Dirigido por Décio Matos Jr., Fabricando Tom Zé apresenta as várias
nuances da personalidade do artista baiano
Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@uol.com.br
Há algo de intrigante ao vermos Tom Zé, um dos nomes mais
importantes da música brasileira, e que sempre parece ter ficado num
tipo de margem da mesma, tendo um superagressivo piti com um técnico
de som francês numa das cenas que colam na memória ao ver Fabricando
Tom Zé (Brasil, 2007), registro dirigido por Décio Matos Jr.. Tanto
o ataque de nervos quanto uma sonora vaia que esse artista baiano
recebe num outro momento sugerem o tipo de interesse voyeurístico
que compõe um documentário desse tipo, como uma honestidade de
imagem que parece derrubar a parede que separa o artista de nós,
consumidores de seja lá o que eles fazem.
As perguntas “quem é essa pessoa que produz?” ou “o que há por
trás da música, filmes, livros?” parecem perseguidas em filmes tão
diversos como freqüentes. Em Italianamerican (1974), Martin Scorsese
nos mostra seus pais fazendo macarronada em casa, em Entrevista de
Fellini (1988), vemos o mestre italiano falando sobre o cinema, a
vida e sua mulher, Giulieta Masina. Madonna parece ter atingido
graus inéditos de exposição em Na cama com Madonna (1991), Nelson
Freire (2003) leu íntimas cartas de família e o recente Cartola
(2007) propôs um ensaio sensorial sobre o compositor.
São exemplos desse tipo de cinema que, se não desvenda um artista
(isso seria possível?), pelo menos nos abre janelas interessantes
para dentro dele/dela, numa época em que a idéia de “reality TV”
ameaça transformar esse tipo de filme em algo obsoleto. Hoje,
qualquer um, fazendo qualquer coisa, é acompanhado por câmeras.
O retrato de Tom Zé feito pelo filme mantém a atenção, embora
seja óbvio que o interesse pessoal do espectador no artista e na sua
obra sejam pré-requisitos mínimos. Não convertidos poderão se
interessar, pois Tom Zé é engraçado, anárquico, ácido, seu
temperamento explosivo, sua visão de mundo contestadora permanece
intacta ao longo de mais de 40 anos de carreira, talvez pelo simples
fato de ainda existir à uma certa margem. Foi ele quem conseguiu
enganar alegremente o olho vesgo da censura no Brasil dos anos 70
com a capa de um dos seus discos. Na capa, a foto de uma boca em
extremo close-up era, na verdade, um ânus.
Sobre essa “marginalidade”, se pensarmos num suposto olimpo da
MPB onde moram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa e Maria Bethânia, Tom Zé parece ter sido trancado do lado de
fora. O filme investiga isso com coragem e sem sensacionalismo,
mostrando que o filme não resultou num registro chapa branca. Rixas
antigas do passado são remexidas, em especial o porquê de Tom Zé ter
ficado de fora do Tropicalismo quando sua música, postura e discurso
fariam dele um claro tropicalista. O filme deixa claro que
movimentos não são compostos apenas pela arte produzida, mas pelas
relações pessoais entre os que os compõem.
Gilberto Gil e Caetano Veloso, entrevistados recentemente para o
documentário, não parecem saber ao certo o porquê da rixa, dois
artistas que, mesmo com o benefício do tempo, assumem certa confusão
e contradição sobre possíveis erros do passado. Vê-los na frente da
câmera é instigante, especialmente quando Tom Zé mostra-se rancoroso
com todos.
Ele toca, no entanto, soberano a sua carreira, e descobrimos a
importância de David Byrne no processo de descoberta e valorização
desse baiano com um reconhecimento que veio tardio no exterior, e
que foi depois revertido para o próprio Brasil. Aos poucos, o filme
monta painel humano e artístico de como funciona o showbusiness,
dominado por egos, tendências de mercado e mudanças de vento que
incidem num artista que, já na casa dos 70 anos, traçou linha reta
ao longo de toda a sua trajetória.
(©
JC Online)
A música é
uma visão do mundo para o artista
Luiz Zanin Oricchio
Agência Estado
SÃO PAULO – Os filmes sobre música estão surgindo por aí e
fazendo seu caminho. Fabricando Tom Zé põe em cena um artista
singular, quase inclassificável, como diz em depoimento sua
mulher, Neusa. Em que compartimento colocar Tom Zé? Na gaveta
tropicalista, da qual ele cedo saiu? Em que linha evolutiva da
MPB?
Quando se pergunta a Tom Zé sobre suas raízes, sobre sua
formação, ele cita o cineasta francês Alain Resnais sobre a
matriz de definição da personalidade, que se daria entre o
nascimento e os 2 anos de idade. E aí então temos os sons da
infância, os poetas, os cantadores, a influência provençal na
cultura ibérica do Nordeste profundo (vide Ariano Suassuna).
Vinte anos depois, a vanguarda na Faculdade de Música de
Salvador, sob as ordens de Hans-Joachim Koellreuter. E, em
seguida, a São Paulo dos concretistas Décio Pignatari e os
irmãos Campos, e dos maestros Rogério Duprat e Julio Medaglia.
Por intermédio de Pignatari, Tom Zé estuda Peirce e a semiologia
Esse substrato cultural está integrado em sua obra. Está em
Estudando o samba, o disco que David Byrne escutou e o deixou
pasmo, pois não conhecia nada parecido. Era uma síntese da alta
cultura com o legado de Irará.
Fabricando Tom Zé consegue captar um pouco desse misterioso
processo do artista em contato consigo mesmo e com suas
influências no trabalho de compor uma obra. Por exemplo, quando
conversa com um dos músicos de sua banda e o surpreende ao dizer
que, durante algum tempo, sua obsessão eram as modulações, quer
dizer as variações de uma tonalidade a outra ao longo do sistema
tonal. Esse lado, digamos, matemático e rigoroso, convive com o
artista que sabe da importância do acaso na criação. “Se começa
a chover, se um avião passa, isso deve entrar na música”, diz a
uma certa altura. A música é uma visão de mundo.