Escritor cobriu a Segunda Guerra Mundial na Itália e
tornou-se célebre por reportagem que dissecava os "grã-finos" de SP
Chamado de "víbora" por Assis Chateaubriand, dos
"Diários Associados", Silveira escreveu mais de 40 livros; ele tinha câncer
de próstata
DA SUCURSAL DO RIO
O último dos dinossauros do jornalismo, como ele se
definia, morreu na manhã de ontem, aos 88 anos. Joel Silveira, que não quis
fazer tratamento contra um câncer na próstata, dormia em seu apartamento, no
Rio. Sua mulher e seus dois filhos decidiram não fazer velório do corpo, que
será cremado. Ele publicou romances, contos e crônicas entre seus mais de 40
livros, mas foi, sobretudo e acima de quase todos, repórter.
Os problemas de saúde o tiraram do front nas duas últimas
décadas, mas, sempre que procurado na trincheira de Copacabana, fazia jus à
alcunha de "víbora" dada por Assis Chateaubriand. Falava mal de presidentes
e artistas e, embora órfão dos muitos amigos mortos, procurava não se
deprimir.
"[Sou] teimoso. Eu não pedi para vir ao mundo. Agora, aos
80 anos, não vou pedir para sair", disse ao repórter Geneton Moraes Neto em
2004.
Política e jornalismo fizeram parte da vida do sergipano
Silveira. Em 1932, antes de completar 14 anos, tornou-se oficial de gabinete
do governador do Estado. Dois anos depois, criou no colégio em que estudava
o jornal "A Voz do Atheneu".
Após ganhar um prêmio pela novela "O Desespero", ganhou
coragem para alcançar o destino praticamente inevitável aos jovens
nordestinos aspirantes a escritor: o Rio de Janeiro. Disposto a trabalhar
quase de graça, arrumou emprego no semanário literário "Dom Casmurro", onde
colaboravam Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cecília Meireles e Carlos
Lacerda.
Escritor
Ainda que nunca tenha desistido da ficção, Silveira não
recebeu, ao longo da vida, grandes estímulos dos amigos ilustres. Contava,
com humor, que mostrou um conto certa vez a Graciliano Ramos, e o alagoano
rasgou minuciosamente as folhas, convidando-o em seguida para tomar uma
cachaça.
Já no jornalismo impunha admiração -e medo- a todos. A ponto de Manuel
Bandeira definir seu estilo como "uma punhalada que só dói quando a ferida
esfria". Na revista "Diretrizes", dirigida por Samuel Wainer, publicou em
1943 sua reportagem mais famosa: "Os grã-finos de São Paulo". Misturando
faro de repórter, olhar de escritor, idéias de jovem socialista (fundou o
PSB) e veneno, produziu trechos como este:
"Era uma festa somente para milionários, e sobre todos
aqueles sobrenomes repousava a força paulista de hoje. Por detrás dos
sobrenomes, há um mundo incrível: centenas de fábricas, milhares de
chaminés, milhares de motores, milhares de operários. Era um grupo terrível,
avassalador. Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me
tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam. Sorriam e
bailavam com as mulheres, todas muito belas."
O texto é encontrável no livro "A Milésima Segunda Noite
da Avenida Paulista". Este título é de outra reportagem, publicada em 1945,
sobre o casamento do milionário João Lage com Filomena, filha do conde
Francisco Matarazzo Jr. A cobertura venenosa foi encomendada por Assis
Chateaubriand, que queria forçar o "conde Chiquinho" a chegar a um acordo
sobre uma transação imobiliária.
Foi Chatô quem enviou o repórter à Itália para cobrir a participação da FEB
(Força Expedicionária Brasileira) na Segunda Guerra. Marco no jornalismo
brasileiro, a cobertura rendeu vários livros de Silveira.
Presidentes
As suas histórias com presidentes da República, de Antônio
Carlos a Tancredo Neves, resultaram em outros tantos títulos. Foi amigo de
Juscelino Kubitschek -de quem teria roubado uma namorada-, bebeu com Jânio
Quadros sem conseguir acompanhá-lo -apesar de sua experiência no assunto- e
produziu um famoso texto ("Conheci Getúlio Vargas") sem ter entrevistado o
então ditador do Estado Novo, para ele "um filho da mãe de uma habilidade
política terrível".
Silveira trabalhou em vários jornais e revistas, tendo
recebido em 1975 o Prêmio Esso de Jornalismo especial pelo conjunto da
carreira. Preferia ser repórter, mas foi como diretor de "O Paiz" que o
regime militar o prendeu após o AI-5.
Ganhou em 1998 o Prêmio Machado de Assis, o mais
importante da Academia Brasileira de Letras. Mas não conseguiu se tornar
imortal: perdeu uma eleição em 2000 e, no ano seguinte, lançou sua
anticandidatura à vaga de Jorge Amado, revoltado com a tentativa de
substituição do escritor por sua mulher, Zélia Gattai. Perdeu por 32 a 4.
Como bom repórter, Silveira era sempre do contra.
O ministro Franklin Martins (Comunicação Social) disse
ontem que "o Brasil perdeu hoje um de seus maiores jornalistas em todos os
tempos. O sergipano Joel Silveira tinha 88 anos e uma vida invejável para
contar. Suas histórias extraordinárias e seu texto mordaz marcaram época.
Ele deixa à imprensa brasileira um legado de talento, sensibilidade e força
crítica".
Colaborou Banco de Dados
Frases
"Tudo começou na verdade com a reportagem sobre os grã-finos paulistas.
Assis Chateaubriand viu e disse: "Esse sujeito é uma víbora. Quero ele
trabalhando pra mim'
Chateaubriand me chamou e disse: "Seu Silveira, o sr. vai para a guerra. Mas
me faça um favor. Não morra. Repórter não vai para a guerra para morrer. Vai
para mandar notícia'
Não existe isso de pequeno ou grande repórter. Grande é a notícia
Nunca tomei nota de qualquer entrevista, apenas anoto nomes e números.
Prefiro ficar na conversa vadia, a investigar a alma do entrevistado, a ver
se me diz tudo e muito mais. No meu bolso nunca esteve o lápis
Oswald de Andrade era um moleque. Era um sujeito ruidoso, cheio de frases
feitas, um vagabundo, nunca fez nada na vida
[Mário de Andrade] Era insuportável, um viadão, vivia cercado de garotos.
Devo ser a única pessoal do Brasil que nunca recebeu uma carta de Mário
Tenho horror à literatura de Jorge Amado. É de uma precariedade terrível.
Tenho impressão de que sabia por alto umas 47 palavras
Acho João Gilberto uma das 7 pragas do Egito -e do Brasil. Nada é tão chato
quanto a bossa nova"
FRASES DE JOEL SILVEIRA
Repercussão
LÊDO IVO , poeta: "Ele era uma mistura de poesia e ironia. Tinha uma
linguagem enxuta, bonita. Nós demos a ele o prêmio Machado de Assis. Ele
quis entrar para a Academia Brasileira de Letras, mas, em decorrência do
trabalho dele como jornalista, ele tinha algumas hostilidades lá. É pena que
não tenha entrado".
RUY CASTRO , escritor: "Ele foi uma espécie de repórter brasileiro à
maneira dos grandes repórteres norte-americanos [unindo jornalismo e
literatura]".
EVARISTO DE MORAES FILHO, membro da ABL: "O Joel é um sujeito de um
talento extraordinário. Foi o maior repórter brasileiro. O Brasil acaba de
perder um grande homem. Eu apoiei a candidatura dele, mas ele só teve quatro
votos porque foi contra a Zélia Gattai e a Academia nunca tinha visto isso
de uma mulher disputar a cadeira do marido".
(©
Folha de S. Paulo)
Morre Joel Silveira, o repórter da língua
afiada
RIO – O último dos dinossauros do jornalismo, como ele próprio se
definia, morreu na manhã de ontem, aos
88 anos. O sergipano Joel Silveira, que
não quis fazer tratamento contra um
câncer na próstata, dormia em seu
apartamento, no Rio. Sua mulher e seus
dois filhos decidiram não fazer velório
do corpo, que será cremado hoje. Ele
publicou romances, contos e crônicas
entre seus mais de 40 livros, mas foi,
sobretudo e acima de quase todos,
repórter.
Os problemas de saúde o tiraram do
front nas duas últimas décadas, mas,
sempre que procurado na trincheira de
Copacabana, fazia jus à alcunha de
víbora dada por Assis Chateaubriand.
Falava mal de presidentes e artistas e,
embora órfão dos muitos amigos mortos,
procurava não se deprimir. “Eu não pedi
para vir ao mundo. Agora, aos 80 anos,
não vou pedir para sair”, disse ao
repórter Geneton Moraes Neto, em 2004.
Política e jornalismo fizeram parte
da vida de Silveira. Em 1932, antes de
completar 14 anos, tornou-se oficial de
gabinete do governador do Estado. Dois
anos depois, criou no colégio em que
estudava o jornal A Voz do Atheneu.
Após ganhar um prêmio pela novela O
Desespero, ganhou coragem para alcançar
o destino praticamente inevitável aos
jovens nordestinos aspirantes a
escritor: o Rio de Janeiro. Disposto a
trabalhar quase de graça, arrumou
emprego no semanário literário Dom
Casmurro, onde colaboravam Graciliano
Ramos, Jorge Amado, Cecília Meireles e
Carlos Lacerda.
Ainda que nunca tenha desistido da
ficção, Silveira não recebeu, ao longo
da vida, grandes estímulos dos amigos
ilustres. Contava que mostrou um conto
certa vez a Graciliano Ramos. O alagoano
rasgou minuciosamente as folhas,
convidando-o em seguida para tomar uma
cachaça.
Já no jornalismo impunha admiração –
e medo – a todos. Na revista Diretrizes
publicou em 1943 sua reportagem mais
famosa: “Os grã-finos de São Paulo”.
Foi Assis Chateaubriand quem enviou o
repórter à Itália para cobrir a
participação da Força Expedicionária
Brasileira (FEB) na Segunda Guerra
Mundial. Marco no jornalismo brasileiro,
a cobertura rendeu vários livros.
Silveira trabalhou em vários jornais
e revistas, tendo recebido em 1975 o
Prêmio Esso de Jornalismo especial pelo
conjunto da carreira. Ganhou em 1998 o
Prêmio Machado de Assis, o mais
importante da Academia Brasileira de
Letras. Mas não conseguiu se tornar
imortal: perdeu uma eleição em 2000 e,
no ano seguinte, lançou sua
anticandidatura à vaga de Jorge Amado,
revoltado com a tentativa de
substituição do escritor por sua mulher,
Zélia Gattai. Perdeu por 32 a 4. Como
bom repórter, Silveira era sempre do
contra.
(©
JC Online) |