Notícias
 Um retrato sem retoques

27/07/2007

 

Tom Zé
 

Dirigido por Décio Matos Jr., Fabricando Tom Zé apresenta as várias nuances da personalidade do artista baiano

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@uol.com.br

Há algo de intrigante ao vermos Tom Zé, um dos nomes mais importantes da música brasileira, e que sempre parece ter ficado num tipo de margem da mesma, tendo um superagressivo piti com um técnico de som francês numa das cenas que colam na memória ao ver Fabricando Tom Zé (Brasil, 2007), registro dirigido por Décio Matos Jr.. Tanto o ataque de nervos quanto uma sonora vaia que esse artista baiano recebe num outro momento sugerem o tipo de interesse voyeurístico que compõe um documentário desse tipo, como uma honestidade de imagem que parece derrubar a parede que separa o artista de nós, consumidores de seja lá o que eles fazem.

As perguntas “quem é essa pessoa que produz?” ou “o que há por trás da música, filmes, livros?” parecem perseguidas em filmes tão diversos como freqüentes. Em Italianamerican (1974), Martin Scorsese nos mostra seus pais fazendo macarronada em casa, em Entrevista de Fellini (1988), vemos o mestre italiano falando sobre o cinema, a vida e sua mulher, Giulieta Masina. Madonna parece ter atingido graus inéditos de exposição em Na cama com Madonna (1991), Nelson Freire (2003) leu íntimas cartas de família e o recente Cartola (2007) propôs um ensaio sensorial sobre o compositor.

São exemplos desse tipo de cinema que, se não desvenda um artista (isso seria possível?), pelo menos nos abre janelas interessantes para dentro dele/dela, numa época em que a idéia de “reality TV” ameaça transformar esse tipo de filme em algo obsoleto. Hoje, qualquer um, fazendo qualquer coisa, é acompanhado por câmeras.

O retrato de Tom Zé feito pelo filme mantém a atenção, embora seja óbvio que o interesse pessoal do espectador no artista e na sua obra sejam pré-requisitos mínimos. Não convertidos poderão se interessar, pois Tom Zé é engraçado, anárquico, ácido, seu temperamento explosivo, sua visão de mundo contestadora permanece intacta ao longo de mais de 40 anos de carreira, talvez pelo simples fato de ainda existir à uma certa margem. Foi ele quem conseguiu enganar alegremente o olho vesgo da censura no Brasil dos anos 70 com a capa de um dos seus discos. Na capa, a foto de uma boca em extremo close-up era, na verdade, um ânus.

Sobre essa “marginalidade”, se pensarmos num suposto olimpo da MPB onde moram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, Tom Zé parece ter sido trancado do lado de fora. O filme investiga isso com coragem e sem sensacionalismo, mostrando que o filme não resultou num registro chapa branca. Rixas antigas do passado são remexidas, em especial o porquê de Tom Zé ter ficado de fora do Tropicalismo quando sua música, postura e discurso fariam dele um claro tropicalista. O filme deixa claro que movimentos não são compostos apenas pela arte produzida, mas pelas relações pessoais entre os que os compõem.

Gilberto Gil e Caetano Veloso, entrevistados recentemente para o documentário, não parecem saber ao certo o porquê da rixa, dois artistas que, mesmo com o benefício do tempo, assumem certa confusão e contradição sobre possíveis erros do passado. Vê-los na frente da câmera é instigante, especialmente quando Tom Zé mostra-se rancoroso com todos.

Ele toca, no entanto, soberano a sua carreira, e descobrimos a importância de David Byrne no processo de descoberta e valorização desse baiano com um reconhecimento que veio tardio no exterior, e que foi depois revertido para o próprio Brasil. Aos poucos, o filme monta painel humano e artístico de como funciona o showbusiness, dominado por egos, tendências de mercado e mudanças de vento que incidem num artista que, já na casa dos 70 anos, traçou linha reta ao longo de toda a sua trajetória.

(© JC Online)


A música é uma visão do mundo para o artista


Luiz Zanin Oricchio
Agência Estado

SÃO PAULO – Os filmes sobre música estão surgindo por aí e fazendo seu caminho. Fabricando Tom Zé põe em cena um artista singular, quase inclassificável, como diz em depoimento sua mulher, Neusa. Em que compartimento colocar Tom Zé? Na gaveta tropicalista, da qual ele cedo saiu? Em que linha evolutiva da MPB?

Quando se pergunta a Tom Zé sobre suas raízes, sobre sua formação, ele cita o cineasta francês Alain Resnais sobre a matriz de definição da personalidade, que se daria entre o nascimento e os 2 anos de idade. E aí então temos os sons da infância, os poetas, os cantadores, a influência provençal na cultura ibérica do Nordeste profundo (vide Ariano Suassuna).

Vinte anos depois, a vanguarda na Faculdade de Música de Salvador, sob as ordens de Hans-Joachim Koellreuter. E, em seguida, a São Paulo dos concretistas Décio Pignatari e os irmãos Campos, e dos maestros Rogério Duprat e Julio Medaglia. Por intermédio de Pignatari, Tom Zé estuda Peirce e a semiologia Esse substrato cultural está integrado em sua obra. Está em Estudando o samba, o disco que David Byrne escutou e o deixou pasmo, pois não conhecia nada parecido. Era uma síntese da alta cultura com o legado de Irará.

Fabricando Tom Zé consegue captar um pouco desse misterioso processo do artista em contato consigo mesmo e com suas influências no trabalho de compor uma obra. Por exemplo, quando conversa com um dos músicos de sua banda e o surpreende ao dizer que, durante algum tempo, sua obsessão eram as modulações, quer dizer as variações de uma tonalidade a outra ao longo do sistema tonal. Esse lado, digamos, matemático e rigoroso, convive com o artista que sabe da importância do acaso na criação. “Se começa a chover, se um avião passa, isso deve entrar na música”, diz a uma certa altura. A música é uma visão de mundo.

(© JC Online)

 

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind