SÃO PAULO - Dois aspectos distintos da música de Lenine podem ser apreciados na
cidade neste fim de semana. O compositor volta amanhã e domingo com o show
Acústico MTV, tocando suas canções mais conhecidas, no Sesc Pinheiros. No Teatro
Alfa, até o dia 12, o que está em cena é seu trabalho mais recente e inédito: a
impactante trilha sonora de Breu, nova coreografia do Grupo Corpo, que
já está à venda em CD (de produção independente) no saguão do teatro, por R$ 35.
Além disso, Lenine está produzindo o novo álbum do cantor e compositor Tcheka,
do Cabo Verde. Com dois álbuns ao vivo consecutivos - In Cité (2004),
gravado em Paris, e o Acústico MTV (2006) - ele também deve voltar ao
estúdio este ano para gravar o próximo CD de canções inéditas. O roteiro dos
shows de hoje e amanhã segue o perfil retrospectivo do Acústico, incluindo
algumas de suas canções mais marcantes, como A Ponte, Hoje Eu Quero
Sair só, Paciência e O Último Pôr-do-Sol e Dois Olhos
Negros. "Nada disso foi intencional. O show no In Cité foi um só, num
primeiro momento eu disse que não queria gravar; o Acústico foi um convite
irrecusável da MTV e só tive um mês e meio para preparar. Não foi nada
premeditado", diz. "Agora estou realmente pensando em um disco de estúdio. Cada
novo trabalho é sempre uma somatória das experiências que a gente tem. Como o
exercício da composição é uma coisa ininterrupta, quando começo a pensar num
disco, já tem um chão que foi andado."
Toda instrumental, a trilha de Breu tem oito temas e uma gama de tonalidades
e atmosferas, nuances de experimentalismo e violência, texturas e fusões de
ritmos de densidade elevada, que ganha força em cena, mas também é bom de se
ouvir fora do contexto da dança. Caboclinho, rock pesado, frevo, elementos do
funk clássico, característicos da pegada de violão de Lenine, estão no paredão
sonoro de autoria inconfundível. Com participação de Igor Cavalera (bateria),
Bocato (trombone), Jr. Tostoi (violão, guitarra, efeitos), co-produtor do CD com
Lenine, Siri (percussão) e a sensacional Spok Frevo Orquestra, a trilha tem como
ponto alto Secular, um frevo desconstruído mesclado com rock, que homenageia o
centenário do ritmo pernambucano, incluindo fragmentos de vários temas famosos
do gênero, em citações divertidas.
"Talvez este seja o trabalho mais autoral meu, o disco mais revelador de como
estou agora", diz Lenine, que vem se juntar a Philip Glass, Uakti, Milton
Nascimento, João Bosco, Tom Zé, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Zé Miguel
Wisnik, entre os parceiros de confiança do Grupo Corpo. "Fiquei muito honrado
com o convite e impactado com a coreografia. Pela primeira vez vi minha música
tridimensional." Para o compositor, o coreógrafo Rodrigo Pederneiras "teve uma
delicadeza em transpor todos os relevos e as nuances dos arranjos e das músicas
para os corpos dos bailarinos".
(©
Agência Estado)
Seco e violento, Corpo brilha
no breu
Nova coreografia de Rodrigo Pederneiras é
um marco diferenciador na trajetória de 32 anos desse premiado grupo mineiro
Estamos
no reino das ambivalências. É tudo seco, curto, abrupto, violento. Os corpos se
empurram, se derrubam, se sacodem. Caem, caem muito. Ao mesmo tempo, também se
escoram, se amparam e se procuram, como se não lhes restasse qualquer outra
possibilidade. Breu, a nova criação de Rodrigo Pederneiras para o Grupo Corpo, é
escura, mas brilha como um marco diferenciador, nos 32 anos de trajetória da
companhia.
A excelente trilha composta por Lenine levou Rodrigo a mudar muita coisa no seu
modo de compor dança. Reconhecido pelo tipo de musicalidade coreográfica que
cunhou, parece agora impregnado por uma ‘estética da multidão’, de certa forma
também presente na música de Lenine - uma trilha povoada por leituras autorais
de materiais existentes que, então, se contaminam em um processo encantador de
remissão e de reinvenção. Foi Antonio Negri quem trouxe o conceito de multidão
para explicar a nossa vida no mundo pautado pelo capital. A multidão é a rede
formada por uma multiplicidade de poderes e saberes do nosso cotidiano. Na
multidão, não somos indivíduos com identidades privadas, mas sim sujeitos
compartilhados, uns mestiços dos outros.
São assim os corpos de Breu. Eles se precisam, se procuram, mas formam uma
parceria molecular, que não pára de se rearticular. A cena-emblema do que se
passa está no espetacular duo-embate de Flavia Couret e João Vicente, ambos, no
melhor papel de suas carreiras. Um come da energia do outro, toma do outro o
movimento, interrompe, direciona, impede, comanda, resiste, ajuda, insiste.
Enquanto se pegam e repegam, cinco duplas expõem o corpo que não se agüenta
mais, um corpo que precisa ser empurrado para se deslocar, e precisa ser
suspenso para conseguir ficar de pé.
A ambivalência aparece também no jogo com o preto que azuleja o cenário e veste
as costas dos bailarinos. Um também engole o outro, mas em alguns momentos, faz
nascer o contorno dos corpos, pois devolve a imagem, num efeito de espelho. O
cenário de Paulo Pederneiras retira a neutralidade da caixa preta do teatro, que
ganha a frieza de um laboratório para os experimentos de Rodrigo. A sabedoria da
figurinista Freusa Zechmeister escolheu embaralhar os bailarinos com grafismos,
e assim conseguiu tridimensionalizar os compartilhamentos que vão,
ambivalentemente, distinguindo e misturando cada um na multidão que se forma e
desenforma.
Na nova língua que se insinua em Breu, sobressai a intenção do gesto e não a
forma da sua execução. Sai de cena a prática do corpo de baile (todos dançando
da maneira mais assemelhada e virtuosística possível) e adentra a
companhia-multidão, povoada por singularidades mestiças. Ao ser apresentado no
mesmo programa que Sete ou Oito Peças para um Balé (estreada em 1994, e não
dançada desde 1999), a transformação de Rodrigo Pederneiras como que se
autodemonstra.
Breu se distancia do compromisso de ligar inteiramente música e dança, pois
abriga bem-vindos momentos de silêncio e mais economia de passos. Permite mais
embolamentos e eles vão montando outra espacialidade, onde figurinos, cenário e
iluminação se ajustam com a precisão e o acabamento que já se tornaram a grife
do Grupo Corpo.
O elenco explode a sua excelência tanto na desconstrução dos duos que aqui
surgiu, como demonstram, com muita competência, Silvia Gaspar/Peter Lavratti, e
Ana Paula Cançado/Beto Venceslau, quanto na continuidade evolutiva dos traços
que marcam a escrita de Rodrigo, aqui reciclados. Um dentre vários exemplos
possíveis é o que sucedeu com aquele passo que Tom Zé trouxe de Irará para
agregar a Parabelo (1997) (corpos-aranha andando pelo chão).
Há que destacar ainda o solo de Beka (Everson Botelho). Além de consagrá-lo como
um intérprete sem limites, expõe, na clareza de seus impecáveis movimentos, as
misturas que agora ganharam o papel principal na escrita de Rodrigo Pederneiras.
Elas também estão inteligentemente apresentadas, tanto no ‘quase frevo’ que
Lenine compôs, quanto no ‘quase frevo’ que os bailarinos dançam, cuja concepção
guarda sintonia com o tipo de pesquisa que a dupla Angelo Madureira-Ana Catarina
Vieira também desenvolve.
Neste Breu, Rodrigo propõe outras formas cooperativas para a escuridão de onde
ainda não se avista qualquer saída. Os corpos- compassos se voltam sobre si
mesmos, em circularidade contínua. Todavia, eles não permanecem no mesmo lugar,
pois é com a própria circularidade que conseguem avançar. Ou seja, o mesmo
movimento que encapsula, desloca no espaço, porque nesse corpo, ombros, pulsos e
cotovelos se tornam ignições para os movimentos. Por mais esta ambivalência, e
por muito mais do que ainda pode ser dito, Breu pode ser tomado como uma
importante obra política do Grupo Corpo.
(SERVIÇO)Grupo Corpo. Teatro Alfa. R. Bento Branco de A. Filho, 722, Santo
Amaro, 5693-9400. 4.ª a sáb., 21 h; dom., 18 h. R$ 30 a R$ 80. Até 12/8
(©
Agência Estado) |