Notícias
 Os engenhos hoje arrasados da literatura de José Lins do Rego

 

 

 

Divulgação

Embora abandonada, propriedade ainda conserva em bom estado o casarão onde viveu a família do autor
 

Região dos autores José Américo de Almeida, Augusto dos Anjos, Suassuna, do músico Sivuca e do pintor Pedro Américo

Jotabê Medeiros, enviado especial

PILAR, Paraíba - Uma gangue de sagüis, três vacas e um gato são atualmente os habitantes da Casa Grande e do terreiro do antigo Engenho Corredor, onde nasceu em junho de 1901 o escritor paraibano José Lins do Rego. Atrás da propriedade (que apesar de abandonada ainda conserva em bom estado o casarão onde viveu a família do autor), uma máquina a diesel e 6 homens drenam furiosamente a areia do Rio Paraíba, onde os meninos de engenho costumavam se banhar, para o usufruto da construção civil paraibana. 

Esta semana, a cidade de Pilar, relíquia de 249 anos encravada entre os velhos engenhos mortos (uma espécie de Macondo do autor brasileiro) contraria alegremente todos os clichês sertanejos: o tempo está fresco, chove, os campos estão todos verdinhos e pode-se até colher um tomate vermelho e brilhante na beira da estrada. 

Na quarta-feira, 12, completam-se 50 anos da morte do Lins do Rego, e o Estado percorreu a região onde o avô do escritor possuiu nove engenhos, a maioria em ruínas hoje, e que alimentou uma das fases mais ricas da literatura regionalista nacional. 

O Engenho Corredor tem um cadeado na porteira. Quando o jornalismo avança, quase ato contínuo, um carro da polícia encosta. Danou-se, diria o paraibano mais aperreado. Mas da viatura salta o policial aposentado Sebastião José de Brito, o Babá, de 62 anos, e tudo que ele quer é contar história, e como conta bem. "João Lins Vieira foi o último habitante da Casa Grande, e a mulher, dona Montinha, era minha madrinha. Eu passava aqui, a estrada era aqui (com os braços abertos, redesenha no ar a geografia anterior às ruínas), eu ia com bodoque pra caçar no mato. Quando voltava, de tardinha, ela me chamava, colocava um gelo na caneca e a gente ia até a sala de purgar a cana, e lá ela tirava uma cuia de caldo de cana e me servia na caneca", lembra Babá. 

O ex-sargento da polícia está ali trazendo um novo colega que queria conhecer a propriedade, e vai lembrando dos bailes que o senhor de engenho dava, o de São Pedro e o do carnaval, com fogueira na frente do casarão, a orquestra tocando, o anfitrião na porta do salão, recepcionando os convidados de casaca. Hoje, o cadeado é fruto de disputa judicial entre uma filha de Lins Vieira e o genro. Babá ainda se lembra do último baile de carnaval, os violinos debaixo da árvore e o senhor de engenho molhando os foliões com um jato d’água. 

Muda a paisagem, mas os personagens permanecem e até se robustecem. Talvez venha daí a riqueza literária dessa terra, dos contadores de histórias que se acercam, que convidam para entrar, o cheiro de toicinho com feijão chispando no fogão, como na casa modesta de Mestre Zé Amaro, personagem de Fogo Morto ("Um personagem de Proust perto de mestre José Amaro é café pequeno", disse Mário de Andrade). A decadência dos engenhos já era a matéria-prima da literatura de Lins do Rego, mas, como assinalou Otto Maria Carpeaux, é na percepção da oralidade que está a riqueza da coisa toda. "José Lins do Rego é um conteur nato; contar histórias é a sua profissão", escreveu Carpeaux. 

E as histórias aqui, na região dessa cidade batizada por uma imagem espanhola de Nossa Senhora del Pilar, emboscam o viajante a cada momento: nos fantasmas dos enforcados da antiga Casa de Câmara e Cadeia que um dia fizeram o cabo sair correndo para a rua só de cuecas, assustado; no homem de chapéu que passa montado num burrico com um sabiá na gaiola; na plaqueta pregada numa árvore centenária, onde se lê "vende-se dindim"; na escola de datilografia que persiste (e que tem 6 alunos na terça-feira e 6 alunos na quinta-feira). 

"Na Europa, essa região seria um lugar daqueles que têm roteiro nos guias de viagem, verbete especial em enciclopédia de turismo, uma rede de pousadas e hotelaria", entusiasma-se o cineasta Vladimir Carvalho, que acaba de lançar o documentário O Engenho de Zé Lins, justamente tratando desse universo. O filme foi exibido com grande êxito no recente Festival de Gramado. O diretor remonta à sua maneira os cacos desse legado literário, e até resgata das ruas o ex-ator Sávio Rolim, o hoje sem-teto em João Pessoa que fez o papel do menino Carlinhos no filme Menino de Engenho, em 1965, dirigido por Walter Lima Júnior e com produção de Glauber Rocha. 

Vladimir, que também é filho da terra, defende a criação de um roteiro turístico cultural para a região. Depois de dois dias rodando por ali, é impossível não lhe dar razão. Na cidade de Sapé, uns 30 quilômetros mais adiante da Pilar de Lins do Rego, encontra-se o que restou do Engenho Pau D’Arco, atual Usina Santa Helena, onde nasceu o poeta "profundissimamente hiponcodríaco" Augusto dos Anjos (1884-1914), autor de um único e inimitável livro, Eu, lançado há exatos 95 anos. A casa de sua ama-de-leite virou uma fundação, inaugurada há um ano. 

Seguindo de novo pela estrada em direção a Campina Grande, mais uns 60 quilômetros à frente, o carro desvia para a serra que abriga a misteriosa cidade de Areia, envolta na neblina que veio após a chuva. É uma jóia colonial no alto de uma montanha, uma Campos do Jordão sertaneja, terra do pintor Pedro Américo e do escritor José Américo de Almeida (e ministro de Getúlio Vargas), autor de A Bagaceira, que inaugurou todo o ciclo dessa literatura de engenho & arte.

(© Estadão)


Areia, terra de José Américo e de Pedro Américo

Sob fog denso e frio de 15 graus, visões dos restos das usinas, uma chaminé aqui, outra ali

Jotabê Medeiros, enviado especial

Areia, a terra natal do criador de todo o ciclo literário da cana-de-açúcar, José Américo de Almeida
Areia, a terra natal do criador de todo o ciclo literário
da cana-de-açúcar, José Américo de Almeida

AREIA, Paraíba - A estrada que leva à cidade de Areia é sinuosa, chove forte, os sapos cruzam preguiçosamente o asfalto e uma insólita churrascaria A Bagaceira surge no fim de uma curva. Quando as curvas terminam, aparece o município onde fica o Engenho Olho D’Água, terra natal do criador de todo o ciclo literário da cana-de-açúcar, José Américo de Almeida (1887-1980), autor de A Bagaceira.

Zé Américo, como o chamam na região, não conseguiu notoriedade maior do que a do seu conterrâneo pintor, Pedro Américo de Figueiredo e Melo, a quem dedicaram a placa na entrada da cidade: "Aqui nasceu Pedro Américo." Pedro ganhou a Europa, e Zé Américo fez da política nacional um dos ramos de sua atividade profissional, chegando a governador.  

Os mototaxistas, lacônicos como o personagem de João Miguel no filme O Céu de Suely, esperam passageiros debaixo de chuva, a cidade toda está envolta num fog denso e o frio chega a uns 15 graus. No meio dos prédios muito antigos, um fabuloso Theatro Minerva, de1859, o primeiro da Paraíba, surge imponente no meio de um conjunto de velhos sobrados, colégios seculares, igrejas amareladas. Cidade a 618 metros acima do nível do mar, com temperaturas incomuns ao Nordeste, tem um patrimônio histórico notável. É aqui também que se encontra o conveniente Museu da Rapadura. 

Pelas mãos de José Américo, a antiga Vila Real do Brejo de Areia chegou a ter ambições políticas. Getúlio Vargas esteve na cidade, a convite de Zé Américo, que manteve sempre suas ambições acesas: criou aqui também um núcleo universitário, o Centro de Ciências Agrárias, para ajudar a desenvolver a região. Em 1958, Zé Américo deixou abruptamente as lides políticas e se tornou o mais famoso recluso da Paraíba.  

Pela região, pipocam visões dos restos das usinas, uma chaminé aqui, outra ali, que vão se deixando entrever da estrada. Os caçadores de engenhos vão descobrindo os sucedâneos daqueles que foram famosos na ficção do romance de José Américo, como o Marzagão - cenário da história de amor irrealizado de Soledade e Lúcio, e da perfídia de Dagoberto. 

A caminho de Pilões, a 20 km dali, crianças com uniformes escolares passam a todo momento pela beira de estrada (cena mais e mais comum por aqui, talvez pela exigência do programa bolsa-família), e os viajantes, derrotados temporariamente pelos buracos na estrada, fazem a notável descoberta das rapaduras com nozes do pequeno Engenho Olho D’Cana, na milionésima curva.

(© Estadão)


Augusto dos Anjos usa Pau D'Arco em todas as datas

Mas o amor do escritor por sua terra não tem quase ressonância em sua obra

Jotabê Medeiros, enviado especial

Ao fundo, o Engenho de Pau D'Arco
Ao fundo, o Engenho de Pau D'Arco

SAPÉ, Paraíba - Quando o poeta diz "meta", pode estar querendo dizer o inatingível. A letra de Gilberto Gil poderia ajudar a clarear, mas não a compreender, a relação entre o berço e a obra do poeta Augusto dos Anjos (1884-1914). E outros mistérios: como é que ele, tendo nascido no bucólico Engenho de Pau D’Arco, no sertão paraibano, se afeiçoou a uma árvore, um reles pé de tamarindo de 200 anos, e a um lago de superfície prateada? São estes os únicos resquícios de seu tempo ali, além da casa de sua ama-de-leite Guilhermina e do sino, da pia batismal e do frontispício da igrejinha local.   

O amor de Augusto pelo Pau D’Arco não tem quase ressonância em sua obra. "Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques/E o animal inferior que urra nos bosques/É com certeza meu irmão mais velho!", escreveu o poeta em Monólogo de Uma Sombra. Localizado no município de Sapé, a cerca de 50 km de João Pessoa, o Engenho Pau D’Arco foi engolido pela Usina Santa Helena, que foi derrubada pela falência, e cujos escombros vão ficando cada vez mais finos - os tijolos vão sendo levados pelos órfãos da usina, que compõem o pequeno vilarejo onde está a terra natal de Augusto dos Anjos.  

As paredes do que resta guardam ironias finas, que deliciariam o irônico poeta. Por exemplo: o salão principal da usina tem uma inscrição na fachada que diz assim: Centro Esportivo e Recreativo Augusto dos Anjos. 

Tudo que o poeta de Psicologia de Um Vencido ("Eu, filho do carbono e do amoníaco, monstro de escuridão e rutilância") não era: esportivo e recreativo. "Um tipo excêntrico de pássaro molhado", disse dele Orris Soares. Em um auto-retrato literário, Augusto pergunta a si mesmo: "O que sente de anormal quando está produzindo?" E responde: "Uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar."

"O Pau D’Arco é uma sombra do passado, escurecido em impagáveis hipotecas", escreveu o autor, que publicou o único livro, Eu, em 1912, custeado pelo irmão Odilon, que gastou 550 mil réis para mandar imprimir mil exemplares de uma das mais singulares obras da literatura nacional. O colega José Lins do Rego notou que ele, Augusto, mesmo no Recife ou no Rio de Janeiro, assinava todos os poemas como se estivesse ainda no Pau D’Arco e os datava assim: Pau D’Arco, 1907, Pau D’Arco, 1903. "Ele tem orgulho do seu engenho", disse Lins do Rego. 

O orgulho não foi suficiente para que os restos mortais de Augusto dos Anjos fossem trazidos de Minas Gerais, onde morreu, para sua terra. Os filhos proibiram, magoados com o tratamento que a família Dos Anjos recebeu dos conterrâneos. "Ele foi discriminado na Paraíba, mas na verdade ele amava a Paraíba, tanto que criou os filhos aqui", rebate Verônica Maria da Silva, que trabalha como guia no Memorial Augusto dos Anjos.  

"Admiro muito ele. Ter saído daqui e ido tão longe! É uma honra trabalhar com ele", diz Verônica, guardiã das coisas do poeta no casarão da ama-de-leite Guilhermina, restaurado há um ano pelo governo paraibano, a uns 200 metros da antiga usina. "A ama-de-leite furtava as moedas que o Doutor me dava, mas eu furtei mais, porque furtei o peito que dava leite para sua filha", diz o poema de Augusto. Dois dias antes de morrer, ditou ao farmacêutico o poema O Último Número, que diz assim: "Bradei: que fazes ainda no meu crânio? E o Último Número, atroz e subterrâneo, parecia dizer-me: É tarde, amigo! Pois que a minha autogênica Grandeza nunca vibrou em tua língua presa. Não te abandono mais! Morro contigo." 

No agradável memorial plantado no meio do nada, displays e retratos do artista doados por pintores locais, além de poemas, ocupam as paredes; no centro da sala, uma TV grande e um auditório; na entrada, uma lojinha que vende o Licor do Poeta, licor de tamarindo feito pelos assentados do MST que vivem ali nas terras. O pé de tamarindo que Augusto dos Anjos venerava está lá, majestoso, habitado por duas colméias, num quintal de terra preta dominado por um casal de perus e galinhas de pescoço pelado, a famosa galinha gogó-de-sola.

(© Estadão)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind