O baiano Jorge
Cravo esteve presente em alguns dos momentos fundamentais da música nacional
e dos EUA, entre as décadas de 40 e 60
José Teles
teles@jc.com.br
Para o escritor
Ruy Castro se Forrest Gump houvesse sido inspirado em um brasileiro, seria
no baiano Jorge Cravo, testemunha e participante de alguns dos grandes
momentos da história da música popular do século passado. Jorge Cravo (irmão
mais novo do escultor Mário Cravo) está hoje com 80 anos e contou suas
peripécias na biografia O caçador das bolachas perdidas (Editora Record, R$
33). O livro não é lançamento, mas passou despercebido quando foi publicado,
há quatro anos, e merece mais leitores. O autor não é nenhuma celebridade,
nem dono de feitos extraordinário. Apenas estava nos lugares certos, nos
momentos certos.
Filho de um
rico exportador de café, Jorge Cravo tinha 20 anos quando foi estudar, em
1947, nos Estados Unidos. A Syracuse University foi logo trocada por Nova
Iorque, que vivia um dos períodos musicais mais férteis.O jovem ex-estudante
brasileiro viu, conviveu, testemunhou parte da carreira de Billie Hollyday,
Charlie Parker, Nat King Cole, Billy Eckstine. Sua sorte para conhecer
famosos começou em Salvador. Em 1942, por exemplo, o cineasta Orson Welles,
a quem foi pedir um autógrafo e de quem acabou amigo. Orlando Silva, então
no auge da carreira, Jorge Cravo também conheceu e dele ficou amigo, em
Salvador. O dono do hotel, amigo do pai de Cravinho (apelido pelo qual
atende até hoje), facilitou a apresentação. No show que fez na capital
baiana, o adolescente teve a honra de sentar na primeira fila. Orlando
Silva:: “...quase não acreditei quando, tapando o microfone com a mão, ele
se virou para mim, que estava sentado perto do palco, e perguntou: - O que
você quer ouvir?”. Cravinho lembra que para mostrar que conhecia o
repertório de Orlando Silva pediu a valsa Num galho de acácia. Cometeu uma
gafe. Porque o cantor havia interpretado aquela música uma vez num programa
da Rádio Nacional, mas não a gravara, e a orquestra não tinha feito arranjo
para esta. Ele pediu outra, mas fácil, Coqueiro velho.
O seu
primeiro contato com o jazz não poderia se mais auspicioso. Presenciou,
ainda em Syracuse, a primeira e mais elogiada fase de Nat King Cole, com um
trio, no qual ele tocava piano acompanhado por Irving Ashby, na guitarra, e
Joe Confort, no contrabaixo. Nos anos 40, os cinemas nova-iorquinos
apresentavam, entre um filme e outro, shows com cantores, cômicos,
orquestras: “Quando o show me empolgava, esperava terminar a apresentação,
escondia-me no toalete e lá ficava durante o filme, à espera do show
seguinte. Lembro de ter assistido a três shows de Billie Holiday numa mesma
tarde”, recorda “Cravinho”, que chegou a seguir a cantora até um restaurante
chinês onde ele tomava uns uísques nos intervalos dos shows. Quis pedir um
autógrafo, mas não teve coragem. De volta ao Brasil escreveu-lhe uma carta
sondando a possibilidade de trazê-la para shows em Salvador. A cantora
respondeu a carta e disse que poderia ir cantar no Rio, sugerindo que o
rapaz procurasse Jorge Guinle, o milionário e profundo conhecedor de jazz.
Cravo não procurou Guinle. Pior, perdeu a carta: “Recordo-me vagamente de
tê-la guardado dentro de algum livro ou, talvez, dentro de algum LP de
Billie, que vendi para os americanos nos anos 90. Se foi esse o caso,
imagino o susto do comprador ao abrir o disco, e dele cair um envelope com
uma carta de Billie Holiday”.
Jorge Cravo
conta que num mesmo dia podia assistir à orquestra de Duke Ellington, com
Mel Tormé nos vocais, e logo depois Billy Eckstine em dupla com Sarah
Vaughan, com direito a uma canja de Charlie Parker. Nos EUA, ele conheceu
também brasileiros que cantavam por lá, Os Anjos do Inferno, com Lúcio
Alves, Carmem Miranda, cuja casa visitou em Los Angeles, Dick Farney, Ary
Barroso, em seus tempos de compositor para a Disney. De volta a Salvador no
final dos anos 40, um das primeiras amizades que fez foi com um cantor do
interior chamado João Gilberto. Cravo conta também suas hilariantes
aventuras na Copa de 58, e como foi cicerone de Garrincha na Suécia.
Ao longo dos
anos tornou-se dono de uma das maiores e mais seletas coleções de discos do
País. Fez parte de um grupo de especialistas em música popular e diz que só
perde em conhecimento de especificidades no assunto para o jornalista Ivan
Lessa. Em meados dos anos 90, começou a gravar os álbuns em fitas e
desfez-se da maioria dos discos.
Mas ainda
guarda muita raridade. Ruy Castro conta que visitou Cravo em Salvador na
companhia do cantor Pery Ribeiro. Conversando sobre seus álbuns prediletos,
Pery falou do disco da sua vida, Vaughan & Violins (Sarah Vaughan com Quincy
Jones, gravado em Paris em 1958). Lamentou não ter mais o LP, que não havia
ainda saído em CD. Cravo pediu licença, foi lá dentro e voltou com uma cópia
do álbum, em perfeita conservação. E mais, trouxe um envelope com fotos das
sessões de gravação. Ele aparece nas fotos, ao lado de Sarah Vaughan e
Quincy Jones.
(©
JC Online)