Artigo/réplicaPAULO
WERNECK
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para um editor, é uma alegria editar um livro que mobiliza críticos de boa
cepa e provoca novas discussões em torno de obras que parecem já ter sido
assimiladas.
Por isso, dá gosto ler um texto vigoroso como o que o professor Alcides
Villaça publicou na Ilustrada em 21/7, sobre a antologia "Poemas Religiosos
e Alguns Libertinos", de Manuel Bandeira, recém-lançada pela Cosac Naify. Na
qualidade de editor do livro, eu gostaria de comentar a leitura de Villaça,
que lançou "Passos de Drummond" pela mesma editora.
O título do artigo -"Bandeira sacro não rima com libertino"- já separa
dois traços que organizador e editores procuraram mostrar como
indissociáveis. O Bandeira religioso rima, sim, com o libertino. Foi essa
constatação que nos levou a acrescentar à antologia, originalmente publicada
em 1984, seção com poemas libertinos.
A sugestão foi dada por Gilberto Freyre, num texto feito para a primeira
edição: "Quem mais místico, dentre os intelectuais brasileiros da época de
Manuel Bandeira, do que Jaime Ovalle? Ao mesmo tempo, quem mais sensual?
Talvez uma afinidade de Bandeira com esse seu estranho, singular,
extraordinário amigo".
Freyre relata uma "conversa lúbrica" que Ovalle teve com uma
"brasileirinha de origem alemã", "fazendo a inocente masturbar-se".
"Libidinoso que era", prossegue, "vi beijar crucifixo com a maior unção".
Seria de estranhar uma lembrança assim numa coletânea de poemas
religiosos -não fosse Bandeira o autor, e "o místico" Ovalle uma grande
referência para os dois pernambucanos. Os poemas libertinos, portanto, já
estavam nas entrelinhas daquela primeira edição. Em contradição com o
argumento da resenha, Villaça reafirma essa mistura que Freyre identificou,
ao dizer que "a tentativa de separar o que a poesia junta dá em equívocos".
Ora, o que este livro faz é juntar e não separar. Não só pela conjunção
aditiva "e" no título, está sublinhada na edição a presença forte dos
"acordes dissonantes", que Villaça analisa com beleza, e que muitas vezes
ressoam no mesmo poema. A graça é essa: perguntar-se, como faz Villaça, onde
encaixar o "Cântico dos Cânticos", releitura bandeiriana do grande arquétipo
de poema religioso e sensual.
A Cosac Naify publicou os 50 poemas escolhidos pelo autor, com um CD que
traz a voz "dura, malacostrácea, antipática" de Bandeira e nos convida a
repensar o modo de ouvir sua poesia; relançou "Crônicas da Província do
Brasil" (segunda edição em 70 anos); está reunindo textos inéditos em livro
e prepara uma série de edições em torno do poeta. Seria espantoso que essa
mesma editora cometesse um equívoco tão simplório, reduzindo uma obra
complexa aos limites de uma antologia. Trata-se de um recorte, e não da
interpretação cabal de uma obra cujo significado ainda não está esgotado.
Do ponto de vista comercial, teria sido melhor separar de fato e lançar
duas antologias distintas: uma de poemas religiosos e outra de poemas
libertinos. Seria mais fácil explicar em que prateleira guardar o livro de
Bandeira. Tomamos o partido oposto, reafirmando o que a poesia já juntava: a
mistura é sempre mais rica, é mais complexa, não simplifica.
A beatificação de um poeta é ruim para críticos, editores e leitores; não
podemos deixar de, respeitosamente, flertar com os santos de nossa devoção
com uma piscadela levemente libertina.
PAULO WERNECK é editor de literatura na Cosac Naify.
(©
Folha de S. Paulo)
Crítica/poesia
Bandeira sacro não rima com libertino
Antologia que opõe caráter religioso e libidinoso na obra poética de Manuel
Bandeira adota critério muito discutível
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Esta coletânea retoma uma antologia de poemas religiosos de Manuel
Bandeira, somando-lhes agora "alguns libertinos". A seleção e o posfácio são
de Edson Nery da Fonseca; Gilberto Freyre participa com o sucinto prefácio
da primeira edição. Está no título a fácil oposição que serviu de critério.
Fácil, mas muito discutível: a poesia mais viva não consagra a nitidez
artificial dos maniqueísmos, sobretudo quando o poeta decanta suas
experiências pessoais mais absorventes.
O contraste entre o sagrado e o libidinoso, que sugere uma dupla matriz
poética de Bandeira, está longe de contemplar a densidade artística de quem
espiritualiza exatamente a finitude da matéria e dá peso à base física de
tantas sublimações. Nosso poeta amadureceu como um grande estóico, e sua
humildade se mescla à altivez da solidão luxuosa, não raro magisterial, de
quem se reconhece plenamente como sujeito de experiências tão fundas quanto
pessoais -um feito, nada "menor", no tempo das impessoalidades.
Seguramente, a religiosidade tem muito peso para Bandeira, por força da
formação católica, do interesse pelo cotidiano comum, da abertura para a
cultura popular (embora, sintomaticamente, a antologia não tenha aberto
espaço para poemas em que comparecem o Cussaruim, Pai Zusé, Tia Ciata,
Janaína...). Deus, santas, anjos, milagres e orações são, sim, matéria
poética bandeiriana, por vezes elaborada com devoção. Mas o mesmo poeta que
num poema dá presença ao "meu anjo da guarda", em outro afirma: "Os anjos
não compreendem os homens"; quem anuncia "me abismarei na contemplação de
Deus e de sua glória" também conclui "a vida é uma agitação feroz e sem
finalidade".
Sentimento da imediatez
Trata-se de polaridades dramaticamente fixadas ou do livre movimento da
lírica por tudo o que pode imantá-la? Na raiz da poesia de Bandeira está o
sentimento da imediatez e finitude das coisas, dos fatos e dos seres,
limites que não constringem a experiência da espiritualização, pelo
contrário, intensificam-na. "Tudo é um milagre", aceita o mesmo poeta que
conclui: "Tudo, menos a morte./ - Bendita a morte, que é o fim de todos os
milagres".
Enquanto dura, o sensível é milagroso; enquanto consola, o crucifixo da
família deve ser abraçado. Os sinos das igrejas cantam aos ouvidos do poeta
não exatamente a Anunciação ou os Finados, mas a dolorosa e íntima
perplexidade diante de seu destino de tísico e das mortes sucessivas da mãe,
do pai, da irmã, do irmão.
Também a "libertinagem" é fundamento da poética bandeiriana: está
assumida como título de um de seus principais livros e espalha-se, na obra,
por inúmeros poemas que exaltam os prazeres do corpo. A princípio, este
traço seria o contraponto da religiosidade (sempre na adoção de dicotomias
mecânicas) ou uma antítese da espiritualização. Mas o poeta não é simplório:
as mulheres do sabonete Araxá, que o excitam na prosaica propaganda,
parecem-lhe as três Marias; a nudez feminina é um êxtase celestial, a
"substância da carne" incita a "espiritualizar-se/ na aspiração de mais
ternura".
A tentativa de separar o que a poesia junta dá em equívocos como o de não
reconhecer que um poeta, mesmo materialista, conta com o plano da
transcendência, inclusa na ativação dos símbolos e na expectativa de
significação. Forçar o contraste entre o puramente religioso e o
inelutavelmente erótico pode trazer resultados divertidos: o poema "Cântico
dos Cânticos" figura entre os "libertinos..."
No conjunto, os cantos de Bandeira promovem belos acordes dissonantes,
que só uma audição muito conservadora buscará captar como harmonizações em
separado.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira
na USP
POEMAS RELIGIOSOS E ALGUNS LIBERTINOS
Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 42 (112 págs.)
Avaliação: regular
(©
Folha de S. Paulo, 21.07.2007)