Lampião
Na Semana do Cangaço, em Canindé do São
Francisco, uma certeza: o cangaceiro continua mais vivo do que nunca
Por LUIS PELLEGRINI - Canindé do São Francisco (SE)
Seu Elias e seu Pedro. Em Olho D’Água do Casado, sertão sergipano, região do
Baixo São Francisco, todos os conhecem. São mitos vivos da história do
cangaço. Elias Marques, 95 anos, mora ao lado de Pedro de Tercila, 96, na
praça central de Olho D’Água. Seu Elias foi membro da volante policial que,
no amanhecer de 28 de julho de 1938, atacou de surpresa o bando do
cangaceiro Lampião, acampado na Grota do Angico, às margens do rio São
Francisco, e o assassinou, junto à mulher Maria Bonita e outros nove
integrantes do grupo.
Seu Pedro, por seu lado, foi um dos principais “coiteiros” de Lampião,
homem de confiança, encarregado de passar mensagens e fazer compras de
víveres, remédios, roupas e munição.
Na hora das fotos, Elias passa o braço sobre os ombros de Pedro. Pedro e
Elias, em tese, deveriam ser inimigos mortais, mas, “ficamos amigos há mais
de 50 anos, quando percebemos que estávamos no mesmo barco: duas vítimas do
jogo de poder entre os coronéis da época e os chefes do cangaço. Se eu não
obedecesse às ordens do meu comandante, seria fuzilado sem perdão. Se Pedro
não fizesse o que Lampião mandava, seria castrado ou apanharia de relho até
morrer.”
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A GROTA DA
MORTE Missa do Cangaço, na Grota do Angico.
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Seu Pedro concorda com repetidos movimentos de cabeça. Cego de um olho e
quase surdo, ele deixa Elias falar pelos dois: “O cangaço não é de ontem. É
de hoje. Vocês não vêem televisão? A roubalheira, os poderosos usando e
abusando do dinheiro público, o crime organizado deitando e rolando, e nós,
do povo, sempre no meio, levando bala e sova de relho dos dois lados. Tudo
continua do mesmo jeito, até pior. O Brasil sempre foi e continua sendo o
país do cangaço.”
Na abertura da Semana do Cangaço, em Canindé, de 24 a 28 de julho, a
platéia está lotada de estudantes. A palestra é de Vera Ferreira, neta de
Lampião. Sua mãe, Expedita, é filha única do cangaceiro com Maria Bonita.
Com apenas 21 dias de vida, Expedita foi entregue a uma família de coiteiros
e criada por eles. A vida no cangaço não admitia a presença de crianças.
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O local exato onde Lampião morreu. |
Seu Pedro, o coiteiro, e seu Elias, o
volante |
Diz-se que Vera é quem carrega o “sangue” da família. Jornalista e
pesquisadora, ela é a portadora do “raio da selibrina”, expressão regional
que sintetiza rebelião, revolta, desejo de justiça, pavio curto,
inteligência, argúcia, cabra-macha “e uma pitada de loucura, que sem isso
não se chega a lugar algum”. Seu projeto para a criação de um Memorial do
Cangaço foi finalmente aceito pela Prefeitura de Canindé. O prefeito,
Orlando Porto de Andrade, já separou um terreno às margens do São Francisco
e as obras começarão em breve.
A fala de Vera Ferreira foi curta, não durou mais de meia hora. Em
compensação, a saraivada de perguntas dos estudantes durou mais de duas.
Qual o nome de Lampião? Virgulino Ferreira da Silva. Por que ele virou
cangaceiro? Vera desfia uma longa história de desavenças, vinganças e
perseguições entre vizinhos que culminou no assassinato do pai de seu avô.
Por que surgiu o cangaço? Por conta da impunidade, da falta de
responsabilidade e compromisso social dos políticos, do momento
sociocultural da época e, sobretudo, “devido à ignorância e à lassidão de
caráter do nosso povo, um povo que até hoje não faz valer seu voto, que
vende seu voto em troca de uma dentadura ou uma camiseta”, diz ela. A
platéia aplaude.
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SERVIR DE
LIÇÃO Na foto célebre, as cabeças cortadas dos
11 cangaceiros trucidados em 1938 na Grota do Angico |
Na Missa do Cangaço, ponto alto da Semana do Cangaço, celebrada na manhã
de sábado, 28 de julho, na Grota do Angico, estavam todos. Autoridades
municipais e estaduais sergipanas, jornalistas, escritores e pesquisadores,
mais umas duas centenas de populares. Todos, menos o padre. Preferiu ficar
em Poço Redondo rezando uma outra missa, também em sufrágio dos cangaceiros
mortos. Mas não seria por falta de padre que as almas dos cangaceiros seriam
privadas de suas homenagens. Dona Maria do Socorro Feitosa Guimarães, beata
ilustre de Canindé, abriu a bolsa, puxou um rosário e exclamou: “Não tem
padre? Pois vamos rezar o terço.” E desfiou a ladainha de pais-nossos,
ave-marias e salve-rainhas, com o coro dos presentes. Uma voz de homem
comentou: “Por isso é que acho errado a Igreja não abrir o sacerdócio às
mulheres.”
Terminado o rosário, na barranca do rio São Francisco, uma peixada de
surubim aguardava, regada a cerveja, suco de cajá e graviola, ao som de uma
banda arretada de forró. Washington Rodrigues Correa, sobrinho-neto de Pedro
de Cândido, o coiteiro de Lampião que traiu o cangaceiro e revelou – forçado
pelas milícias – o local onde ele e seu bando acampavam, na Grota do Angico,
sentou-se com os jornalistas.
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“OS CANGACEIROS NÃO FORAM HERÓIS
NEM BANDIDOS. FORAM HOMENS QUE DISSERAM NÃO À SITUAÇÃO”
Vera Ferreira, neta de Lampião e Maria Bonita |
Alguém lhe perguntou: “Washington, você é descendente do homem que traiu
Lampião, e talvez mais do que ninguém carrega o peso dos dramas do cangaço.
Diga lá, de coração: Lampião foi um herói ou um bandido?”
Sua resposta não podia ser mais inquietante: “Lampião foi simplesmente um
brasileiro.”
Um mito no Nordeste
brasileiro
Lampião, ou Virgulino Ferreira da
Silva, o rei do cangaço, nasceu em 1898 em Vila Bela, município
de Serra Talhada, Pernambuco, e morreu assassinado pelas forças
da ordem, na Grota do Angico, Sergipe, em 1938. Passou metade
dos seus 40 anos no comando de seu bando de cangaceiros, com os
quais percorreu os sertões de sete Estados: Bahia, Sergipe,
Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Justiceiro e herói para alguns e bandido sanguinário para
outros, ele e sua companheira Maria Bonita são um mito em todo o
Nordeste brasileiro.
Na França, a historiadora Élise Jasmin dirige
um grupo de estudos acadêmicos sobre o cangaço. Seu último
livro, Cangaceiros, acaba de ser lançado no Brasil pela Editora
Terceiro Nome. |
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Isto É) |
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