Foto: Fábio Lima
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O teatro cearense tem lá suas
tradições. Uma delas fez do ator Ricardo Guilherme o historiador oficial
da cena local. Entre uma peça e outra, Guilherme anda por aí a fazer
entrevistas com artistas veteranos e colecionar quinquilharias. De tanto
guardar programas de espetáculos antigos, arquivos pessoais de grandes
nomes que já se foram, ele fez de sua casa uma espécie de museu. Com
isso, quem quer saber das antigas bate a sua porta. Assim, o fez o
Caderno 3. Entre as preciosidades, estava o registro de um longo e
descomprometido bate-papo com o diretor Haroldo Serra, fundador da
Comédia Cearense. Sem relutar, Ricardo a disponibilizou. A seguir, estão
os principais trechos da conversa. Conversa rica, cheia de causos
bonitos da teimosia cearense de querer estar em cena
Haroldo, conte-me seu primeiro alumbramento com o teatro.
Foi no interior com o meu tio Franco, Franklim Cavalcante, meu tio
inesquecível. Ele fazia aqueles espetáculos típicos do interior, estilo
Carlos Câmara, burletas. As moças cantavam e os rapazes representavam. A
coisa era interessante. Ele tinha um baú onde guardava os figurinos. Nos
espetáculos dele, não se fazia como sempre se fazia nas cidades do
interior, em que o figurino era a própria roupa dos atores. Não, nas
peças que ele fazia, usava-se uma roupa especialmente feita para a cena.
Ele era pintor e o cenário dele era pintado. A própria boca de cena do
Teatro Operário lá de Tamboril era um transatlântico que ele havia
pintado.
Ainda criança, você veio, definitivamente, morar em Fortaleza e
aqui, como foi que se reencontrou com o teatro?
Eu fiz parte do pulo da morte. Você sabe o que era? Não? É o seguinte:
vizinho ao Theatro José de Alencar tinha o Centro de Saúde. Um muro alto
separava os prédios mais ou menos ali na altura daquela parte descoberta
do foyer que dá para a varanda. Então, a gente entrava pelo Centro de
Saúde, que de noite não estava funcionando, subia no muro e pulava para
dentro do teatro. Aí a gente entrava e terminava assistindo teatro de
graça.
Você assistia teatro já querendo fazer teatro?
Não, eu não tinha essa idéia. Era só espectador.
Um espectador que, depois, foi tragado pelo rádio.
Exato. O rádio, para mim, era mais palpável. Surgiu uma oportunidade na
Rádio Iracema, que foi inaugurada em 1949 ou 50, e eu fiz teste para
locutor e fui aprovado. Eu não tinha relacionamento com o pessoal de
teatro, porque Fortaleza até 1950, pelo meu conhecimento, não tinha um
grupo atuante. Tinha o pessoal do Geraldo Markan, que fez “Simbita e o
Dragão”, mas eu não sei bem a data. Nesse período, todo mundo se reunia
na Praça do Ferreira. Tinha o banco dos aposentados e o banco onde
ficava a mocidade. Nessa época, funcionavam duas emissoras, a Rádio
Iracema e a PRE-9, e na Praça do Ferreira a gente ficava conversando:
eu, o Augusto Borges, o Guilherme Neto, o João Ramos e outros. Mas a
gente era viciado mesmo era em cinema. O B. de Paiva assistia da
primeira fila e eu ficava um pouco mais longe. A cidade era tão pequena.
Eu morava onde hoje é o Banco Safra, a dois quarteirões da Praça. Eu ia
para o Cine Moderno, para o Majestic ou para o Cine Rex, na General
Sampaio, ou para o Cine Luz, na Praça da Estação, e a todos os filmes eu
assistia. E quando não tinha mais o que assistir, a gente ia ver as
reprises.
Como é que você passa de cinéfilo a ator de teatro?
Uma noite, a gente estava exatamente na Praça do Ferreira, batendo papo,
falando de cinema, e de repente, não sei se foi o B. de Paiva ou o
Marcus Miranda, que no meio da conversa, perguntou: Haroldo, você não
tem vontade de fazer teatro? Eu, como me entusiasmo com muita
facilidade, me entusiasmei. Eles estavam querendo montar uma peça e já
tinham decidido que seria “O Morro dos Ventos Uivantes”, numa adaptação
do B. de Paiva.
Isso em 1952.
É. A minha preocupação, ainda não consciente, era por uma coisa
organizada que tivesse possibilidade de crescer. O espetáculo ia ser
encenado mas não tinha ainda todos os componentes do elenco. Eles iam
apresentar a peça em Antônio Bezerra, que tinha um Círculo Operário, mas
eu disse: Não, não, vamos fazer a peça no Zé de Alencar. Eles diziam:
Você é doido, Haroldo; ninguém tem acesso ao Theatro José de Alencar. E
aquela idéia ficou me animando. O B. disse: então vamos tentar. Eu, por
causa da rádio, já tinha contato com comerciantes e fui atrás de apoio,
porque a gente resolveu fazer a peça com figurinos. Eu sempre achei que,
quando a gente quer uma coisa, desde que a gente saiba o que quer e não
queira demais, a gente consegue.
Aí nasce o Teatro Experimental de Arte.
Todo mundo pensava que ia haver uma reação, que ninguém não ia conseguir
o Zé de Alencar porque o grupo não era conhecido. Mas não houve nada
disso e a gente conseguiu se apresentar. Eu tinha uma rádio na mão e
consegui uma boa divulgação. “O Morro dos Ventos Uivantes” fez sucesso e
a gente nem estava esperando essa repercussão toda. Ninguém esperava
aquele tipo de reação. A gente tinha consciência que estava fazendo o
máximo dentro das nossas possibilidades, mas a peça foi saudada com
muito entusiasmo pela imprensa porque a montagem tinha uma coisa nova.
Por exemplo: logo nos primeiros espetáculos, a gente aboliu o ponto no
Ceará. O Teatro Experimental foi o primeiro grupo a abolir o ponto. A
gente viu que, ao tirar o ponto, o ator passava a ser mais responsável
porque ele tinha obrigação de estudar o texto.
Em relação ao nome Teatro Experimental de Arte, essa palavra,
experimental, continha alguma insinuação estética?
Não, eu acho que era experimental não no sentido de vanguarda. Ninguém
tinha essa visão, essa pretensão. Era experimental por querer
aprofundar, aperfeiçoar e dar informações às pessoas. Era um grupo muito
organizado. O Teatro Experimental de Arte surgiu por causa do Paschoal
Carlos Magno. Nos anos 1950, o Paschoal fez uma temporada por todo o
País, com grandes atores, Sérgio Cardoso e muita gente boa, espetáculos
bem montados. O teatro que o Paschoal fazia era um teatro
respeitadíssimo. Tanto que os seus participantes foram considerados
depois os melhores atores do teatro brasileiro. Essa experiência do
Paschoal foi, aliás, a única semente que eu vi prosperar no teatro. Em
todas as cidades por onde o Paschoal passava, ele ia semeando teatro.
Que peças foram as mais importantes do Teatro Experimental?
Nós fizemos, por exemplo, o “Paiol Velho”, do Abílio Pereira de Almeida,
que foi a minha primeira direção. O Teatro Experimental foi uma
experiência muito rica. Eram quatro diretores: eu, o B., o Miranda e o
Hugo Bianchi. Então, o Teatro Experimental podia ter aquela obrigação de
estrear uma peça quase todo mês. Na medida em que o Hugo ensaiava uma
peça, o Miranda ensaiava outra, o B. outra, e eu outra. Quando uma
estreava, a próxima já estava quase pronta. A gente ficava em cartaz
quatro fins de semana. Ninguém conseguia ficar em cartaz mais do que
isso.
Como você passa de ator a diretor? Como você despertou pra
direção?
No próprio ensaio da primeira peça. Acho que eu fui dirigir por causa do
cinema. “O Morro dos Ventos Uivantes” a gente já tinha visto várias
vezes no cinema.
Mas a direção de “O Morro dos Ventos Uivantes” não era sua.
Era do Hugo Bianchi. Mas a influência do cinema foi fundamental. Eu não
teria condições de dirigir se eu não assistisse e não discutisse cinema.
Naquela época, a Praça do Ferreira era uma Padaria Espiritual, só que as
discussões eram não de literatura, mas de filmes. Nesse tempo, tinha o
Augusto Pontes que ficou famoso na Praça sabe por quê? Porque ele tinha
um artifício. Quando ele sentia que você estava querendo ir embora, ele
discordava de uma coisa que você estava dizendo e aí lançava a polêmica.
Fortaleza era maravilhosa. A gente saía às vezes da Praça do Ferreira às
quatro horas da manhã. Teve uma época que eu morava na rua Pedro Borges,
o Beco dos Pocinhos, e o Beco dos Pocinhos era escuro como o diabo, e
você não tinha a menor preocupação de ir para casa sozinho, não era
perigoso.
E quando o grupo acabou, Haroldo?
Quando eu montei a Comédia Cearense. O Teatro Experimental é de 52 a 56,
mais ou menos, e a Comédia Cearense é de 57.
Por que Comédia Cearense?
Esse nome, Comédia Cearense, vem do seguinte. Naquela época, todo
cearense que ia para o Rio de Janeiro se acariocava. Eu tinha verdadeiro
horror a esse tipo de coisa. Eu ainda hoje tenho horror às pessoas que
não prestigiam a sua cidade, o seu Estado, o seu País. Quando o sujeito
se muda e perde os seus hábitos, ele também se perde. O respeito pelo
Nordeste, antes da década de 1960, era muito pouco, e para o grupo eu
queria um nome que fizesse um sujeito de qualquer lugar do Brasil saber
que aquele grupo era do Ceará. Muita gente acha que eu botei Comédia
Cearense por causa da Comédie Française, mas não foi. Foi para ter o
nome do Ceará.
Muitos da sua geração foram embora e você não foi.
Eu nunca tive essa preocupação de ser um nome nacional. Eu sempre achei
mais fácil fazer teatro aqui em Fortaleza do que chegar e tentar fazer
no Rio de Janeiro. Nesse ponto eu sou até meio comodista. Ir embora para
tentar fazer teatro lá fora é uma luta muita insana. Com o Teatro
Experimental e com a Comédia, eu sabia que podia realizar meu trabalho
aqui. Nós recebemos, posteriormente, convite pra sair. O Orlando Miranda
me dizia: Você tem que vir para o Rio. E eu dizia: E quem é que vai
ficar fazendo teatro em Fortaleza? Eu não fui embora não foi para ser o
herói; foi uma opção talvez até preguiçosa.
Fale dos primórdios da Comédia Cearense.
Eu li uma peça chamada “Lady Godiva”, do Guilherme de Figueiredo, e me
entusiasmei pelo texto, pela agilidade da ação, pela objetividade das
falas. Naquele tempo, ainda havia muito texto prolixo, rebarbativo. O
autor achava que tinha de exaurir aquele assunto para o espectador
captar. O Guilherme vinha com uma dramaturgia mais moderna, de diálogos
rápidos. E nós estreamos com esse texto. A gente conseguiu ficar com o
espetáculo em cartaz durante muito tempo. “Lady Godiva” teve quarenta
apresentações. Em seguida, montamos “A Canção Dentro do Pão”, do R.
Magalhães Júnior.
Nos anos 1960, Fortaleza já começa a ter um canal de televisão.
Também em 1960, o B. de Paiva volta ao Ceará e, então, estréia como
diretor da Comédia Cearense.
Quando a gente fala desse tempo, tem gente que pergunta: Por que
Fortaleza tinha mais público nesse período e agora não tem mais? A gente
regrediu? E de quem é a culpa? Da televisão? Do cinema? Eu nunca me
frustrei com esse tipo de comparação, porque eu sempre fui muito
consciente das dificuldades do teatro. O primeiro caminho para você
fazer teatro é se conscientizar das dificuldades. O teatro é de todas as
atividades de arte a mais penalizada. Minha maior frustração de
oportunidade de prestígio foi quando “O Morro do Ouro” foi convidado em
carta do Jacques Lang para participar do Festival de Nancy. Era o
primeiro grupo do Ceará a ter esse convite.
Quando o B. de Paiva retorna do Rio e assume a direção da
Comédia Cearense, você abdica da posição de diretor. É o B quem assume a
direção dos espetáculos. E você passa a ser mais o ator e o produtor.
Como é que se dá isso?
Uma equipe só funciona se cada membro tem responsabilidade pelas suas
funções e as cumpre adequadamente. É difícil conseguir isso, mas com o
B. nós criamos uma dupla que estava fadada a conseguir. Ficou acertado
que eu me dedicaria às produções e o B. faria a direção. Eu gosto de
dirigir até mais do que atuar , mas tive de abdicar em função do
projeto, da idéia. Eu achei que era muito mais viável o B. ficar
encarregado da direção. Eu sempre ajudei muitas vezes, na concepção dos
espetáculos, porque já nessa época eu tinha bastante experiência de
cena, e tudo isso facilitava. No elenco, a gente tinha muita gente de
experiência. O Zé Humberto, por exemplo, que vinha do Teatro
Experimental de Arte.
É dessa época o convênio que a Comédia fez com o governo para
assumir o Theatro José de Alencar. Quais eram as bases desse convênio?
O Theatro José de Alencar naquela época não tinha diretor e a gente,
entusiasmado com a volta do B., teve a idéia de fazer teatro de forma
contínua. Eu sempre digo que quando o teatro é eventual, o público
também será eventual. No dia que o Ceará tiver uma continuidade real,
nós vamos ter público continuamente. O Seu Afonso Jucá era o
administrador e nós tivemos a idéia de um convênio, onde a gente seria
responsável pela administração do teatro, mas não pela manutenção
econômica.
O período do convênio da Comédia com o Theatro José de Alencar,
na década de 1960, é talvez a mais importante fase do grupo.
Nós realizamos muitas coisas, temporadas longas, com “O Morro do Ouro”,
com a “Rosa do Lagamar”, com “O Pagador de Promessas”, “A Valsa
Proibida”. Fizemos o nosso primeiro Nelson Rodrigues, com “O Beijo no
Asfalto”. Sempre com o público prestigiando, lotando o teatro. E muita
gente me pergunta: Por que isso não se repete hoje? Porque não há mais
as mesmas condições. Naquele tempo, nós tínhamos o Theatro José de
Alencar e você podia programar um espetáculo em função do tempo que você
precisasse para aprontar esse espetáculo.
Como a Comédia Cearense viveu o período pós-golpe militar,
pós-64?
Os censores eram de uma ignorância enorme. Aquela história que diz que
um deles me perguntou se eu conhecia o Sófocles não é piada. O cara me
perguntou mesmo se eu conhecia o Sófocles. Não sei se tinha alguém
montando ou interessado em montar alguma coisa do Sófocles e um cara da
Polícia Federal me perguntou se eu não conhecia esse tal de Sófocles. Eu
digo: infelizmente eu não conheço, nem sei quem é. Havia isso, essas
coisas. Outra coisa: o Manuelito era tido como uma pessoa de direita, de
apoio à Revolução, e o texto dele já era...
Um habeas corpus.
Um habeas corpus.
A Comédia Cearense tem três fases: primeira, só com você, a
segunda com você e o B. de Paiva e a terceira só você de novo sem B. de
Paiva, que começa em 67,68.
Eu discordo da idéia de algumas pessoas que dizem que a Comédia decaiu
com a saída do B. de Paiva. Eu nunca me aborreci com esse tipo de
comentário porque tenho consciência do meu trabalho. Mas eu discordo. A
Comédia Cearense só teve prêmios nacionais a partir da terceira fase. O
B. teve alguma ingerência nisso? Teve, porque toda a formação nossa foi
conjunta, mas, quando ele foi embora de novo, a Comédia Cearense não
descambou, não caiu qualitativamente, não mudou a sua proposta. Terminou
sendo diferente, por causa das circunstâncias. Os tempos mudaram.
Logo depois que o B. vai para o Rio, você monta dois espetáculos
que tiveram premiações em festivais importantes: “O Simpático Jeremias”
e “O Morro do Ouro” em musical.
Quando a gente chegou no Festival de São José do Rio Preto, pela segunda
vez, a imprensa começou a dizer que nós éramos os campeões e que ninguém
tinha ganho tantos prêmios no festival quanto o nosso grupo. Dos doze
prêmios ofertados em doze categorias nós ganhamos nove com o Jeremias. E
no ano seguinte, ganhamos o prêmio do voto popular e do júri oficial. Os
outros grupos concorrentes é que votavam e nós tivemos o índice de
noventa e sete por cento de bom e ótimo. Isso impressionou não só a
eles, do festival, como a nós também.
Nos anos 70, mesmo continuando no Theatro José de Alencar, a
Comédia Cearense chegou a manter o Teatro Móvel. No fiml dos anos 80, o
grupo sai do José de Alencar e funda o Teatro Arena, ligado ao Colégio
Christus. Foram muitas as tentativas suas de ter uma sede própria.
Algumas pessoas do Ceará, e eu tenho a impressão de que você também,
foram influenciadas por essa minha psicose de ter um espaço. Eu sempre
disse: a gente só deixará de ter um teatro eventual no Ceará quando
tiver um espaço. Você não pode fazer um projeto de teatro permanente num
teatro do governo. Como é que eu ou você vai fazer um projeto de teatro
permanente no Theatro José de Alencar? É inteiramente inviável. É
incabível ter todos os sábados e todos os domingos porque você estaria
preterindo os outros grupos.
Para terminar, Haroldo, eu queria que você respondesse o
seguinte: o que é em essência a Comédia Cearense? Qual a filosofia de
trabalho do grupo?
A Comédia Cearense existe porque eu gosto de fazer teatro. Se eu não
gostasse de fazer teatro, a Comédia Cearense não existiria. A gente sabe
que o teatro é importante para cultura local, mas essa não é a razão que
faz a Comédia Cearense resistir por tanto tempo. É porque eu gosto de
fazer teatro. Muita gente se programa: eu não vou mais fazer isso não.
Eu nunca disse essa frase em todos esses anos de teatro. E continuo não
dizendo. Porque eu gosto de fazer teatro. Agora, a partir do momento que
você gosta de uma determinada coisa, você vai procurar fazer essa coisa
da maneira mais abrangente e mais objetiva possível, para beneficiar e
ajudar o desenvolvimento da cultura da sua terra. Mas isso, na
realidade, é conseqüência do fato de eu gostar de teatro. Eu não consigo
me ver sem fazer teatro. Por que você acha que a Comédia Cearense
sobrevive ? Por que um grupo consegue ter tantos anos de atividade?
Geralmente, no Ceará, os grupos se desfazem. E se desfazem muito mais
quando fazem sucesso do que quando não fazem. Pode fazer uma
retrospectiva. Toda vida que um grupo novo surge e faz sucesso, logo
depois acaba.
E por quê?
A minha versão é que há uma disputa muito grande pelo “quem fez”. Fulano
fez mais, fulano fez menos. E isso gera um desentendimento. As pessoas
do Ceará têm esse defeito. E talvez nos outros estados também seja
assim. Às vezes, surgem coisas muito promissoras e que de repente a
gente observa: acabou. Mas nós estamos trabalhando há 50 anos. Nesse
depoimento, o tempo não permitiu que nós dissertássemos nem sobre dez
por cento do trabalho do Teatro Experimental de Arte e da Comédia
Cearense. Foi muita coisa que a gente realizou. E foram muitas pressões
que a gente enfrentou. Mas, de todas as pressões que você sabe que eu
sofri e as que você não sabe eu tirei todas elas de letra. E continuarei
tirando.
Obrigado, Haroldo. É preciso que a gente faça justiça à sua
fidelidade ao teatro.
RICARDO GUILHERME
Teatrólogo
O ENTREVISTADOR
Para entender os tempos da cena
Ricardo Guilherme
Teatrólogo
Tendo iniciado sua carreira nos anos 70 como ator, Ricardo
Guilherme não tarda a se firmar como pesquisador de teatro. Professor do
Curso de Arte Dramática, da Universidade Federal do Ceará, é autor de
inúmeros artigos sobre a história do teatro cearense. Na Comédia
Cearense, integrou o elenco de várias peças.
(©
Diário do Nordeste)
Comédia Cearense
50 anos depois
Companhia de maior longevidade na cena local, a
Comédia Cearense chega aos 50 anos de atividade
MAGELA LIMA
Repórter
Alencar nem ao menos havia publicado sua “Iracema”, e Paris já aplaudia sua
Comédie Française. Por aqui, Fortaleza praticamente assistiu ao centenário
do romance quando viu despontar sua Comédia Cearense. Distância imensa,
porém, separa a memorável companhia européia, herança do eterno mestre
Molière, da empreitada local capitaneada por um grupo de amadores fascinados
pelo desejo de estar em cena.
A coincidência de alcunhas, no entanto, denuncia uma nada discreta
metonímia. Parte e todo se confundem em ambos os casos. Assim como falar da
famosa Comédie é, também, falar do teatro francês; falar da Comédia é falar
da cena cearense. Ao longo dos últimos 50 anos, o teatro que se fez no Ceará
esteve vinculado à criação e atuação da Comédia Cearense. A atividade
permanente fez com que a companhia ora se configurasse como escola — mais de
700 pessoas estiveram envolvidas com as montagens do grupo em sua jornada —
ora como gestora das políticas públicas voltadas para o setor teatral no
Estado.
Tendo estreado em sete de setembro de 1957, a Comédia Cearense logo assumiu
o posto de trupe oficial do Ceará. Seu idealizador, o ator e diretor Haroldo
Serra, por extensão, também não tardara a se fazer uma das principais
lideranças do panorama local. Assim, a cena do grupo e a voz de seu
comandante-mor assumiram força simbólica definitiva nesses últimos 50 anos.
Haroldo Serra, por exemplo, foi o primeiro artista de vínculo exclusivo com
a prática teatral a ocupar o posto de diretor do Theatro José de Alencar. No
mesmo período, fora também o primeiro a presidir a Federação Estadual de
Teatro Amador (Festa). A atividade da Comédia Cearense, a julgar pela
postura de seu líder, foi pautada pelo desejo de diversidade. Daí, a Comédia
Cearense ter muitas caras.
Primeira temporada
Quem assistiu à estréia de “Lady Godiva”, montagem inaugural da Comédia
Cearense, podia imaginar que o nome da trupe tivesse algo a ver com o gênero
cômico. Não, pelo menos não dessa vez, o Ceará moleque não se queria tão
moleque assim. O destaque que a trupe estreante conseguira com o texto do
carioca Guilherme Figueiredo, em breve se faria pretexto para a busca de um
referente local. Em março de 1958, a Comédia Cearense se encontrava pela
primeira vez com um autor também cearense.
“Canção dentro do pão”, de Raimundo Magalhães Júnior, foi o primeiro
encontro do grupo com uma escrita cênica local. A peça, nos primeiros tempos
da companhia, ganhara uma segunda versão. Em 1960, a Comédia Cearense pontua
a mais promissora de suas fases. Parceiro antigo de Haroldo Serra, o ator e
diretor B. de Paiva, então, voltava de uma temporada no Rio de Janeiro.
Na Capital Federal, B. aprendera os segredos de um novo teatro. A isso,
deve-se a carta branca da Universidade Federal do Ceará (UFC) para a criação
do Curso de Arte Dramática (CAD). Na década de 1960, B. de Paiva regressava
ao Ceará antenado com as informações de ponta do cenário teatral daquele
momento. Sua volta, assim, não poderia ter desfecho diferente. Logo que
chega, B. de Paiva se associa à Comédia Cearense, assumindo a direção geral
de seus espetáculos.
A era B.
Tão importante quanto a Comédia Cearense está para o teatro cearense, B. de
Paiva está para a consolidação do grupo. Com B., a Comédia Cearense ganha
contornos mais profissionais. Mantendo a linha do ecletismo, vai de
Shakespeare a Molière, passando pela radicalidade das primeiras cenas do
baiano Dias Gomes. “O Pagador de Promessas”, de 1962, é apontada como um
marco na maturidade da produção local.
Era o que faltava para que os artistas cearenses passassem a ter em casa
destaque semelhante aos que vinham de fora. Na Comédia Cearense, B. de Paiva
avivou em Fortaleza os tempos áureos do teatro da Capital. Ao passo que
encenou dramaturgias renovadoras, como “O beijo no asfalto”, de Nelson
Rodrigues, e “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, a
Comédia Cearense, sob a batuta do diretor, avivou as lembranças de um teatro
cearense e bem mais popular que o cinema.
No Ceará tem teatro
A
dramaturgia de Carlos Câmara, primeiro grande autor do teatro cearense,
fundador do Grêmio Dramático Família, grupo atuante entre 1918 e 1939, foi
recuperada com sucesso absoluto nos anos 1960. “O Casamento da Peraldiana”,
produção de 1966, vinha reforçar a opção da Comédia Cearense em valorizar um
repertório absolutamente local. Foi assim que o grupo se apossou da escrita
do dramaturgo Eduardo Campos, autor dos textos mais emblemáticos que levara
aos palcos: “O Morro do Ouro” (1963) e “Rosa do Lagamar” (1964)
- (foto à esquerda).
Mais que um grupo de teatro, a Comédia Cearense, nesse caminhar de 50 longos
anos, é o registro de persistência. A Comédia Cearense nasceu do desejo de
continuar e tem feito disso sua rubrica maior. Cada passo dado pela
companhia, reverberava na cena cearense de forma definitiva. Ao contrário do
verso famoso do pernambucano Manuel Bandeira — que fala daquilo que poderia
ter sido, e não foi — a Comédia Cearense foi, exatamente, aquilo a que se
propôs.
(©
Diário do Nordeste)
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