Notícias
 Autores da nossa imagem

 

 

 

O diplomata e poeta João Cabral de Melo Neto
 

João Cabral de Melo Neto e Jorge Amado ganham novas editoras e retornam às livrarias em reedições caprichadas

Schneider Carpeggiani
carpeggiani@gmail.com

João Cabral de Melo Neto e Jorge Amado não são apenas escritores. São criadores de paisagens. O baiano com seus temperos, mulatas e tramas sexuais pairando pelo realismo mágico latino-americano criou uma colorida visão utópica do Brasil, que – apesar dos malefícios redutores de todo clichê – ainda é predominante. João Cabral, para além de suas obsessões espanholas, foi certeiro ao descrever o rio que atravessa o destino geográfico do Recife com a segurança de um cachorro, que cruza a rua sem olhar para os lados.

Essa paradigmática dupla da literatura brasileira está de “casa nova”. A Companhia das Letras ganhou uma concorrência, em meio a oito editoras, para dar início à publicação da obra completa de Jorge Amado, formada por 32 títulos, que estava nas mãos da Record. O retorno do autor de Gabriela às livrarias é fruto de uma parceria da Companhia das Letras com o Sesc, a gravadora Biscoito Fino e a Fundação Roberto Marinho. O novo projeto gráfico é do escritório Máquina Estúdio, comandado por Kiko Farkas

Segundo o publisher Luiz Schwarcz era um sonho antigo da Companhia das Letras ter em mãos o legado de Jorge Amado, desejo que foi declarado ao próprio autor numa visita à sua residência na Bahia, em 1995. O “novo” Jorge Amado chega às livrarias só em 2008. Os dois primeiros títulos do projeto são Capitães de areia e Mar morto, obras que apontam o ser .

João Cabral depois de um longo casamento com a Nova Fronteira passa a fazer parte da Alfaguara, selo da Objetiva. Os dois primeiros títulos dessa nova fase acabam de ser lançados, O cão sem plumas e O artista inconfessável. O primeiro é uma reedição de um dos seus escritos mais famosos, com textos comparados da edição original, de 1950, pelo acadêmico Antônio Carlos Secchin. Este livro consagrou definitivamente o poeta.

O prefácio da nova edição de O cão sem plumas é do poeta e crítico literário Armando Freitas Filho, que apontou a respeito do livro: “João Cabral de Melo Neto, antes de completar 10 anos de poeta publicado, alcança um dos pontos culminantes de sua obra e da poesia brasileira. De poeta iniciante ao poeta maior da evolução, ‘tecida em grosso tear’, foi rara, pela força, velocidade e consistência. Com toda certeza, intuía que também para os poetas como ‘para os bichos e rios/ nascer já é caminhar’”. O poeta inconfessável é uma coletânea inédita, com concepção de Inez Cabral, filha do escritor, e ilustrada com fotos do acervo da família.

O HOMEM COM ALMA

Um dos clichês que cercam a figura de João Cabral é a de um poeta sem emoção. O da elaboração feita a cimento, cal, de palavras como construção, como se o ofício da escrita (por mais que qualquer autor se agarre a teorias da inspiração, de surto da divindade) não fosse permeada por um mínimo de rigor. Mostrar que existe um outro poeta, para além desse João Cabral ensinado nas escolas, levou Inez Cabral a organizar O artista inconfessável.

“Eu passei a minha infância inteira achando meu velho um gênio. Quando ele teve problemas de visão, eu mesma lia muita coisa para ele, e percebia como ele se emocionava com a literatura. Não existe isso de que meu pai não tinha emoção, de que escrever poesia para ele fosse só um exercício prático. Quero reabilitar João Cabral”, afirma Inez Cabral, em entrevista por telefone ao JC.

O processo de reabilitação teve como ponto de partida a escolha dos textos de O artista inconfessável. “Escolhi textos em que meu pai descreve lembranças, em que ele se deixa mostrar nos poemas, estão ali as primeiras memórias dele de Pernambuco, suas sensações. Acho que o grande problema de João Cabral é de como ele foi ensinado nas escolas, que é assim: João Cabral não tem emoção, Drummond tem. Não se pode passar uma visão fechada do que seja literatura”, explica.

O livro abre com o poema Dúvidas apócrifas de Marianne Moore, em que o poeta promove um auto-retrato que se quer às avessas: “Sempre evitei falar de mim,/ falar-me. Quis falar de coisas./ Mas na seleção dessas coisas/ não haverá um falar de mim?”.

Na coletânea, há poemas que tratam da infância no interior de Pernambuco, convivendo com trabalhadores dos canaviais no engenho da família, em São Lourenço da Mata, suas férias com os primos e o dia em que nasceu, com sua mãe tendo de se deslocar da fazenda para Recife. Foram também reunidos poemas escritos na Espanha, principalmente em Sevilha e Barcelona, cidades nas quais viveu em diversos períodos da vida. O artista inconfessável traz um João Cabral para além da imagem que seu cimento e cal construíram ao seu próprio redor.

» O artista inconfessável e O cão sem plumas (Editora Alfagura): R$ 29,50 (preço médio)

(© JC Online)


Um implicante de carteirinha

A editora Agir lança Óbvio ululante – as primeiras confissões, livro que reúne 81 textos escritos por Nelson Rodrigues entre 1967 e 1968

Marcelo Pereira
marcelop@jc.com.br

Nelson Rodrigues tinha 55 anos quando começou a escrever a coluna Confissões no diário carioca O Globo. Já era um homem velho, passadista, contraditório e reacionário pra caramba, embora seu estilo inconfundível, exclamativo muitas vezes, de agudas observações (muitas delas absolutamente pertinentes), brindassem o leitor com frases de um humor ímpar, como atesta Óbvio ululante – as primeiras confissões, que a editora Agir publica, dando seguimento ao projeto de relançamento de parte da obra jornalística e ficcional do autor pernambucano.

O livro reúne 81 textos escritos entre dezembro de 1967 e junho de 1968 – apenas duas crônicas foram pinçadas do Correio da Manhã de 1967: “Canalha nº 1” e “Velhas e novas gerações”, que servem para contextualizar os temas tratados nelas. Nelson Rodrigues era, assumidamente, uma flor de obsessão e muitos de seus temas e personagens eram recorrentes: Antônio Callado (“o doce radical”, “único inglês que o mundo conhece”), Hélio Pellegrino (amigo de todas as horas, que nunca lhe deixou faltar “uma fatia de pão para minha fome e um pouco de leite para minha úlcera”), Abdias do Nascimento (“o único preto do Brasil”), Gustavo Corção (“uma das inteligências mais sérias do Brasil” e “o grande pensador católico”), Adolpho Bloch (o menino de Pereira Nunes de pé descalço e calça furada, que passou fome e hoje muda de automóvel como de camisa”) e Dom Hélder Câmara (“o homem fatal”).

Os temas de suas crônicas são os mais diversos: da nudez do Carnaval na TV à fome no Nordeste, do movimento estudantil de Maio de 1968 na França à visita de Jean Paul Sarte ao Brasil, dos saraus grã-finos à partida de futebol no Maracanã, dos novos grupos de teatro, da literatura de Dickens e Gide à política brasileira, ou de líderes como De Gaulle (admirado) e Stálin (desprezado), isso sem falar no personagem favorito: o canalha namorador, traidor, que brecha a vizinha do alto de uma árvore.

A infância é momento marcante para Nelson. Uma das passagens que mais rememora é a hora do recreio na escola pública e a inveja de um garoto que comia pão com ovo enquanto ele tinha que se contentar de comer apenas uma “imutável” banana. Ele relembra os castigos da professora e a humilhação que sofreu por estar com lêndeas na cabeça.

O nome mais citado no livro é do ex-arcebispo do Recife e Olinda, D. Hélder: seu nome é escrito nada menos do que 38 vezes. “Ao falar de D. Hélder, não posso furtar um agudo sentimento de culpa (...) Admiro-o muito e só lhe faço a objeção da vaidade. Quer me parecer que a vida de D. Hélder é uma perene, exaustiva, autopromoção”, diz em referência à campanha do religioso sobre a fome do Nordeste. Para Nelson Rodrigues, D. Hélder abraçou a causa dos flagelados porque “a fome do Nordeste é promocional e, repito, rende entrevistas, primeiras páginas, manchetes, pronunciamentos, etc.”.

Xingar os Estados Unidos era, segundo Nelson, o ganha-pão de D. Hélder. Se não fosse isso e a fome, ele teria que voltar a ser “um vago funcionário do sobrenatural”. Uma das maiores broncas do jornalista era porque D. Hélder falava sobre a fome no Nordeste enquanto se calava sobre a licenciosidade do amor livre que ganhava força naqueles anos de liberação sexual e que escandalizava o cronista. O arcebispo de Olinda e Recife também tirou do sério o cronista ao defender o uso da música popular brasileira nas missas. “É um progressista, e como tal, inventou a missa cômica”, escreve, imaginando o romper de cuícas e recos-recos durante uma celebração monótona na igreja.

É horrorizado que o cronista assiste na TV o Carnaval de 1968, com sua “nudez indiscriminada” que desperta o “falso desejo”. “Disse não sei quem que o desejo é triste”, escreve Nelson, “e exige o pudor, o segredo, o mistério, a exclusividade do casal”. E complementa: “o falso desejo, o desejo apenas representado, é alegríssimo e salubérrimo. Eis o que eu queria dizer – o Carnaval que passou foi um espetáculo inédito na Terra. O turista que aqui veio teve uma sensação de erotismo unânime e colossal”. Esse exibicionismo era para Nelson inaceitável pois, para ele, “nunca a mulher foi tão secundária para o homem, nunca o homem foi tão secundário para a mulher” por causa dessa “nudez multiplicada, obsessiva e feroz”. Hiperbólico, afirma que a TV exibiu apenas um umbigo, “sempre o mesmo” “único e exclusivo” – “e a cicatriz de uma apendicite recente. Nada de cara ou gestos”.

Para o jornalista, o telespectador teve sua privacidade invadida e põe a culpa na família, que deixa a mulher ir aos bailes de sarongue, “equivalente à folha de parreira”. E põe culpa em todo mundo: pai, mãe, irmãos, marido, namorado, vizinhos, autoridades, imprensa, rádio e TV. “todos aceitam e estimulam porque querem ser ‘pra frente’”. Para ele, o corpo deveria ser exclusividade do bem-amado.: – “como é feia, triste, humilhada, ofendida, a nudez sem amor”.

Nelson Rodrigues sabia que muitos o consideravam “um velho reaça”, como brincava Antônio Callado. De bate-pronto, ele retrucava: “Ai do artista que quiser ser apenas artista. A toda hora e em toda parte estão a exigir-lhe o atestado da ideologia. Ele precisa ter poses de esquerda, frases de esquerda, paixões de esquerda, palavrões de esquerda”. Nelson se sentia deslocado naqueles conturbados e transformadores anos 60. “Em nossa época, ser ou não ser jovem eis a questão. Na minha infância, o jovem tinha vergonha de o ser. Todo mundo queria ser velhíssimo”. Esse era o espírito do escritor.

As inquietações juvenis incomodam o cansado cronista. Certa vez, uma companhia paulista liderada por Lípero Ripoli (um seguidor do Teatro Oficina) resolveu encenar sua peça Viúva porém honesta. O resultado não agradou nem um pouco ao dramaturgo, que ficou com a “úlcera pegando fogo”, mesmo sem ter visto a montagem, por causa de restrições feitas pelo crítico Sábato Magaldi. O que mais revoltou o autor do texto foi a liberdade do grupo de fazer com que um personagem descesse do palco em plena ação para distribuir sanduíches, salgadinhos, guaranás e guardanapos de papel com a platéia. “Eu entendo que o teatro nada tem a ver com a platéia. Só conheço na platéia uma função estritamente pagante. Não devia nem ter o direito ao aplauso. O aplauso já me parece uma exorbitância”, escreveu. “A inteligência está liquidando o teatro brasileiro. Daqui por diante, só darei uma peça minha ao diretor que provar sua imbecilidade profunda”, disparou.

Atento aos fatos que corriam àquela época, acompanha em suas crônicas os desdobramentos de Maio 68 na França – tachado por ele de “Revolução Francesa sem Maria Antonieta”. Ele demonstra seu espanto com o fato de os franceses terem descoberto “de súbito” que “desde Luís XV o ensino francês é uma gigantesca impostura”, lembrando que a ilustração no Brasil do século 19 era tipicamente francófila. “A glória de certos povos pode ser uma soma de imposturas fascinantes”, escreveu. Para Nelson, a única coisa que se salvava do movimento estudantil era a força física com que os jovens arrancavam e quebravam vitrines. “É um luxo de potencialidade muscular”. E arrematava: “Ocupam a Sorbonne e à noite, dançam e bebem numa boemia frenética”.

Ao descrever alguns personagens de suas crônicas, Nelson era mordaz e preconceituoso, por exemplo, ao comentar sobre suas vizinhas. Para ele, a “vizinha autêntica e universal” “há de ser obesa”, “cheia de varizes como uma viúva machadiana” e usar “na estação cálida, um colar de brotoejas”. Numa certa vez, o cronista foi para uma festa grã-fina num palácio no Alto da Boa Vista e não perdoou o anfitrião, desenhando-o como um “Bórgia obeso” e patético, por tê-lo feito um apelo absurdo: que Nelson fosse marxista. O próprio cronista era impiedoso consigo. Numa crônica sobra a infância, se descreve como um garoto “pequenino e cabeçudo como um anão de Velasquez”. Observador atento, ele teceu um comentário amargo quando Marta Rocha perdeu o primeiro lugar no Miss Universo. “É preciso compreender que o brasileiro nasce marcado pela vergonha física. O brasileiro é um narciso às avessas que cospe na própria imagem. Somos feios confessos”. Não era o caso da miss, claro.

Nelson Rodrigues parecia reconhecer que era uma espécie em extinção, que no futuro poucos teriam a liberdade de escrever como ele. Talvez por covardia. “A opinião deixou de ser um ato pessoal, uma posição solitária, um gesto de orgulho e desafio. Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem ter jamais ousado um raciocínio próprio. Há toda uma bossa de frases feitas, de sentimentos feitos, de ódios feitos”. E dramático, setencia: “O sujeito que opina por conta própria, simplesmente opina por contra própria, tem algo de suicida. Em verdade, ele se compromete ao infinito”.

(© JC Online)


Canalhas povoam universo rodriguiano
 
Se O óbvio ululante é o exercício diário de Nelson Rodrigues na imprensa. O casamento mostra o escritor no melhor de sua forma criativa como ficcionista. Quarenta anos após a sua publicação, em outubro de 1966, o romance voltou às livrarias em nova edição da Agir sem estardalhaço, ao contrário da sua primeira edição, que terminou sendo recolhida pela censura dois meses depois de chegar ao público.

A história se passa nas 24 horas que antecedem o casamento de Glorinha, quando o pai da moça, o corretor imobiliário Sabino, descobre que o ginecologista de sua filha flagrou o futuro genro beijando o assistente do médico.

Sabino é um personagem tipicamente rodriguiano: é machista, adúltero, masturba-se, tem pensamentos obscenos, fantasias sexuais e impulsos reprimidos, mas fica completamente atônito ao saber da notícia da pederastia do genro. E o seu dilema é contar ou não à filha, o que seria um escândalo. E uma das razões mais graves é a possibilidade de cancelar o casamento, o que seria para ele insuportável, até porque é já indissolúvel na véspera.

No livro estão frase lapidares no melhor estilo de Nelson: “Todo canalha é magro”, “Mulher não entende nada de homem”, “A mulher que se casa não é mais a mesma, “O amor normal é triste e doente’, “Só os profetas enxergam o óbvio”, e por aí vai.

A Agir também relançou Elas gostam de apanhar, mais um volume da série Histórias da vida como ela é, trazendo 26 textos de Nelson Rodrigues, segunda coletânea dos episódios originalmente publicados de 1951 a 1961 no jornal A última hora. São episódios clássicos como O único beijo, no qual um canalha promete um beijo à mãe de uma namorada como condição para continuar o romance com a filha.

O casamento, a gravidez, o namoro, as relações passionais de uma maneira em geral são temas recorrentes em Nelson Rodrigues, que nos joga na cara os dilemas, a sordidez e a a hiprocisia da sociedade brasileira.

(© JC Online)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind