Folguedo corre
perigo de extinção por se valer de músicas com letras maliciosas e
dançarinas seminuas
José Teles
teles@jc.com.br
Em pleno reinado de grupos de letras pornôs, um folguedo popular corre
perigo de extinção exatamente por se valer de praticamente os mesmos
elementos das bandas: músicas com letras de quíntuplos sentidos e dançarinas
com pouca roupa. O disco Antologia do pastoril profano (realizado pela
Sambada Comunicação e Cultura, com patrocínio do Funcultura) traz à tona uma
manifestação do povo quase esquecida pelo movimento mangue, que trouxe para
os palcos da ciranda ao coco-de-roda. Walmir Chagas, com seu personagem Véio
Mangaba, foi o único músico nos anos 90 que resgatou um pouco do brinquedo,
porém mais como demonstração, como definem Luiz Gonzaga de Mello e Alba
Regina Mendonça Pereira, no livro O pastoril profano de Pernambuco.
O pastoril de ponta-de-rua é a dessacralização do presépio ou lapinha. No
pastoril profano, as mocinhas dos cordões azul e encarnado foram
substituídas por mulheres-da-vida, com um “véio”, ou bedegueba. Daí porque o
folguedo é também chamado de pastoril de véio, ou de pastoril de
mulher-da-vida.
Naturalmente, com um elenco desses, as apresentações do pastoril não são
reguladas pela moral vigente. O sexo é o leit motiv dos pastoris profanos,
pelo menos dos clássicos, como o Velho Faceta, por exemplo, que nos anos 70
pelas mãos de Hermilo Borba Filho chegou à gravadora Bandeirantes e fez
sucesso nacional, com músicas como Nabo seco, É mais embaixo, O piriquito ou
Dona Maçu.
Este Velho Faceta que gravou três discos foi o segundo com este nome.
Chamava-se Jonas, morava em Abreu e Lima. O Faceta original era, segundo o
citado livro, filho de um russo, chamava-se Constantino Leite Moisakis e
faleceu em 1986, na pobreza. Se bem que o Faceta de Abreu e Lima também não
tenha morrido em situação diferente. Teve um sucesso passageiro. Exibiu-se
para platéias de intelectuais e universitários, mas logo foi esquecido. Um
trecho do Boa noite do Velho, foi incluído no início de A cidade, no disco
de estréia da Chico Science & Nação Zumbi.
“O objetivo deste disco foi o de resgatar uma manifestação que está
acabando. Hoje são muito poucos os velhos de pastoril autênticos”, confirma
Paloma Granjeiro da Sambada Comunicação e Cultura, que trabalhou como
assistente da direção artística na gravação do disco. Ela diz que a produção
idealizou o repertório do disco como se fosse uma apresentação de um
pastoril profano: “Tem o disco e um CD-ROM com textos sobre pastoril,
informações sobe o Velho Faceta, um vídeo com depoimentos e uma pequena
amostra do que é o pastoril profano”. Trabalharam na produção do disco e
CD-ROM 80 pessoas, e foi consumido um ano de trabalho, conta Paloma
Granjeiro: “Procuramos chegar o mais perto possível do espírito do pastoril
profano, as músicas são do Velho Xaveco, várias de domínio público e duas de
Bráulio de Castro”.
(©
JC Online)
Semelhança com
forró estilizado é afastada
Walmir Chagas, o Véio Mangaba, diretor musical do projeto (com Beto do
Bandolim), assume que hoje só existe uma estilização do pastoril
de-ponta-de-rua: “Não se faz mais aquela coisa que faziam o Barroso ou o
Faceta, infelizmente, a manifestação daquela forma acabou. O véio ia na
zona e contratava as putas para ser pastoras. Era um tipo de brinquedo
que não tinha como sobreviver, até porque nunca foi desmarginalizado.”,
com o que ele não concorda são as comparações entre o pastoril profano e
as bandas do chamado forró estilizado: “É um grande equívoco comparar o
pastoril com estas bandas. Não tem nada a ver uam coisa com a outra. O
pastoril, na verdade, fazia uma crítica ao falso moralismo, à Igreja,
aos coronéis, aos poderosos. Já as bandas, o que elas apresentam é a
vulgarização do sexo, do corpo da mulher”.
Walmir Chagas é também um dos intépretes no disco, que conta com
participação de um “véio” de pastoril, Xaveco (para abertura da jornada
foram sampleadas vozes de alguns célebres “véios”, entre eles o Velho
Faceta), de Silvério Pessoa, Carolina Leão, Cinderela, Bráulio de
Castro, Isaar, Ivanildo Silva, Reinaldo de Oliveira e Josildo Sá. O
acompanhamento é bem mais sofisticado do que o dos pastoris profanos
(cuja instrumentação consta basicamente de uma sanfona, um bombo e um
pandeiro), com trompete, trombone, sax, acordeom, percussão, sob a
direção de Beto do Bandolim.
Na impossibilidade de repetir a inocente obscenidade (sic) de um
verdadeiro pastoril de ponta-de-rua, a produção optou por um trabalho
que não estiliza, adapta a jornada para uma versão meio pop do pastoril.
A introdução, por exemplo, é um maxixe instrumental de Beto do Bandolim
(o maxixe é utilizado em outras faixas, como em Vacaria, cantada por
Josildo Sá). O peixe pacu (Xaveco) virou um samba-de-latada. Silvério
Pessoa e Carolina Leão interpretam a conhecida Casamento da pastora
(gravada pelo Velho Faceta) em ritmo de frevo. Vamos pegar caranguejo,
com Walmir Chagas e Cinderela, merecia um coral feminino, ficaria melhor
do que a voz masculina do cômico como uma pastora. Das melhores do disco
é a faixa que fecha o repertório, Amor de criança (de domínio público, e
popularizada pelo Velho Faceta), com Isaar e Ivanildo Silva.
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