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Sertão de Ronaldo Correia de Brito transpõe fronteiras

22/09/2009

 

 

Fotos: JC Imagem / Divulgação
Ronaldo Correia de Brito
 
Vencedor do Prêmio São Paulo, o maior do País, na categoria Livro do Ano, Ronaldo Correia de Brito descontrói o épico sertanejo tradicional em Galileia

Schneider Carpeggiani

carpeggiani@gmail.com

Ronaldo Correia de Brito estava em São Paulo, há um ano, para lançar o romance Galileia na Balada Literária. Dividia a mesa de debates com o escritor gaúcho Altair Martins. Os dois foram apresentados ao público pelo organizador do evento, Marcelino Freire, como “os futuros ganhadores do Prêmio São Paulo de Literatura”. “Ele falou pela boca de um anjo (risos)”, brincou Ronaldo Correia de Brito, horas depois de ter vencido o Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria Livro do Ano, por Galiléia. Altair Martins ganhou como autor estreante com A parede no escuro. A cerimônia de entrega aconteceu no Museu da Língua Portuguesa.

O Prêmio São Paulo de Literatura ultrapassou o Portugal Telecom e é hoje o maior concedido no Brasil. São R$ 200 mil para cada uma das duas categorias. Ano passado, na primeira edição, os ganhadores foram O filho eterno, de Cristóvão Tezza (livro do ano), e A chave da casa, de Tatiana Salem Levy (autor estreante).

Mesmo em se tratando de autores tão distintos, as obras vencedoras guardam semelhanças: traumas familiares e a suspeita de que as entranhas do Brasil agora inspiram histórias que desmontam os clichês do regionalismo. E por falar em regionalismo e em desmonte, Ronaldo tem construído uma obra de demolição gradual da épica do Sertão. “Se você fala de regionalismo em termos de lugar, da linguagem, tudo bem. Mas se regionalismo tem a ver com a noção do Romance de 30, ah, isso não existe mais”. Para ele, a ideia de Sertão não aceita uso do singular, de clichês e das antigas teorias redutoras.

“O Sertão é um espaço geográfico que remete à memória de outros espaços como a Grécia, o deserto dos árabes e hebreus, a Península Ibérica moura e a Sicília, que possuem uma cultura marcadamente própria e longeva. O imaginário em torno do Sertão e do homem sertanejo serviu à produção de música, literatura, cinema, artes plásticas de boa e de má qualidade. Há diversos períodos nessa produção, com características próprias de linguagem. Há o sertão romântico, o realista, o naturalista, o mítico e por aí afora. O tema não se esgota, se transforma. É um perigo agarra-se ao ideário do que já não existe. Por exemplo, a Espanha ainda celebra a cultura andaluza, mas tem Almodóvar, Gaudí e Miró. No Brasil, felizmente, várias tendências artísticas caminham ao mesmo tempo”, aponta Ronaldo.

A excelente recepção do romance é o sintoma de um tempo, acredita Ronaldo, em que o sentimento de não pertencimento é corrosivo. Seus personagens abandonam o lar e tentam ensaiar o mito do retorno, quando já não é mais possível. Não há mais casa para onde voltar. Lançado no ano em que Vidas secas completou 70 anos, seria o romance de Ronaldo o atestado de que já não se pode mais falar de sertão, diante de todos os fetiches que vitimizaram a região?

“Pelo contrário. Ele é sobre novas possibilidades de falar do Sertão. É um olhar contemporâneo, com lentes diferentes daquelas por onde olharam os escritores que me antecederam. O Sertão para mim é a mera extensão das cidades, por mais que isso desagrade aos conservadores. Em 1997, num ensaio visionário sobre os meus contos, Alberto da Cunha Melo tinha chamado atenção para isso. Ele escreveu que as minhas personagens eram neuroticamente e complexamente urbanas. Alguém, depois dos versos proféticos de Fabião das Queimadas, precisava repetir que aquele sertão ‘já morreu, já se acabou e está fechada a questão’”.

“Temos de inventar linguagens novas, correr risco”, acredita Ronaldo, que voltará à demolição na sua próxima obra. Desta vez, um livro de contos – “Ele é terrível contra os homens, estou sendo ainda mais radical”. O autor tem outro romance em andamento, mas precisa de tempo para se livrar de Galileia, precisa se refugiar no universo fechado das histórias curtas, precisa de abrigo. “Galileia ainda está impregnado aqui dentro”, confessa o sertanejo Ronaldo.  

(© JC Online)

 


LEIA ENTREVISTA COM O AUTOR DE LIVRO DOS HOMENS E FACA

por Rafael Rodrigues

Você está em uma grande livraria prestigiando o lançamento do novo livro de um amigo. É uma manhã de sábado, e a movimentação de pessoas é grande. É necessário dizer que você é um leitor compulsivo e, se fosse possível, leria e compraria ao menos um livro por semana. Justamente por isso, você passeia pelas estantes da livraria em busca de um bom título por um preço justo. Lembrando que você tem uma lista de prioridades devidamente arquivada num arquivo de texto do seu computador e, de memória, procura alguns deles.

Metido a alternativo, só encontra dois livros da lista. Um deles está caro demais. O outro já está em suas mãos, pois só há um exemplar na estante e você não pode perdê-lo. Mas você não quer levar apenas um livro. Ao menos dois, até para poder parcelar no cartão de crédito.

E aí seus olhos se deparam com um de capa vermelha, título e nome do autor em letras pretas e brancas, respectivamente: Livro dos homens , de Ronaldo Correia de Brito. Você o retira da prateleira e percebe que se trata de mais uma belíssima edição da Cosac Naify (2005). Na contra-capa está escrito: "A justiça de Deus tarda, mas não falha. A dos homens tarda e falha. Com firmeza e coragem, ela podia ser apressada. O nome de Oliveira estava registrado no livro dos homens, na paróquia onde foi batizado. Honrasse o livro ou nunca mais voltasse para casa ".

Você se interessa em saber mais sobre o livro e parte para ler a orelha. "Posso afirmar sem erro que este é um dos livros mais importantes destes últimos anos ".

Quem afirma isso é Marco Lucchesi, de quem você já ouviu falar - e muito bem. Aliás, fica sabendo, também pela orelha do livro, que o autor tem outro volume de contos bastante elogiado. Trata-se de Faca , publicado em 2003 pela mesma editora. E então você resolve comprá-lo, não sem antes pedir a opinião do seu amigo escritor que está lançando um livro. Ele recomenda sem pestanejar.

O amigo em questão é Mayrant Gallo, escritor baiano que, na ocasião, lançava seu livro de contos Dizer adeus , pela Edições K. Gallo tem publicado O inédito de Kafka , também de contos, pela Cosac Naify, além de outros livros de contos e poesias.

Dois meses depois, você inicia a leitura de Livro dos homens. Gosta muito dos contos, que são lidos rapidamente. O quarto conto, em especial, ficará marcado em sua memória. "Brincar com veneno", que é, na sua opinião, o melhor conto que já leu.

Você termina de ler o livro. Está surpreso e contente por ler uma obra tão boa. Por ser um aspirante a escritor e colaborar com alguns sites literários, pensa em fazer uma resenha sobre Livro dos homens e entrevistar seu autor, para publicar em algum deles. É possível que consiga.

Chove na maioria dos contos de Livro dos homens . E neles alguém morre ou está prestes a. Mas não é ela - a morte - o assunto principal dos contos de Ronaldo Correia de Brito. O assunto principal, dois, na verdade, são os homens e suas histórias. É o corpo de um homem (morto) encontrado às margens do rio Jaguaribe e que faz a população de uma cidade inventar para ele uma vida heróica, atribuindo-lhe até a realização de milagres; é a espera de dona Eufrásia Mendes pelo marido que se encontra resolvendo pendências com "o que veio de longe"; Maria Antônia que parte em busca de sua avó, a pedido de seu pai recém-falecido e acaba resultando na doença seguida de morte ou recuperação milagrosa do marido, o leitor decide.

Todos os contos têm a mesma qualidade: excelentes. Podem dizer que a literatura de Ronaldo Correia de Brito é regional, mas não é. Muito pelo contrário. Sua literatura é universal. Suas histórias podem acontecer em qualquer lugar, com qualquer um.

"Brincar com veneno" merece uma menção honrosa, mas não resumirei sua história. Digo apenas que é um conto belíssimo, de qualidade ímpar. Merece ser lido e relido, sempre, como todos os outros contos de Livro dos homens.

*

ENTREVISTA COM RONALDO CORREIA DE BRITO

Rafael Rodrigues: Vamos lhe apresentar para quem ainda não o conhece. Conte-nos um pouco de sua história, onde nasceu, onde mora hoje, o que faz da vida.
Ronaldo Correia de Brito:
Eu nasci numa fazenda por nome Lajedos, no município de Saboeiro, no sertão dos Inhamuns, no Ceará. Com cinco anos, fui morar no Crato, no Cariri cearense. É uma extensa região de mata atlântica, com muitas nascentes d'água, e a Chapada do Araripe circundando o vale. Um milagre verde no meio do sertão. Aos 17 anos, mudei-me para Recife.

RR: Qual a sua formação acadêmica?
RCB:
Formei-me em medicina, pela Universidade Federal de Pernambuco, profissão que exerço até hoje. Fiz especialização em clínica médica e formação psicanalítica.
 

RR: Quando se deu seu interesse por literatura?
RCB
: Sempre gostei dos livros. No sertão existiam poucos. Eles eram tão importantes, que um parente deixou 180 livros que foram inventariados como as terras, os bois, os dinheiros da família. Minha mãe era professora e levou junto com ela um exemplar da História Sagrada , com textos seletos do Antigo e Novo Testamentos. Aprendi a ler nesse livro, e creio que nunca me livrei de sua influência. Você leu "Brincar com Veneno", do Livro dos Homens , e sabe como a trama gira em torno dos livros e de um rádio, outra marca importante na minha vida, além do cinema.

RR: E quais autores o "fisgaram" para o mundo da literatura?
RCB
: Eu li muita porcaria, além de excelente literatura. Acho que a literatura ruim me marcou muito. Eu gosto de sujar o que escrevo. Bem cedo, li toda a obra de Machado de Assis e José de Alencar. Emendei com os russos, que são insuperáveis. Também li muito cedo o teatro de Shakespeare, de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Quando vim morar em Recife, estavam na moda os escritores latino-americanos. Passei a lê-los com devoção. Era bem ao gosto da esquerda da época ler Onetti, Astúrias, Bioy Casares, Rulfo, Cotázar, Neruda, Paz, Carpentier, Garcia Márquez, Sabato, e o meu escritor predileto em todos os tempos, Jorge Luis Borges. Gastei os olhos lendo. De uns anos para cá, libertei-me dos modismos literários. Também eles diminuíram. A moda é dos best-sellers .

RR: Depois de ler e se maravilhar, você começou a escrever e inventar, certo? Começou logo com contos? Tentou um romance? Ou os tradicionais versos? Dizem que todo escritor perde a virgindade com eles.
RCB
: Nunca escrevi poesia, nem mesmo quando estava apaixonado. Fiz letras para os meus textos teatrais, que foram musicadas por Antonio Madureira, conhecido pelo seu trabalho com o Quinteto Armorial, e umas poucas por Antonio Nóbrega. Eu sempre escrevi contos e teatro. Esbocei um romance, que agora decidi levar a sério. Produzi bastante literatura para criança, que foi bem sucedida. Escrevo crônicas para a revista Continente , ensaios e outros inventos.

RR: Você tem dois livros de contos publicados. Faca , de 2003 e   Livro dos homens , de 2005. Existe outro anterior a esses? Se não, por que a publicação tardia?
RCB
: Tenho três, na verdade, porque em 2004 editei uma novela infanto-juvenil, O Pavão Misterioso (Cosac Naify). Também editei, nesta mesma época, três textos teatrais escritos para criança, com a editora Objetiva: Baile do Menino Deus , Bandeira de São João e Arlequim . São seis livros em dois anos. Um despropósito. A minha produção literária é lenta e pouca, porque escrevo devagar, reescrevo obsessivamente. Sempre que me falavam em publicação, dizia como o Bartleby de Melville: "Acho melhor não". Fico impressionado como o meu amigo Raimundo Carrero escreve muito. O primeiro romance dele ficou pronto em trinta horas. Nesse tempo, eu produzo meia página. Toquei a medicina e a literatura juntas, desde os vinte anos, uma roubando tempo da outra. Em Livro dos Homens , o conto Eufrásia Meneses, um libelo feminista, perdeu força política porque só foi editado trinta e três anos depois de escrito. O feminismo caiu de moda, e eu já estou mais preocupado em escrever sobre a perplexidade masculina. Existem livros demais, autores demais. Sinto pudor em ser mais um. As bienais de livro me enfastiam, parecem babéis.

RR: Agora você vai nos revelar seu segredo. A velha história do processo de escrita. Como é o seu?
RCB
: Sou concentrado e escrevo no meio da zorra. Meus filhos jogavam bola, ela batia em mim, e eu ali, dedilhando. Não há mistérios, apenas suadeira. Escrever é trabalhoso. Existem coisas mais agradáveis de fazer, menos cansativas. Escrever é uma espécie de maldição, um jeito custoso de escamotear a morte. Um ofício de Sherazade, como escreveu Michel Foucault a respeito das Mil e Uma Noites : é o avesso encarniçado do assassínio, é o esforço de noite após noite para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência. Mesmo quando a literatura trata essencialmente da morte.

RR: Tem preferência por algum conto seu? Quando li "Brincar com veneno" que está em Livro dos Homens , tive vontade de parar de escrever. Vou puxar seu saco e dizer que ele é praticamente perfeito.
RCB
: Você cita o exemplo de um conto muito trabalhoso, elaborado, rico de pequenas minúcias. Talvez eu goste do conto "Faca", do livro de mesmo nome. É um conto difícil de escrever e de ler, porque numa única frase o tempo verbal sofre variações. Ele será filmado, juntamente com "O que veio de longe", por Luiz Fernando Carvalho. Estou desejando ver no que vai dar.

RR: Qual sua opinião sobre a literatura feita na Internet? Você costuma acessar blogs ? Se sim, tem visto literatura de valor?
RCB
: Tudo são lavouras. Lavra-se como a terra deixa e com os instrumentos que estão à mão. Vi sim, literatura de muito valor em sites e blogs . Elas não representam a morte do livro. São formatos, invólucros, embalagens diferentes. O que é bom está além do embrulho, mesmo num mundo que valoriza muito a embalagem.

RR: Pra finalizar, a pergunta clássica: o que você recomenda a novos escritores? Vez em quando aparece alguém dizendo que os novos escritores deveriam só escrever, e nada publicar. Fazendo isso só depois muito trabalhar os textos. Diga-nos, Ronaldo, o que fazer?
RCB
: Rapaz, você fez a pergunta à pessoa errada. Eu publiquei a sério só depois de passar trinta anos engavetando os meus escritos. Meus textos teatrais foram bem encenados, é verdade. E também tive umas edições modestas, há uns nove anos. Sei não! Cada pessoa tem seus critérios de avaliação, se está no ponto ou ainda verde. Mas posso lhe dizer o seguinte: escreva, escreva muito, e dê polimento, esmerilhe, e leia, e não considere nunca que está fazendo literatura, nem deseje fazer literatura. Repito: escreva bastante, todos os dias, em todas as horas livres, reescreva, rasgue, jogue fora o que não presta. Não tenha pena. Jogue fora muita coisa. Se você possuir o duende, esse diabinho que corrói a alma dos que escrevem, sua lavra produzirá boa lavoura.
 

(© Cosac Naify)


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