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Capa da coletânea inédita 'O Artista Incofessável', de João Cabral
de Melo Neto
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Reedição da obra do poeta comprova a
vitalidade da sua poesia calculada
Ubiratan Brasil, do Estadão
SÃO PAULO - Em uma de suas poesias, O Que se
Diz ao Editor a Propósito de Poemas, João Cabral de Melo
Neto reclamava que seus livros tinham de ser logo
publicados, ato que os tornavam embalsamados. "E preciso
logo embalsamá-lo: / enquanto ele me conviva, vivo, / está
sujeito a cortes, enxertos: / terminará amputado do fígado,
/ terminará ganhando outro pâncreas; / e se o pulmão não
pode outro estilo / (esta dicção de tosse e gagueira), / me
esgota, vivo em mim, livro-umbigo." A fama de recluso,
portanto, não refletia na obra - em vários de seus versos,
João Cabral, um poeta da mesma grandeza de Pessoa e
Drummond, fazia confissões com idêntica emoção, mais aguda e
afiada, como um grito quase petrificado.
É o que se pode observar no livro O
Cão sem Plumas, que chega nesta segunda-feira, 27, às
livrarias ao lado da coletânea inédita O Artista
Inconfessável, iniciando a valiosa reedição da obra de
João Cabral de Melo Neto (1920-1999), agora sob a chancela
da Alfaguara. "E é por isso que decidimos criar aquele
volume, que não existe de fato na sua bibliografia", explica
Inez Cabral, filha do poeta. "Ali, ao longo de uma seleção
de poemas cuidadosamente escolhidos, todos com traços
biográficos, queremos mostrar que João Cabral nunca foi
totalmente cerebral, anêmico."
Morte e Vida Severina
De fato, com a poesia novamente à
disposição (o próximo volume deverá trazer o clássico
Morte e Vida Severina), será possível perceber a
ruptura radical na linguagem da poesia brasileira provocada
por João Cabral. Antes dele, os versos nacionais viviam à
sombra do simbolismo e da retórica pomposa. A partir de
Pedra do Sono, de 1942, mas especialmente com a
publicação de O Cão sem Plumas (1950), o poeta
revela uma escrita marcada pelo estilo seco, cortante, uma
visão materialista da escrita, além de seu desprezo ao
enfeite e à beleza fácil.
A leitura sempre surpreendente de seus
poemas logo convence que João Cabral era um arquiteto da
poesia - cada verso era cuidadosamente pensado, a fim de dar
forma a uma estrutura consistente do poema. Com isso,
despertou a atenção dos concretistas que, para se
legitimarem, elegeram-no seu precursor.
Havia, realmente, alguma semelhança. Em
sua poesia, João Cabral oferecia uma visão objetiva,
expressa principalmente nos versos sem retoques que retratam
a triste realidade nordestina e que tem um ponto alto em
Morte e Vida Severina. "Mas, ao contrário da aparente
impessoalidade, sua poesia revela um poder muito mais agudo
e uma emoção ainda mais essencial, que infelizmente poucos
hoje conseguem detectar", comenta a editora Isa Pessoa,
coordenadora da reedição e que convidou Antonio Carlos
Secchin para estabelecer o texto e cuidar da bibliografia.
Descobrir
o poeta
A proposta, portanto, é
justamente promover o descobrimento de João Cabral. E isso
acontece com O Cão sem Plumas, seu primeiro poema
de grande fôlego, um dos marcos definitivos da poesia
brasileira e um divisor de águas na poética de João Cabral.
"De 1942 a 1947, ele realizou a proeza notável de construir
uma identidade autoral forte e renovadora a princípio, que
foi se tornando verdadeiramente revolucionária a cada nova
publicação", escreve Armando Freitas Filho, na introdução da
nova edição de O Cão sem Plumas, lembrando ser esse
o livro que dá a partida dessa "revolução sorrateira feita
fora do Brasil, no ‘exílio’ diplomático, à margem das
editoras, em edições do autor, hoje verdadeiras raridades
bibliográficas".
João Cabral viveu 35 anos
fora do Brasil como diplomata, até se aposentar como
embaixador. Serviu na Espanha, na França, na Inglaterra, na
Suíça, no Equador, em Honduras e em Portugal. Mas suas
aldeias sempre foram Recife e Sevilha. "Parecia um homem
fechado, circunspecto, de fachada intransponível, mas não
era", relembra Inez Cabral. "Minha guerra santa atual é
mostrar que meu pai não era uma pessoa difícil."
Foi por isso que ela decidiu
propor a organização dos poemas intimistas de O Artista
Inconfessável. Inez pretendia realizar um documentário,
pois acreditava ser o meio mais eficaz para divulgar a obra
do pai entre os jovens leitores. "Não me interessa falar aos
acadêmicos, que construíram uma idéia até certo ponto errada
de sua obra - pretendo chegar aos adolescentes que, quando
descobrem sua poesia, descobrem também que João Cabral é
pop."
Documentário
A idéia ecoou positivamente
na Alfaguara que, para divulgar o relançamento da obra, vai
exibir um documentário em algumas livrarias - em setembro, a
Cultura será uma das escolhidas. "Percebemos que o leitor
gosta de estar próximo do autor, daí a importância das
sessões de autógrafo", conta Isa Pessoa. "Como o poeta não
está mais vivo, decidimos exibir um filme com uma série de
depoimentos de artistas cuja obra incorporou a poesia do
João Cabral."
Chico Buarque de Holanda
participa de um dos momentos mais tocantes. Ele se lembra
que João Cabral era ostensivamente antimusical e reagiu mal
quando pediram autorização para musicar Morte e Vida
Severina. "Depois de acompanhar o resultado final, meu
pai se tornou o maior fã do Chico, empolgadíssimo com o
trabalho que ele realizou", lembra Inez.
Chico Buarque também
contraria a lenda de que a poesia cabralina seria seca ao
confessar que ainda vai às lágrimas quando relê algum de
seus poemas. Sobre o mesmo tema, aliás, a cantora e
compositora Adriana Calcanhotto é precisa no comentário:
"João podia não chorar, mas sua poesia sempre nos emociona."
Assim, continua poderoso o
rastro deixado por João Cabral, que pretendia "levar poesia
à porta do homem moderno".
(©
Agência Estado)
Análise/poesia
Obra de João Cabral de Melo Neto começa a ser relançada
"O Cão sem Plumas" e "O Artista Inconfessável" revelam traços marcantes do
poeta
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
João Cabral de Melo Neto (1920-1999) tornou-se muito cedo o poeta homônimo.
Já entre seus primeiros livros se entreviam claros os recursos poéticos e as
preocupações temáticas que o seguiriam, sem alterações, vida afora.
Definidos e consolidados quando o poeta estava na casa dos 20, eles o
caracterizariam até morrer, quase octogenário.
É possível mesmo dizer deste poeta, tão amado pelas vanguardas e tantas
vezes rotulado como inovador, que, se há algo que ele praticamente nunca
fez, foi se renovar, dar uma guinada qualquer, escrever poemas diferentes
daqueles que, sendo sua marca registrada, eram também inconfundíveis.
Os temas que o pernambucano escolheu para si (ou, como ele talvez
observasse, aqueles que o escolheram), a árida paisagem natal e outras
tantas similares (o sul da Espanha, o Sahel africano), a secura e a penúria
do ambiente que lhe reduz os habitantes a um estado praticamente mineral, a
fauna dessa natureza empobrecida e a morte onipresente, seja pela simples
obsessão com que o autor retornava a eles sem cessar, seja pela metódica
insistência com que combinava e recombinava sua própria escassez,
transcenderam, no que nos legou, o temático e se converteram na metáfora
patente de seu estilo. Em Cabral, mais do que em qualquer outro
contemporâneo, o estilo era, sem tirar nem pôr, o homem.
Começando a republicar sua obra livro por livro, a Alfaguara permitirá
que novos leitores emulem a experiência dos que, uma ou duas gerações antes,
lhe acompanharam, com prazer, a carreira. O volume inicial da série, "O Cão
sem Plumas e Outros Poemas", contém, entre outras coisas, seus primeiros
poemas e seu livro de estréia, "Pedra do Sono" (1940-41) com textos cujo
mérito é o de, retrospectivamente, revelar alguns de seus traços permanentes
aos admiradores de sua poesia posterior. Os poemas seguintes, publicados
originalmente na coletânea "O Engenheiro", já se mostram mais seguros e
pessoais.
O cerne deste livro, porém, é duplo. De um lado estão os poemas
programáticos nos quais Cabral diz em alto e bom som a que veio: "Psicologia
da Composição" e "Antiode", texto fundamental que, já na abertura ("Poesia,
te escrevia:/ flor! Conhecendo/ que és fezes./ Fezes/ como qualquer,"),
declara guerra ao lirismo decorativo ou, na expressão de Manuel Bandeira,
"comedido", bem como à linguagem e ao vocabulário restrito (menos por
economia que por pudor) de seus contemporâneos da geração de 45. Do outro
lado se encontra o poema título, sobre o Capibaribe, o poema mais seco que
já se escreveu sobre um rio, um autêntico e não transbordante poema-rio que,
mantendo do começo ao fim a tensão, é uma das peças fundamentais,
antológicas da poesia brasileira.
"O Cão sem Plumas" saiu quando o autor tinha 30 anos de idade. Se, no
meio século seguinte, ele alcançaria às vezes uma qualidade mais elevada
aqui e ali, foi este o poema que primeiro encapsulou e expôs o seu melhor.
Não é o caso, com essa afirmação, de dizer que o restante de sua poesia seja
irrelevante, mera tautologia multiplicativa. Pelo contrário: a graça de ler
tudo que vem depois consiste, de fato, em constatar como é que, com tão
poucos elementos tão pouco variados, ele conseguiu, afinal, deixar-nos uma
obra, à sua maneira lacônica, tão rica como variada.
Prova disso é outro volume que a editora está lançando, "O Artista
Inconfessável", uma antologia onde se justapõem poemas extraídos de seus
diversos livros e um esboço de documentação fotobiográfica. Tendo em vista
que as poucas antologias de Cabral disponíveis no mercado se concentram em
sua fase mais dramático-politizada (a de "Morte e Vida Severina"), esta
seleção que, despida de intuitos didáticos, evita seu trabalho mais popular
e conhecido, tampouco deixa de surpreender e de ser bem-vinda.
RAIO-X
Nasceu em 6/01/1920, no Recife, e morreu em 9/10/1999, no Rio
Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 15/8/1968
Inscreveu-se no concurso para a carreira de diplomata em 1945 e
foi promovido a embaixador em 1976. Serviu em cidades como Barcelona,
Londres e Madri
LANÇAMENTOS*
"O Cão sem Plumas"
Quanto: R$ 29,90 (208 págs.)
"O Artista Inconfessável"
Quanto: R$ 29,90 (240 págs.)
PRÓXIMOS TÍTULOS* "Morte e Vida Severina" (em novembro), "Museu de Tudo"
(sem data definida)
* todos pela Objetiva/Alfaguara
(©
Folha de S. Paulo) |
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Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
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