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13/08/2001

O professor xangô baixa de novo por aqui

O livro "O Candoblé da Bahia" do francês Roger Bastide, originalmente de 1958, é reeditado pela Cia. das Letras

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS

   Talqualmente no auto bumba-meu-boi, medra ressurreição no candomblé, de modo que o grande cientista estudioso do candomblé, Roger Bastide, vai cada dia se libertando da sua própria morte ocorrida em 1974 na França. A reedição deste livro, originalmente publicado em 1958, é a prova de que o professor xangô está vivo. Saravando por aí.

   Sem querer tocar no fogaréu das vaidades bonecais, eu diria que, em termos de autognose do Brasil e seu povo, Roger Bastide é, disparado, na sociologia e antropologia, a melhor cabeça que já lecionou na USP. Ele dá, em estilo e pensamento, de mil a zero em Lévi-Strauss e em todos os outros.

   Um intelectual francês do primeiro time influenciado pelo surrealismo, pela psicanálise e pelo marxismo que veio para o Brasil em 1938 durante o Estado Novo getuliano e aqui transviveu a África numa "revolução psíquica" única, como bem registrou Florestan Fernandes, tornando-se aqui um filho de santo, tendo a ousadia desbundada de mexer e questionar, em função dos trópicos úmidos, o aparato conceitual das ciências humanas.

   O fato é que ele não ficou mentalmente confinado à tríade de Durkheim, Weber e Marx. É por isso que em seu belíssimo estudo sobre o candomblé defende a tese de que é aspecto místico que determina o social, e não o contrário.

   O lúcido e malucão Roger Bastide viu no candomblé, miniatura mística da África cravada no recôncavo da Bahia, a realidade material como reflexo da esfera mística. E mais: torna-se impossível a apreensão do que aí seja sociológico sem a presença do religioso.

   O inegável mérito de Bastide, dialogando com o médico Nina Rodrigues, o pai da psiquiatria brasileira, foi despatologizar o transe e a possessão como fenômenos histéricos. Mas o professor xangô não generalizou o candomblé como realidade sociomística para todo o Brasil, abriu as portas para a abordagem estética e polissêmica do transe.

   Os filósofos profissionais ficam horrorizados com a formulação bastidiana de que há filosofia no candomblé. Talvez decorra da expressiva linguagem do candomblé e da sua comida, o motivo pelo qual Roger Bastide conseguiu a proeza, sendo francês vocacionado portanto ao colonialismo ou à função de missionário, de descolonizar-se psiquicamente mais do que seus coleguinhas brasileiros.

   O mestre deixou mais discípulas mulheres do que discípulos homens, como é o caso das ilustres professoras Maria Isaura Pereira de Queiróz e Gilda Mello e Souza. Ele escreveu 17 livros sobre o Brasil e deu importância decisiva à oralidade. A conversa aparece como fonte de inteligência popular. Para o negro brasileiro, a palavra falada é técnica de expressão e pensamento.

   Em sua travessia da descolonização psíquica, Roger Bastide se empenhou em conceder ao transe uma dimensão positiva, podendo ser a vitamina dos fracos e dos espoliados, e não apenas o ópio da patuléia assim como ele não demonizou Exu.

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