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 Dona Canô - Cem anos sem solidão

 

 

 

Foto: Cristian Cravo

Dona Canô, mãe de Caetano e Bethânia, faz cem anos
 

Renata Leão 

São oito da manhã de uma quinta-feira de agosto e dona Canô, como faz todos os dias, está concentrada em seu quarto. Assiste à missa de Nossa Senhora e nada tira seus pequenos olhos da direção da TV. Um oratório com santos que vão além da Bahia de todos eles e uma prateleira cheia de anjos de porcelana decoram o ambiente. Não se pode atrapalhar dona Canô na hora de sua sagrada cerimônia, tampouco seria educado.
Enquanto espero na sala, acompanho a movimentação de seu filho Rodrigo, 72, no telefone sem fio. “Sim, estou falando da Bahia, a encomenda é para cá.” Ele produz a festa de 100 anos de sua mãe, que acontece dia 16 de setembro.“Será um grande dia. Começa com uma missa, depois um café-da-manhã na praça e o caruru no hotel da cidade”, explica o tecelão, quarto filho de dona Canô – antes dele vieram Nicinha, Clara Maria e Maria Isabel; depois, Roberto José, Caetano Emanuel, Maria Bethânia e Irene. Oito ao todo. A primeira e a última, adotadas. Os outros, nascidos do ventre, em casa, de parto normal. “E sem parteira. Pari os seis sozinha, com a ajuda de minha mãe e de minha sogra”, revelaria mais tarde a matriarca.

Vestido, brincos e água-de-colônia


Na cozinha da casa, panelas bem velhinhas no fogão, daquelas que fazem comida da melhor qualidade. São manuseadas por Isaura, 69 anos, 50 deles com dona Canô, e Odília, 62, há 24 empregada da família. Me oferecem suco de cajá e café, enquanto preparam a moqueca de arraia do almoço. “Dona Canô mais Bethânia são umas jóias, sempre alegres, sem estresse”, conta Isaura. “A família toda é assim, tudo gente boa.”A casa, de portas abertas, é um entra-e-sai constante. Vizinhos e amigos que vêm para assuntar e ver o tempo passar são sempre bem-vindos.
Dona Canô mandou chamar. Na hora das fotos, faz questão de escolher o vestido e os brincos – “Quero os dourados, de anjos!” – que vai usar. Antes do primeiro clique, um detalhe fundamental: água-decolônia. “Mas das fracas, para não aperrear o bebê da repórter, que está grávida”, pede.
Devidamente fotografada, ela toma seu café e se acomoda na sala para falar das coisas felizes e tristes dos seus 100 anos de vida sem se exaltar. Mostra que, justamente por não se exaltar, chegou aonde chegou com tamanha saúde e bom humor. A conversa, permeada por causos e piadas, é interrompida várias vezes pelo movimento das visitas e pelo telefone que toca. Ela atende. “Vou querer três ônibus. O povo aqui de Santo Amaro quer ir para prestigiar”, diz, em conversa com a organizadora do prêmio que receberia no dia seguinte, a Comenda Maria Quitéria, a maior honraria que o governo baiano concede a alguém. “Por que a senhora é tão querida?”, pergunto. “Não sei, minha filha. O que eu fiz da vida? Criei meus filhos e cuidei da minha família.”Com vocês, a sabedoria e a simplicidade de dona Canô.

Tpm. Todo dia é esse movimento aqui na sua casa? Dona Canô. Sim. Tenho muitos amigos, nasci e me criei aqui. Mas essa bagunça é só até meio-dia. Depois encerro, vou almoçar e descansar. Senão, não agüento.

Como é sua rotina? Acordava cedo por causa dos meninos e até hoje, às 5h estou acordada. Fico deitada um bocadinho, aí me levanto pra fazer nada [risos]. Vejo a missa de Nossa Senhora até umas 9h, tomo meu café. Aí começa a aparecer visita de todo lado. Converso com todo mundo e, ao meio-dia, almoço. Depois cochilo. À tarde tomo banho, café, faço minhas orações e assisto TV.

A senhora é muito religiosa, né? Rezo todos os dias. Você já viu meus santos? Tenho muitas imagens, mas não rezo para cada uma. Agora, para Nossa Senhora da Purificação, minha mãe, rezo quase toda hora, pedindo por meus filhos.

Com esse movimento em sua casa dá pra ver que a senhora tem muitos filhos além dos seus. Ah, tenho. Faço o que posso pelo povo daqui.

E como a senhora virou essa pessoa tão influente, tão amada aqui na Bahia? Não sei. Sempre que recebo uma homenagem me pergunto: “Por que,meu Deus, o que foi que eu fiz?”. Muito disso acontece por causa de Bethânia e de Caetano. Se eles não existissem eu estava existindo? Não. Eles que levaram meu nome porque não negam que nasceram em Santo Amaro da Purificação.

E o que a senhora fez? Criei meus filhos e vivi cuidando da minha família.

As meninas da cozinha me contaram que foi a senhora quem ensinou tudo a elas. Verdade? Sim. Isaura trabalha aqui há 50 anos. Quando chegou, não sabia nada, eu que ensinei porque sempre soube cozinhar, minha mãe me ensinou desde menina.

Sua mãe não só te ensinou a cozinhar, mas criou a senhora e seus dois irmãos sozinha? Foi. Conheci meu pai já velho, perto de morrer. Quando ele ficou doente, mandou chamar e fui vê-lo em Salvador. Mas era pequena e tive medo, porque ele era muito barbudo. Logo depois morreu. Minha mãe morreu com 82 anos, aqui nesta casa.

E seus irmãos, ainda estão vivos? Tudo já morreu. Almir com 98 anos e Geni com 91.

Vocês foram educados num colégio de freiras? Na Sacramentinas, aqui em Santo Amaro. Tinha que aprender francês, tinha aula de piano com uma professora alemã, e também aula de costura. Escola rígida, tinha fardamento completo, hora de chegar, hora de sair. Nessa época a gente se educava.

A senhora ainda tem amigas dessa época? A vizinha aqui, que vai fazer 100 para o ano. Tem outra em Salvador com 99 anos. Marieta já morreu [diz, apontando para um retrato na parede], Cininha também. Muitas já morreram.

A senhora sente tristeza quando vê que a maioria das suas amigas já morreu? Não entendo em que sentido você fala dessa tristeza. Não sinto, não. É a vida. Zeca [seu marido], por exemplo, nunca pensou em velhice, não. Mesmo quando ficou doente, nunca se entregou.

 
Com quantos anos ele ficou doente? Teve um câncer com 73 anos. Levou dez se tratando e morreu com 83. Ficamos casados por 53 anos.

53 é tempo. E hoje é raríssimo um casal passar a vida junto. Por quê? Porque cada um quer ser de um jeito. Eu fiquei com o Zé tanto tempo porque era muito bom e porque eu me habituei a ser como ele e pronto. Vivemos todos esses anos muito bem.

Como é que namorava nessa época? Normal. Hoje o namoro é tão... tão rápido. Eu levei um ano e meio namorando. Depois a gente apressou o casamento porque Zé tinha que viajar pois foi transferido. O irmão mais velho dele preparou os papéis e a gente casou na igreja lá de baixo, de Nossa Senhora do Rosário. Eu tinha 23 anos e ele, 29.

E a senhora foi morar na casa da família dele? Sim, com 24 pessoas [risos].

Como fez para conviver com 24 pessoas? Morei lá durante anos sem o menor problema. Sabe, minha filha, quem quer viver procura viver. Foi o que me aconteceu. Eu queria viver com o meu marido, passando o que ele passava de bom e de ruim. Zeca não podia se afastar da família porque ele e a irmã sustentavam todo mundo. Até hoje o que resta da família de Zeca é amigo. Depois ele alugou um sobrado e a gente mudou.

Quando se mudaram, já tinham filhos? Ainda não.

Quem é a sua primeira filha? Clara Maria.

E depois de Clara?
Mabel, depois Rodrigo, Roberto, Caetano e Maria Bethânia.
E depois? É, peraí... Rodrigo, Roberto, Caetano, Maria Bethânia, Clara, Mabel, quem falta?

Irene? Irene é depois. Irene chegou depois, quando já estavam todos crescidos.

Nicinha? Nicinha é a mais velha de todos, tem 77 anos.

Nicinha é filha de criação? Sim, é adotiva.

Como é a história de Nicinha? Aconteceu que ela nasceu de um susto que a mãe dela tomou quando estava grávida. A parede da casa caiu e a menina nasceu com sete meses, pequetitica, uma coisinha de nada. Marininha, uma das sobrinhas de Zeca, trazia a criança pra casa, levava toda noite pra dormir, tornava a trazer de manhã. Ficamos apegados a ela. Ainda não tínhamos filhos. Foi Nicinha que levou nossas alianças no casamento. Hoje ela é a camareira de Bethânia.

E a mais nova, Irene, também é adotada? A Irene também é adotada. E foi uma coisa pior. A mãe dela morreu de parto, com tétano, sete dias depois de dar à luz. O pai, de uma família daqui de Santo Amaro, enlouqueceu, e a gente ficou com a criança.

No filme do Andrucha [Pedrinha de Aruanda, sobre Bethânia, que será lançado este mês], a senhora diz que gosta dos seus filhos porque simplesmente são bons filhos. Ah, minha filha, eles são filhos bons mesmo. A outra [Bethânia] já telefonou, telefona duas vezes por dia. Caetano, não. Não tem tempo, passa viajando e não é de telefone. Falei com ele esta semana, no seu aniversário [dia 07/o8]. Disse que mandei celebrar missa e ele ficou muito contente, disse: “Ah, minha mãe, que bom”. Ele não pôde vir porque estava no Peru. Bethânia é muito apegada à senhora? Muito. Apesar de morar longe, se eu disser que meu pé doeu, ela fica doida.
 
Nenhum dos seus outros filhos é artista. De onde surgiram os dons do Caetano e da Bethânia? Eu representei muito quando era moça. Muitas peças, tudo de Oduvaldo Vianna, o pai. Maria Stuart, a vida de Maria Stuart, o nascimento de Jesus. Fora os bailados, os reis, as cantorias de presépio. Baile pastoril a gente fazia todo ano.

E a senhora gostava? Oxe, a vida da gente era uma alegria! Todo mundo ficava unido pra fazer essas artes, não tinha briga, nada.

E, quando Bethânia começou a dizer que queria ser artista, o que a senhora falava? Dizia: “Minha filha, não queira não. Porque, quando começarem as exigências pra você repetir, você não vai gostar”. Ela cantava o dia inteiro, tudo o que ouvia. Caetano e ela. Caetano tinha uma facilidade incrível pra aprender as músicas.

A senhora que cantava pra eles? Cantava. Cantei tudo. Um dia, na televisão, na época dos festivais, perguntaram como é que ele sabia tanta música velha. “Minha mãe que me ensinou”, disse. Eles sentavam no meu colo, pequenininhos, e eu ficava cantando pra eles. É... foi uma vida boa.

Como foi a saída da Bethânia de Santo Amaro para o Rio? Aquela menina, a Nara Leão, adoeceu da garganta e alguém perguntou quem ela queria pra substituí-la. Ela mandou buscar Bethânia na Bahia. Aí [a atriz baiana] Nilda Spencer telefonou em casa pra fazer o convite e eu disse: “O que é isso? Bethânia tem 17 anos, não vai sair daqui, não vou deixar”. Zeca achou que era trote. Outro telefonema e Nilda diz: “Não é trote, não, é pra Maria Bethânia substituir Nara”. Eu digo: “Mas, Zeca, com que competência Bethânia pode substituir Nara?”. Nara era uma cantora famosa, de fato uma cantora boa. E minha filha ia pra lá, uma menina do interior. Zeca e eu não podíamos acompanhá-la. Aí Caetano, que já conhecia o Rio, disse: “Eu levo Bethânia, meu pai. Deixe comigo, não tem nada, não”. Aí, depois de um tempo nós fomos assistir [ao espetáculo Opinião, em 1965].

Foram até o Rio? Fomos, Rodrigo, Zeca e eu. Foi a primeira vez que saímos da Bahia e viajamos de ônibus. O show foi aquela coisa de loucura, quando ela entrou no palco o público se pôs a gritar – é assim até hoje. Foi assim que ela se foi. Nara Leão se lembrou que uma vez tinha ouvido uma menina em Salvador.

Como foi quando a senhora viu que ela tinha talento e que ia dar certo? Talento? Nunca pensei nisso, não. Achei que ela fazia com a maior naturalidade do mundo, não se esforçava pra fazer. Então vi que ela tinha o dom e uma voz que até hoje não teve igual.Até hoje tem tido muitas cantoras, mas nunca vi nenhuma cantar como a Bethânia. A voz grave que, no colégio, a impedia de participar do coral porque diziam que ela tinha voz feia, grossa.

Quais cantoras a senhora gosta de ouvir? Gosto de Alcione, ela tem uma capacidade muito grande de cantar. Gosto muito de Gal, que cresceu com Gil, Caetano e Bethânia, tem uma voz linda a Gal.

E Caetano, quando a senhora percebeu que seu filho era um artista? Caetano começou com essa coisa de tomar parte naqueles festivais. Em todos ele ganhava. Mas não esperava que ele fosse chegar ao que é, não. Aí é o dom dele também, a inteligência. Ele tinha uma facilidade grande de aprender música, de tocar piano. Menino de tudo, chegava da aula de piano e, o que aprendia lá, transformava em bolero e em samba aqui em casa. Até música clássica ele transformava em bolero.

Isso menino? Pequeno, meu Deus. Com 8 anos de idade. Todos os meus filhos começaram a aprender música pequenos, só quem não aprendeu foi Rodrigo e Mabel. Nicinha toca até hoje.

A senhora sofreu muito quando Caetano foi preso na época da ditadura e teve que se exilar em Londres? Ave-Maria, não gosto nem de lembrar. Foram dois anos e meio de sofrimento. Primeiro, os 55 dias que ele ficou preso noRio, sem eu poder visitar. Depois o tempo em Londres.

Como a senhora ficou sabendo que ele foi preso? Dona Vangri, sogra de Caetano,mãe de Dedé, telefonou no dia 31 de dezembro de 1968. A gente em casa, assim alegre, e ela dizendo que Caetano e Gil tinham sido presos. Depois soubemos que ele tinha cantado em palavras obscenas o hino nacional. Olha a cabeça de Caetano pra fazer uma coisa dessa... Veja, esse foi o crime que ele cometeu. E depois resolveram incriminá-lo por “Alegria, Alegria”, que ninguém se conformou. Aí ele foi para Londres e ficou compondo, fez muita amizade. Roberto Carlos foi visitar ele, outros cantores também, ele não se sentiu muito só.

E a senhora aqui no Brasil, com saudades dele... Aqui eu só fazia rezar. Também o que pude fazer pra ele voltar eu fiz. Teve uma cartomante que me disse: “Olha, dona Canô, ele está preso, mas vai voltar. E eu vou dizer uma coisa à senhora, grave bem: as televisões que foram contra Caetano vão tocar fogo. Então um dia soubemos que uma emissora grande tinha pegado fogo e outra menor também... [em 1969, houve incêndios em quatro emissoras: a Record, a Excelsior, a Globo e a Bandeirantes].

E Zeca, como ele lidava com Caetano exilado? Sofria. Um dia Chico Anysio telefonou dizendo que dava uma passagem pra Zeca ir ver Caetano em Londres. Ele disse: “Não vou, não posso ver meu filho exilado”. Aí mandou Rodrigo. Por isso gosto tanto de Chico Anysio. Caetano pediu que Rodrigo levasse tudo aqui de Santo Amaro, farinha, feijão... Depois que ele voltou, eu fazia os pacotes e mandava por correio. A mãe de Dedé mandava também.

Vocês são amigas até hoje? Muito, dona Vangri tem muita coisa comigo e eu com ela. O pai de Dedé era muito amigo de Zeca também.

A senhora disse, em uma entrevista na Folha de S.Paulo, que Caetano não sabe nada de mulher. Como é que é isso? Ah, ele teve uma mulher maravilhosa, Dedé. Agora Paulinha não posso dizer, não posso julgar. Não me meto nem nunca me meti na vida deles. Nem procurei saber o porquê da separação. Eles decidiram, não dei opinião, porque não podia fazer nada. E continuo assim. Ela vem aqui, eu trato ela muito bem. Hoje as pessoas com um mês de casado já estão se desentendendo. Não agüentam mais elas mesmas e começam a implicar com o outro. Eu não tive nada disso.

E como é que faz pra ser casada durante tanto tempo e ser feliz? A pessoa tem que se empenhar em conviver com o outro. Eu não acho que exista amor. Há compreensão e amizade. Aí, sim, perdura. A pessoa tem que se submeter e aceitar às vezes.

Qual seu segredo para chegar aos 100 anos assim, tão inteira, consciente e bem-humorada? Dentro do possível eu estou muito bem de saúde, mas infelizmente perdi o equilíbrio há dois anos, quando levei uma queda que tirou uma vértebra do lugar. Mas minha cabeça ainda está cheia de miolos. Aprendi a viver sem procurar sair dessa linha que fiz pra mim mesma. Viver é muito bom, mas saber viver é melhor ainda.

(© TPM)


Saudade de Casa


Cena de Pedrinha de Aruanda, filme sobre a vida de Maria Bethânia
 dirigido por Andrucha Waddington

Andrucha Waddington, que lança documentário sobre Maria Bethânia este mês, conta como foi adentrar a intimidade da família Veloso

Conheci Maria Bethânia na mesma varanda onde se dá a alma do documentário Pedrinha de Aruanda. Isto ocorreu há 15 anos, na casa de Dona Canô, matriarca da família. Sempre desejei trabalhar com Maria Bethânia e, passados 13 anos, ela me convidou para registrar seu aniversário de 60 anos, em Santo Amaro, na Bahia.

A partir deste momento, um universo extremamente particular se revelou à minha frente e Bethânia me guiou para um mergulho profundo em suas raízes. Quem assistir a Pedrinha de Aruanda se sentirá dentro daquela casa, convivendo com aquela família genuinamente brasileira.

A matriarca sempre usou a música como forma de educação e diálogo, o que foi essencial na formação de seus filhos. O documentário se transformou em uma homenagem a Dona Canô, com direito a uma seresta única com participação dela, Caetano, Bethânia e familiares. É um filme sobre a saudade de casa. O lançamento acontece em setembro, mês de seu centenário.

(© TPM)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


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