Notícias
Imagens da morte

17/12/2002

 O pesquisador Titus Riedl reuniu fotos de defuntos feitas em velórios e enterros para o livro Últimas Lembranças

O pesquisador Titus Riedl, da Universidade Regional do Cariri, foi buscar nos registros do memento mori, retratos de defuntos em velórios e enterros, um hábito aparentemente estranho mas bastante comum no interior do Estado

Alexandre Barbalho
Articulista do Vida & Arte

   Compor álbuns fotográficos com imagens que remetem a momentos prazerosos é uma prática generalizada na sociedade contemporânea, independente de seu estrato social. Mas o que dizer quando, ao folhear as páginas de um álbum, nos deparamos com a foto de um morto? A presença de uma imagem assim pode até provocar um estranhamento, um deslocamento, mas ela não é tão inusitada assim. Em vários núcleos familiares (e não só nas comunidades rurais e pequenas cidades) é possível encontrar tais registros do memento mori, retratos de defuntos em seu velório e/ou no sepultamento.

   Procurando compreender os usos desta prática, Titus Riedl, professor de história da Universidade Regional do Cariri, pesquisou as imagens da morte inseridas no sertão caririense. O resultado de sua pesquisa encontra-se no livro Últimas lembranças. Retratos da morte, no Cariri, região do Nordeste brasileiro (Secult/ Annablume, 2002).

   A proposta de Riedl não é fazer uma antropologia da morte, mas uma pesquisa sobre o olhar. Como afirmou, as biografias de pessoas anônimas não são escritas, mas registradas e podem ser lidas na seqüência de fotos em um álbum ou de imagens de gravações domésticas (o que faz o pesquisador analisar o álbum organizado pela senhora Maria Elcídia Queiroz Sá sobre o seu falecido marido). Mas não é só a esfera do privado que se apresenta: as fotografias funcionam como elementos importantes na construção de identidades públicas e como instrumentos de sociabilidade.

   No caso específico dos retratos de mortos, eles desempenham o papel ''de harmonização e de reestabelecimento de um equilíbrio social enfraquecido e do amortecimento de um choque, causado pela perda'', segundo Riedl. A foto do memento mori é, assim, ''um ato de reconciliação com o destino e a tentativa de re-consolidação do convívio social''.

   Sua opção metodológica, por sua vez, não é a da análise semiótica, onde as imagens se bastam em sua referencialidade. Riedl prefere seguir o caminho de Bourdieu em Un art moyen (um trabalho sobre os usos sociais da fotografia, infelizmente ainda não traduzido para português) e procura observar a fotografia em um contexto social específico, a partir de como é compreendida pelos protagonistas, os fotógrafos e os proprietários dos retratos. Nesse sentido, atua como um verdadeiro antropólogo. O que inclusive marca a sua escritura: o saboroso tom de diário de campo, de descrição etnográfica, acompanha toda a leitura do livro.

   Riedl discute a religiosidade no Cariri, com destaque para a presença de Padre Cícero, e o lugar privilegiado do imaginário da morte neste universo. ''Provavelmente, há poucas regiões no Brasil em que se encontra hoje uma riqueza diversificada em relação à devoção aos mortos, como no Cariri e especificamente em Juazeiro do Norte'', explica.

   Os retratos dos mortos e as informações sobre eles vêm de vários ambientes. Nos mausoléus e túmulos do cemitério do Socorro em Juazeiro, a presença deste tipo de retrato indica sua utilização entre as classes mais abastadas da cidade, e não apenas pelos mais humildes, como poderia supor o senso comum. Nas casas de ex-votos, imagens de mortos podem significar o agradecimento pela morte tranqüila - a boa morte - de um parente.

   Nos ateliês de foto-retrato pintado, o trabalho do artista pode ser o de dar vida a um morto na fotografia ou incluir no retrato um personagem ausente no momento em que foi tirado. Os fotógrafos lambe-lambe também possibilitavam fazer presente na foto do morto algumas pessoas queridas ausentes através da sobreposição de imagens. Riedl também se valeu das conversas com dona Telma Saraiva e seu Edílson, proprietários do estúdio Saraiva na cidade do Crato, o mais tradicional da região, e do álbum da sra. Maria Elcídia.

   Com este rico material em mãos, Riedl constrói sua narrativa densa sobre a prática de fotografar os mortos no Cariri. Ao final, mais do que conclusões ou nexos causais, seu trabalho aponta a complexidade de razões para este uso da fotografia, muito além de quaisquer pre-conceitos. E amplia nosso olhar sobre as imagens da morte.

(© NoOlhar.com.br)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind


Google
Web Nordesteweb