão do frevo. No geral, a trilha funciona melhor com a coreografia, porém é mais um passo para o frevo livrar-se de vez dos pruridos de tradicionalismo que o deixaram por tanto tempo engessado, e ameaçado de se tornar peça de museu, uma espécie de dixieland pernambucano.

(© JC Online)

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