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 Uma afinada conversa de camarim

 

 

 

Foto: Fábio Lima

Haroldo Serra: “A Comédia Cearense existe porque eu gosto de fazer teatro. Se eu não gostasse de fazer teatro, a Comédia Cearense não existiria”

O teatro cearense tem lá suas tradições. Uma delas fez do ator Ricardo Guilherme o historiador oficial da cena local. Entre uma peça e outra, Guilherme anda por aí a fazer entrevistas com artistas veteranos e colecionar quinquilharias. De tanto guardar programas de espetáculos antigos, arquivos pessoais de grandes nomes que já se foram, ele fez de sua casa uma espécie de museu. Com isso, quem quer saber das antigas bate a sua porta. Assim, o fez o Caderno 3. Entre as preciosidades, estava o registro de um longo e descomprometido bate-papo com o diretor Haroldo Serra, fundador da Comédia Cearense. Sem relutar, Ricardo a disponibilizou. A seguir, estão os principais trechos da conversa. Conversa rica, cheia de causos bonitos da teimosia cearense de querer estar em cena

Haroldo, conte-me seu primeiro alumbramento com o teatro.

Foi no interior com o meu tio Franco, Franklim Cavalcante, meu tio inesquecível. Ele fazia aqueles espetáculos típicos do interior, estilo Carlos Câmara, burletas. As moças cantavam e os rapazes representavam. A coisa era interessante. Ele tinha um baú onde guardava os figurinos. Nos espetáculos dele, não se fazia como sempre se fazia nas cidades do interior, em que o figurino era a própria roupa dos atores. Não, nas peças que ele fazia, usava-se uma roupa especialmente feita para a cena. Ele era pintor e o cenário dele era pintado. A própria boca de cena do Teatro Operário lá de Tamboril era um transatlântico que ele havia pintado.

Ainda criança, você veio, definitivamente, morar em Fortaleza e aqui, como foi que se reencontrou com o teatro?

Eu fiz parte do pulo da morte. Você sabe o que era? Não? É o seguinte: vizinho ao Theatro José de Alencar tinha o Centro de Saúde. Um muro alto separava os prédios mais ou menos ali na altura daquela parte descoberta do foyer que dá para a varanda. Então, a gente entrava pelo Centro de Saúde, que de noite não estava funcionando, subia no muro e pulava para dentro do teatro. Aí a gente entrava e terminava assistindo teatro de graça.

Você assistia teatro já querendo fazer teatro?

Não, eu não tinha essa idéia. Era só espectador.

Um espectador que, depois, foi tragado pelo rádio.

Exato. O rádio, para mim, era mais palpável. Surgiu uma oportunidade na Rádio Iracema, que foi inaugurada em 1949 ou 50, e eu fiz teste para locutor e fui aprovado. Eu não tinha relacionamento com o pessoal de teatro, porque Fortaleza até 1950, pelo meu conhecimento, não tinha um grupo atuante. Tinha o pessoal do Geraldo Markan, que fez “Simbita e o Dragão”, mas eu não sei bem a data. Nesse período, todo mundo se reunia na Praça do Ferreira. Tinha o banco dos aposentados e o banco onde ficava a mocidade. Nessa época, funcionavam duas emissoras, a Rádio Iracema e a PRE-9, e na Praça do Ferreira a gente ficava conversando: eu, o Augusto Borges, o Guilherme Neto, o João Ramos e outros. Mas a gente era viciado mesmo era em cinema. O B. de Paiva assistia da primeira fila e eu ficava um pouco mais longe. A cidade era tão pequena. Eu morava onde hoje é o Banco Safra, a dois quarteirões da Praça. Eu ia para o Cine Moderno, para o Majestic ou para o Cine Rex, na General Sampaio, ou para o Cine Luz, na Praça da Estação, e a todos os filmes eu assistia. E quando não tinha mais o que assistir, a gente ia ver as reprises.

Como é que você passa de cinéfilo a ator de teatro?

Uma noite, a gente estava exatamente na Praça do Ferreira, batendo papo, falando de cinema, e de repente, não sei se foi o B. de Paiva ou o Marcus Miranda, que no meio da conversa, perguntou: Haroldo, você não tem vontade de fazer teatro? Eu, como me entusiasmo com muita facilidade, me entusiasmei. Eles estavam querendo montar uma peça e já tinham decidido que seria “O Morro dos Ventos Uivantes”, numa adaptação do B. de Paiva.

Isso em 1952.

É. A minha preocupação, ainda não consciente, era por uma coisa organizada que tivesse possibilidade de crescer. O espetáculo ia ser encenado mas não tinha ainda todos os componentes do elenco. Eles iam apresentar a peça em Antônio Bezerra, que tinha um Círculo Operário, mas eu disse: Não, não, vamos fazer a peça no Zé de Alencar. Eles diziam: Você é doido, Haroldo; ninguém tem acesso ao Theatro José de Alencar. E aquela idéia ficou me animando. O B. disse: então vamos tentar. Eu, por causa da rádio, já tinha contato com comerciantes e fui atrás de apoio, porque a gente resolveu fazer a peça com figurinos. Eu sempre achei que, quando a gente quer uma coisa, desde que a gente saiba o que quer e não queira demais, a gente consegue.

Aí nasce o Teatro Experimental de Arte.

Todo mundo pensava que ia haver uma reação, que ninguém não ia conseguir o Zé de Alencar porque o grupo não era conhecido. Mas não houve nada disso e a gente conseguiu se apresentar. Eu tinha uma rádio na mão e consegui uma boa divulgação. “O Morro dos Ventos Uivantes” fez sucesso e a gente nem estava esperando essa repercussão toda. Ninguém esperava aquele tipo de reação. A gente tinha consciência que estava fazendo o máximo dentro das nossas possibilidades, mas a peça foi saudada com muito entusiasmo pela imprensa porque a montagem tinha uma coisa nova. Por exemplo: logo nos primeiros espetáculos, a gente aboliu o ponto no Ceará. O Teatro Experimental foi o primeiro grupo a abolir o ponto. A gente viu que, ao tirar o ponto, o ator passava a ser mais responsável porque ele tinha obrigação de estudar o texto.

Em relação ao nome Teatro Experimental de Arte, essa palavra, experimental, continha alguma insinuação estética?

Não, eu acho que era experimental não no sentido de vanguarda. Ninguém tinha essa visão, essa pretensão. Era experimental por querer aprofundar, aperfeiçoar e dar informações às pessoas. Era um grupo muito organizado. O Teatro Experimental de Arte surgiu por causa do Paschoal Carlos Magno. Nos anos 1950, o Paschoal fez uma temporada por todo o País, com grandes atores, Sérgio Cardoso e muita gente boa, espetáculos bem montados. O teatro que o Paschoal fazia era um teatro respeitadíssimo. Tanto que os seus participantes foram considerados depois os melhores atores do teatro brasileiro. Essa experiência do Paschoal foi, aliás, a única semente que eu vi prosperar no teatro. Em todas as cidades por onde o Paschoal passava, ele ia semeando teatro.

Que peças foram as mais importantes do Teatro Experimental?

Nós fizemos, por exemplo, o “Paiol Velho”, do Abílio Pereira de Almeida, que foi a minha primeira direção. O Teatro Experimental foi uma experiência muito rica. Eram quatro diretores: eu, o B., o Miranda e o Hugo Bianchi. Então, o Teatro Experimental podia ter aquela obrigação de estrear uma peça quase todo mês. Na medida em que o Hugo ensaiava uma peça, o Miranda ensaiava outra, o B. outra, e eu outra. Quando uma estreava, a próxima já estava quase pronta. A gente ficava em cartaz quatro fins de semana. Ninguém conseguia ficar em cartaz mais do que isso.

Como você passa de ator a diretor? Como você despertou pra direção?

No próprio ensaio da primeira peça. Acho que eu fui dirigir por causa do cinema. “O Morro dos Ventos Uivantes” a gente já tinha visto várias vezes no cinema.

Mas a direção de “O Morro dos Ventos Uivantes” não era sua.

Era do Hugo Bianchi. Mas a influência do cinema foi fundamental. Eu não teria condições de dirigir se eu não assistisse e não discutisse cinema. Naquela época, a Praça do Ferreira era uma Padaria Espiritual, só que as discussões eram não de literatura, mas de filmes. Nesse tempo, tinha o Augusto Pontes que ficou famoso na Praça sabe por quê? Porque ele tinha um artifício. Quando ele sentia que você estava querendo ir embora, ele discordava de uma coisa que você estava dizendo e aí lançava a polêmica. Fortaleza era maravilhosa. A gente saía às vezes da Praça do Ferreira às quatro horas da manhã. Teve uma época que eu morava na rua Pedro Borges, o Beco dos Pocinhos, e o Beco dos Pocinhos era escuro como o diabo, e você não tinha a menor preocupação de ir para casa sozinho, não era perigoso.

E quando o grupo acabou, Haroldo?

Quando eu montei a Comédia Cearense. O Teatro Experimental é de 52 a 56, mais ou menos, e a Comédia Cearense é de 57.

Por que Comédia Cearense?

Esse nome, Comédia Cearense, vem do seguinte. Naquela época, todo cearense que ia para o Rio de Janeiro se acariocava. Eu tinha verdadeiro horror a esse tipo de coisa. Eu ainda hoje tenho horror às pessoas que não prestigiam a sua cidade, o seu Estado, o seu País. Quando o sujeito se muda e perde os seus hábitos, ele também se perde. O respeito pelo Nordeste, antes da década de 1960, era muito pouco, e para o grupo eu queria um nome que fizesse um sujeito de qualquer lugar do Brasil saber que aquele grupo era do Ceará. Muita gente acha que eu botei Comédia Cearense por causa da Comédie Française, mas não foi. Foi para ter o nome do Ceará.

Muitos da sua geração foram embora e você não foi.

Eu nunca tive essa preocupação de ser um nome nacional. Eu sempre achei mais fácil fazer teatro aqui em Fortaleza do que chegar e tentar fazer no Rio de Janeiro. Nesse ponto eu sou até meio comodista. Ir embora para tentar fazer teatro lá fora é uma luta muita insana. Com o Teatro Experimental e com a Comédia, eu sabia que podia realizar meu trabalho aqui. Nós recebemos, posteriormente, convite pra sair. O Orlando Miranda me dizia: Você tem que vir para o Rio. E eu dizia: E quem é que vai ficar fazendo teatro em Fortaleza? Eu não fui embora não foi para ser o herói; foi uma opção talvez até preguiçosa.

Fale dos primórdios da Comédia Cearense.

Eu li uma peça chamada “Lady Godiva”, do Guilherme de Figueiredo, e me entusiasmei pelo texto, pela agilidade da ação, pela objetividade das falas. Naquele tempo, ainda havia muito texto prolixo, rebarbativo. O autor achava que tinha de exaurir aquele assunto para o espectador captar. O Guilherme vinha com uma dramaturgia mais moderna, de diálogos rápidos. E nós estreamos com esse texto. A gente conseguiu ficar com o espetáculo em cartaz durante muito tempo. “Lady Godiva” teve quarenta apresentações. Em seguida, montamos “A Canção Dentro do Pão”, do R. Magalhães Júnior.

Nos anos 1960, Fortaleza já começa a ter um canal de televisão. Também em 1960, o B. de Paiva volta ao Ceará e, então, estréia como diretor da Comédia Cearense.

Quando a gente fala desse tempo, tem gente que pergunta: Por que Fortaleza tinha mais público nesse período e agora não tem mais? A gente regrediu? E de quem é a culpa? Da televisão? Do cinema? Eu nunca me frustrei com esse tipo de comparação, porque eu sempre fui muito consciente das dificuldades do teatro. O primeiro caminho para você fazer teatro é se conscientizar das dificuldades. O teatro é de todas as atividades de arte a mais penalizada. Minha maior frustração de oportunidade de prestígio foi quando “O Morro do Ouro” foi convidado em carta do Jacques Lang para participar do Festival de Nancy. Era o primeiro grupo do Ceará a ter esse convite.

Quando o B. de Paiva retorna do Rio e assume a direção da Comédia Cearense, você abdica da posição de diretor. É o B quem assume a direção dos espetáculos. E você passa a ser mais o ator e o produtor. Como é que se dá isso?

Uma equipe só funciona se cada membro tem responsabilidade pelas suas funções e as cumpre adequadamente. É difícil conseguir isso, mas com o B. nós criamos uma dupla que estava fadada a conseguir. Ficou acertado que eu me dedicaria às produções e o B. faria a direção. Eu gosto de dirigir até mais do que atuar , mas tive de abdicar em função do projeto, da idéia. Eu achei que era muito mais viável o B. ficar encarregado da direção. Eu sempre ajudei muitas vezes, na concepção dos espetáculos, porque já nessa época eu tinha bastante experiência de cena, e tudo isso facilitava. No elenco, a gente tinha muita gente de experiência. O Zé Humberto, por exemplo, que vinha do Teatro Experimental de Arte.

É dessa época o convênio que a Comédia fez com o governo para assumir o Theatro José de Alencar. Quais eram as bases desse convênio?

O Theatro José de Alencar naquela época não tinha diretor e a gente, entusiasmado com a volta do B., teve a idéia de fazer teatro de forma contínua. Eu sempre digo que quando o teatro é eventual, o público também será eventual. No dia que o Ceará tiver uma continuidade real, nós vamos ter público continuamente. O Seu Afonso Jucá era o administrador e nós tivemos a idéia de um convênio, onde a gente seria responsável pela administração do teatro, mas não pela manutenção econômica.

O período do convênio da Comédia com o Theatro José de Alencar, na década de 1960, é talvez a mais importante fase do grupo.

Nós realizamos muitas coisas, temporadas longas, com “O Morro do Ouro”, com a “Rosa do Lagamar”, com “O Pagador de Promessas”, “A Valsa Proibida”. Fizemos o nosso primeiro Nelson Rodrigues, com “O Beijo no Asfalto”. Sempre com o público prestigiando, lotando o teatro. E muita gente me pergunta: Por que isso não se repete hoje? Porque não há mais as mesmas condições. Naquele tempo, nós tínhamos o Theatro José de Alencar e você podia programar um espetáculo em função do tempo que você precisasse para aprontar esse espetáculo.

Como a Comédia Cearense viveu o período pós-golpe militar, pós-64?

Os censores eram de uma ignorância enorme. Aquela história que diz que um deles me perguntou se eu conhecia o Sófocles não é piada. O cara me perguntou mesmo se eu conhecia o Sófocles. Não sei se tinha alguém montando ou interessado em montar alguma coisa do Sófocles e um cara da Polícia Federal me perguntou se eu não conhecia esse tal de Sófocles. Eu digo: infelizmente eu não conheço, nem sei quem é. Havia isso, essas coisas. Outra coisa: o Manuelito era tido como uma pessoa de direita, de apoio à Revolução, e o texto dele já era...

Um habeas corpus.

Um habeas corpus.

A Comédia Cearense tem três fases: primeira, só com você, a segunda com você e o B. de Paiva e a terceira só você de novo sem B. de Paiva, que começa em 67,68.

Eu discordo da idéia de algumas pessoas que dizem que a Comédia decaiu com a saída do B. de Paiva. Eu nunca me aborreci com esse tipo de comentário porque tenho consciência do meu trabalho. Mas eu discordo. A Comédia Cearense só teve prêmios nacionais a partir da terceira fase. O B. teve alguma ingerência nisso? Teve, porque toda a formação nossa foi conjunta, mas, quando ele foi embora de novo, a Comédia Cearense não descambou, não caiu qualitativamente, não mudou a sua proposta. Terminou sendo diferente, por causa das circunstâncias. Os tempos mudaram.

Logo depois que o B. vai para o Rio, você monta dois espetáculos que tiveram premiações em festivais importantes: “O Simpático Jeremias” e “O Morro do Ouro” em musical.

Quando a gente chegou no Festival de São José do Rio Preto, pela segunda vez, a imprensa começou a dizer que nós éramos os campeões e que ninguém tinha ganho tantos prêmios no festival quanto o nosso grupo. Dos doze prêmios ofertados em doze categorias nós ganhamos nove com o Jeremias. E no ano seguinte, ganhamos o prêmio do voto popular e do júri oficial. Os outros grupos concorrentes é que votavam e nós tivemos o índice de noventa e sete por cento de bom e ótimo. Isso impressionou não só a eles, do festival, como a nós também.

Nos anos 70, mesmo continuando no Theatro José de Alencar, a Comédia Cearense chegou a manter o Teatro Móvel. No fiml dos anos 80, o grupo sai do José de Alencar e funda o Teatro Arena, ligado ao Colégio Christus. Foram muitas as tentativas suas de ter uma sede própria.

Algumas pessoas do Ceará, e eu tenho a impressão de que você também, foram influenciadas por essa minha psicose de ter um espaço. Eu sempre disse: a gente só deixará de ter um teatro eventual no Ceará quando tiver um espaço. Você não pode fazer um projeto de teatro permanente num teatro do governo. Como é que eu ou você vai fazer um projeto de teatro permanente no Theatro José de Alencar? É inteiramente inviável. É incabível ter todos os sábados e todos os domingos porque você estaria preterindo os outros grupos.

Para terminar, Haroldo, eu queria que você respondesse o seguinte: o que é em essência a Comédia Cearense? Qual a filosofia de trabalho do grupo?

A Comédia Cearense existe porque eu gosto de fazer teatro. Se eu não gostasse de fazer teatro, a Comédia Cearense não existiria. A gente sabe que o teatro é importante para cultura local, mas essa não é a razão que faz a Comédia Cearense resistir por tanto tempo. É porque eu gosto de fazer teatro. Muita gente se programa: eu não vou mais fazer isso não. Eu nunca disse essa frase em todos esses anos de teatro. E continuo não dizendo. Porque eu gosto de fazer teatro. Agora, a partir do momento que você gosta de uma determinada coisa, você vai procurar fazer essa coisa da maneira mais abrangente e mais objetiva possível, para beneficiar e ajudar o desenvolvimento da cultura da sua terra. Mas isso, na realidade, é conseqüência do fato de eu gostar de teatro. Eu não consigo me ver sem fazer teatro. Por que você acha que a Comédia Cearense sobrevive ? Por que um grupo consegue ter tantos anos de atividade? Geralmente, no Ceará, os grupos se desfazem. E se desfazem muito mais quando fazem sucesso do que quando não fazem. Pode fazer uma retrospectiva. Toda vida que um grupo novo surge e faz sucesso, logo depois acaba.

E por quê?

A minha versão é que há uma disputa muito grande pelo “quem fez”. Fulano fez mais, fulano fez menos. E isso gera um desentendimento. As pessoas do Ceará têm esse defeito. E talvez nos outros estados também seja assim. Às vezes, surgem coisas muito promissoras e que de repente a gente observa: acabou. Mas nós estamos trabalhando há 50 anos. Nesse depoimento, o tempo não permitiu que nós dissertássemos nem sobre dez por cento do trabalho do Teatro Experimental de Arte e da Comédia Cearense. Foi muita coisa que a gente realizou. E foram muitas pressões que a gente enfrentou. Mas, de todas as pressões que você sabe que eu sofri e as que você não sabe eu tirei todas elas de letra. E continuarei tirando.

Obrigado, Haroldo. É preciso que a gente faça justiça à sua fidelidade ao teatro.

RICARDO GUILHERME
Teatrólogo

O ENTREVISTADOR
Para entender os tempos da cena

Ricardo Guilherme
Teatrólogo
Tendo iniciado sua carreira nos anos 70 como ator, Ricardo Guilherme não tarda a se firmar como pesquisador de teatro. Professor do Curso de Arte Dramática, da Universidade Federal do Ceará, é autor de inúmeros artigos sobre a história do teatro cearense. Na Comédia Cearense, integrou o elenco de várias peças.

(© Diário do Nordeste)


Comédia Cearense 50 anos depois

Companhia de maior longevidade na cena local, a Comédia Cearense chega aos 50 anos de atividade

MAGELA LIMA
Repórter


Alencar nem ao menos havia publicado sua “Iracema”, e Paris já aplaudia sua Comédie Française. Por aqui, Fortaleza praticamente assistiu ao centenário do romance quando viu despontar sua Comédia Cearense. Distância imensa, porém, separa a memorável companhia européia, herança do eterno mestre Molière, da empreitada local capitaneada por um grupo de amadores fascinados pelo desejo de estar em cena.

A coincidência de alcunhas, no entanto, denuncia uma nada discreta metonímia. Parte e todo se confundem em ambos os casos. Assim como falar da famosa Comédie é, também, falar do teatro francês; falar da Comédia é falar da cena cearense. Ao longo dos últimos 50 anos, o teatro que se fez no Ceará esteve vinculado à criação e atuação da Comédia Cearense. A atividade permanente fez com que a companhia ora se configurasse como escola — mais de 700 pessoas estiveram envolvidas com as montagens do grupo em sua jornada — ora como gestora das políticas públicas voltadas para o setor teatral no Estado.

Tendo estreado em sete de setembro de 1957, a Comédia Cearense logo assumiu o posto de trupe oficial do Ceará. Seu idealizador, o ator e diretor Haroldo Serra, por extensão, também não tardara a se fazer uma das principais lideranças do panorama local. Assim, a cena do grupo e a voz de seu comandante-mor assumiram força simbólica definitiva nesses últimos 50 anos.

Haroldo Serra, por exemplo, foi o primeiro artista de vínculo exclusivo com a prática teatral a ocupar o posto de diretor do Theatro José de Alencar. No mesmo período, fora também o primeiro a presidir a Federação Estadual de Teatro Amador (Festa). A atividade da Comédia Cearense, a julgar pela postura de seu líder, foi pautada pelo desejo de diversidade. Daí, a Comédia Cearense ter muitas caras.

Primeira temporada

Quem assistiu à estréia de “Lady Godiva”, montagem inaugural da Comédia Cearense, podia imaginar que o nome da trupe tivesse algo a ver com o gênero cômico. Não, pelo menos não dessa vez, o Ceará moleque não se queria tão moleque assim. O destaque que a trupe estreante conseguira com o texto do carioca Guilherme Figueiredo, em breve se faria pretexto para a busca de um referente local. Em março de 1958, a Comédia Cearense se encontrava pela primeira vez com um autor também cearense.

“Canção dentro do pão”, de Raimundo Magalhães Júnior, foi o primeiro encontro do grupo com uma escrita cênica local. A peça, nos primeiros tempos da companhia, ganhara uma segunda versão. Em 1960, a Comédia Cearense pontua a mais promissora de suas fases. Parceiro antigo de Haroldo Serra, o ator e diretor B. de Paiva, então, voltava de uma temporada no Rio de Janeiro.

Na Capital Federal, B. aprendera os segredos de um novo teatro. A isso, deve-se a carta branca da Universidade Federal do Ceará (UFC) para a criação do Curso de Arte Dramática (CAD). Na década de 1960, B. de Paiva regressava ao Ceará antenado com as informações de ponta do cenário teatral daquele momento. Sua volta, assim, não poderia ter desfecho diferente. Logo que chega, B. de Paiva se associa à Comédia Cearense, assumindo a direção geral de seus espetáculos.

A era B.

Tão importante quanto a Comédia Cearense está para o teatro cearense, B. de Paiva está para a consolidação do grupo. Com B., a Comédia Cearense ganha contornos mais profissionais. Mantendo a linha do ecletismo, vai de Shakespeare a Molière, passando pela radicalidade das primeiras cenas do baiano Dias Gomes. “O Pagador de Promessas”, de 1962, é apontada como um marco na maturidade da produção local.

Era o que faltava para que os artistas cearenses passassem a ter em casa destaque semelhante aos que vinham de fora. Na Comédia Cearense, B. de Paiva avivou em Fortaleza os tempos áureos do teatro da Capital. Ao passo que encenou dramaturgias renovadoras, como “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, e “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, a Comédia Cearense, sob a batuta do diretor, avivou as lembranças de um teatro cearense e bem mais popular que o cinema.

No Ceará tem teatro

A dramaturgia de Carlos Câmara, primeiro grande autor do teatro cearense, fundador do Grêmio Dramático Família, grupo atuante entre 1918 e 1939, foi recuperada com sucesso absoluto nos anos 1960. “O Casamento da Peraldiana”, produção de 1966, vinha reforçar a opção da Comédia Cearense em valorizar um repertório absolutamente local. Foi assim que o grupo se apossou da escrita do dramaturgo Eduardo Campos, autor dos textos mais emblemáticos que levara aos palcos: “O Morro do Ouro” (1963) e “Rosa do Lagamar” (1964) - (foto à esquerda).

Mais que um grupo de teatro, a Comédia Cearense, nesse caminhar de 50 longos anos, é o registro de persistência. A Comédia Cearense nasceu do desejo de continuar e tem feito disso sua rubrica maior. Cada passo dado pela companhia, reverberava na cena cearense de forma definitiva. Ao contrário do verso famoso do pernambucano Manuel Bandeira — que fala daquilo que poderia ter sido, e não foi — a Comédia Cearense foi, exatamente, aquilo a que se propôs.

(© Diário do Nordeste)

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