Escritor Raimundo Carrero lança O amor não tem bons
sentimentos, no qual explora o mundo dos insanos
Schneider Carpeggiani
carpeggiani@gmail.com
A única coisa que ele lembrava, assim num repente, era
da menina nas águas. Uma menina morta. Nua, estava nua, e nem era uma
mulher ainda. “Lindeza de pernas e coxas, macios, macios peitos e terno
ventre, meu peixinho dourado”, observava o homem diante do corpo da
irmã, pela última vez nua, à sua frente. É em plena cena do crime que
Raimundo Carrero nos inicia no universo mental de Matheus, acusado de
duplo homicídio (da mãe e irmã) e ainda assim a cria literária que mais
emociona seu criador.
“Ele é de uma loucura comovente, ao mesmo tempo lírico
e brutal, o mal em estado puro. Eu sou muito impressionado com a
loucura, que é um tema recorrente na minha obra, porque não vejo lucidez
em lugar algum. A minha ‘família literária’ me angustia muito", explica
Carrero, que lança hoje no Bar Caprinos seu elogio à loucura na forma do
romance O amor não tem bons sentimentos. Apesar da imagem trágica do
primeiro capítulo, o escritor quis fazer desse o seu livro mais leve.
Mas de uma leveza obtusa, nutrida pela humanidade com que Carrero
impregnou todos os traços de Matheus, para assim aliviar a barra-pesada
da sua trajetória pessoal. Não é uma tarefa fácil.
Para construir o romance, Carrero foi em busca de dois
grandes arquétipos literários – o Dom Quixote de Cervantes e o
Raskolnikov de Dostoiévski, em Crime e castigo. O primeiro verteu a
loucura em miséria e galhofa aos olhos do mundo, o segundo, a solidão em
assassinato. “O escritor que conseguir aliar esses dois personagens num
só, terá construído sua grande obra”, destaca Carrero.
Ainda é possível encontrar um terceiro fantasma
perseguindo Matheus: Macabéa, a nordestina ilhada e exilada na cidade
grande do Sudeste que a engolia, como um dia escreveu Clarice Lispector
em A hora da estrela. De tão inocente, Macabéa dividia o raio da sua
sombra com a tragédia. À certa altura, perguntam a Macabéa porque ela
tomava tanta Aspirina. A resposta: “porque a vida dói”.
Também à certa altura de O amor não tem bons
sentimentos, Matheus sai, vestido com os trajes paternos, em busca do
pai já falecido (ou mesmo assassinado...) pela casa vazia. Cansado da
busca inútil, decide “brincar de ser o pai” e coloca um guarda-chuva no
céu da boca, imitando o gesto do polegar apertando o gatilho. “A
explosão do tiro jogou minha cabeça para trás, bateu forte no espaldar
da madeira”. Ali a vida também doía, e guarda-chuva era a saída (ou o
remédio) derradeiro, como a Aspirina um dia fora para Macabéa.
O amor não tem bons sentimentos parte de um lance
antifreudiano: garoto é abandonado pelos pais ao nascer, é criado pela
tia e passa o resto da vida procurando remendar as partes de uma família
que nunca fora sua, num mundo que já não é mais possível. Ao contrário
da psicanálise – onde o paciente se volta ao passado e (em teoria)
retorna fortalecido – em Carrero o retorno só estreita os laços com o
trágico.
Se seu romance anterior Ao redor do escorpião...uma
tarântula assustou/afastou leitores e críticos por sua estrutura (uma ou
duas frases se “contorcendo” em mais de 100 páginas), desta vez Carrero
aparentemente se preocupou mais com a narrativa que com a técnica.
Aparentemente. O amor não tem bons sentimentos é um romance que se
desdobra em várias camadas, com o autor brincando com os limites das
palavras, para só assim dar cabo de toda complexidade de Matheus. Falar
a língua dos loucos e degradados é o limite da literatura de Carrero.
Durante a entrevista com o escritor sobre seu novo
romance, foi impossível não lançar mão da pergunta mais
jornalisticamente gasta entre todas as outras, “o que quer dizer o
título do seu livro, por que o amor não tem bons sentimentos?”.
Resposta: “todo amor é egoísta e isso nunca pode ser bom.”
(©
JC Online)