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03/09/2001

Marcas feitas em gado viram alfabeto digitalizado

   Marcar a ferro quente no corpo do boi um signo de seu dono é uma prática de mais de 4.000 anos e de quase 500 no Brasil. Interessado nas raízes da cultura nordestina, o escritor Ariano Suassuna estudou a fundo as marcas de ferro do sertão do Cariri, a sua região de origem. A pesquisa identificou formas recorrentes em antigas marcas e é a base de um alfabeto tipográfico que está sendo finalizado por dois designers pernambucanos.

   A "tipografia armorial", como foi batizada, já está sendo usada no programa semanal O Canto de Ariano, exibido pela Rede Globo Nordeste e pelo Multishow Brasil, e deve ser empregada no próximo romance do escritor. O alfabeto deve ser comercializado pela Internet, fazendo, assim, um caminho curioso: graças à tecnologia dos chips, essas formas arcaicas e singulares estão migrando do sertão do Cariri (que abrange parte dos estados da Paraíba, Ceará e Pernambuco) para a World Wide Web, podendo ser incorporadas a qualquer computador em qualquer lugar do mundo.

   Precursoras dos modernos logotipos com que as corporações se identificam junto ao público, as marcas queimadas sobre o couro do gado são o mais primitivo sinal de propriedade e há muito mexem com o imaginário dos artistas. Há registros de ferros em gravuras do Egito antigo e em versos dos poetas grego Anaximandro e romano Virgílio. Quem conta é o advogado cearense Virgílio Maia, que escreveu em 1992 o Álbum de Iniciação à Heráldica de Marcas de Ferrar Gado (Editora Biblioteca O Curumim Sem Nome), esgotado. Maia reproduz, entre outras, cenas de João Bafo de Onça e Tio Patinhas em ferra de gado nos gibis de Walt Disney e charges do pernambucano Péricles nas páginas da revista O Cruzeiro. Mostra que em sua novela Fazenda Modelo Chico Buarque de Holanda dá voz às queixas de uma vaca em relação aos maus tratos das sucessivas ferras que sofria, a ponto de ter seu couro inteirinho marcado. E reproduz os versos do paraibano Geraldo Vandré em Disparada: 'porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente...'

   Será que é mesmo diferente? Marcar a ferro escravos e criminosos não foi prática restrita apenas aos antigos romanos, gregos e egípcios. Mesmo no Brasil ela ocorreu. Alguns ferros usados em escravos, segundo Maia, estão no Museu do Ceará. 'Tá ferrado', expressão da gíria que remete a essa prática, pode se tornar uma realidade também para os homens livres, na fantasia recorrente de alguns artistas, que imaginam uma vingança dos animais. Na nova versão do filme 'Planeta dos Macacos', são os símios que ferram os humanos com uma marca na forma de tridente. Segundo Virgílio Maia, a prática de ferrar gado chegou ao Brasil via Península Ibérica. Os primeiros gados foram desembarcados em São Vicente em 1534, 'importados' por Ana Pimentel, mulher de Martin Afonso de Sousa. O historiador gaúcho Raul Pont mostra em seu livro 'Campos Realengos' as primeiras marcas registradas no Rio Grande do Sul, ainda no século XVI. Em 'Kadiwéu', o antropólogo Darcy Ribeiro reproduz os desenhos dos ferros com que esses índios do Mato Grosso marcavam seu gado. Ele observou que algumas de suas marcas antigas 'foram simplificadas (ou substituídas por letras), para ocupar menos espaço, preservando o valor comercial do couro, mas ainda conservam seu estilo geométrico de linhas puras'.

   De início, as marcas eram feitas em grandes festas, 'atraindo cantadores, valentões, os melhores vaqueiros para alguns dias de vida intensa e fraternal', na descrição do folclorista Luís da Câmara Cascudo. Quem presenciou uma cena dessas diz que não se esquece jamais do movimento dos vaqueiros e do cheiro do couro queimado. Indelével não é só a marca, mas também a memória visual e olfativa de quem a assistiu.

   Foi o que aconteceu com o escritor Ariano Suassuna. Ele conta que sua ligação com os ferros sertanejos de marcar gado começou a se sedimentar em seu subconsciente 'desde muito menino, como, aliás, sucedeu comigo em tudo o que se relaciona com a civilização do couro'. O dramaturgo diz que não considera a ferra de gado 'tão dramática e cruel como parece à primeira vista', por atingir apenas a superfície do couro do animal. É uma cena, de resto, incorporada ao cotidiano das fazendas, afirma.

   Em seu livro Ferros do Cariri — Uma Heráldica Sertaneja (1974, Editora Guariba, esgotado), Ariano conta que sua curiosidade intelectual pelo tema despertou ao ler em 1943 um livro do cearense Gustavo Barroso, em que ele analisava as marcas familiares e as diferenças acrescentadas por cada descendente como elementos de uma verdadeira heráldica. Ao interesse antropológico e sociológico das marcas, aos poucos Ariano passou a vê-las como 'assunto artístico'.

   A partir de um registro de vários ferros familiares feitos por seu antepassado Paulino Villar, fazendeiro do século XIX, Ariano estudou a fundo as formas que encontrou e as relacionou com a simbologia antiga. Segundo ele, o traço vertical, chamado tronco, representa o céu; o horizontal, ou puxete, significa terra. Os dois juntos podem formar o galho, a união imperfeita entre o divino e o ser humano. Ou ainda a cruz, a união perfeita entre ambos. Há signos para o macho, a fêmea e para a fusão sexual.

   O escritor viu semelhanças entre 'as formas meio hieroglíficas dos ferros sertanejos mais abstratos' com alguns dos signos ligados à astrologia, ao zodíaco e à alquimia, e acha que alguns dos primeiros fazendeiros podem ter escolhido para seus ferros os símbolos astrológicos de seus signos e planetas pessoais. Os desenhos dos ferros familiares vão se alterando no decorrer das gerações. Cada filho que começa a criar gado vai acrescentando sobre a base imutável do ferro familiar, chamada mesa, as suas diferenças, chamadas divisas, que podem ser um risco para um dos lados, uma meia lua, um pé de galinha, etc. Em geral, o filho mais novo fica com a marca igual à do pai quando este morre. O pai de Ariano, último filho, tinha o mesmo ferro de seu avô e de seu bisavô. O escritor guarda como 'objetos sagrados' os ferros com os quais seu pai marcava pessoalmente seu gado nas fazendas Acauhan e Malhada da Onça.

   Com base na observação detalhada dos ferros do Cariri, Ariano Suassuna criou à mão um alfabeto. E foi sobre ele que os designers Giovana Caldas e Ricardo Gouveia de Melo trabalharam para criar a fonte digital. Ambos tomaram conhecimento da tipografia armorial na segunda metade da década de 90, quando prestavam serviços para a Secretaria de Cultura de Pernambuco, então ocupada por Ariano, através de seu escritório Id. Comunicação Visual.

   De posse dos contornos das letras criados pelo escritor, os designers os digitalizaram e começaram um minucioso trabalho. Estudaram o espaçamento ideal entre as letras, a padronização de seus elementos, estabeleceram a relação entre letras maiúsculas e minúsculas, definiram as capitulares, pesquisaram a legibilidade de diferentes alternativas. A tarefa envolveu não só um conhecimento técnico de tipografia, mas também uma intervenção criativa. No entanto, desde o início estavam conscientes de que deveriam fazer mais ordenação do que uma recriação.

   Ricardo procura distanciar o seu trabalho dos 'regionalismos pitorescos, caricatos e estereotipados'. O que o entusiasma é a possibilidade de estar inserindo algo balizado por uma realidade local num contexto muito maior, internacional, das artes gráficas, que têm sido pautado por uma certa padronização do estica-e-puxa permitido pelo computador.

   'É como se fincássemos uma bandeira neste universo tecnológico', diz o designer, defendendo a 'sistemática de olhar texturas, formas, cores da região em que vivemos' como um caminho — não o único — de projeto. 'Para criar devemos ser menos óbvios, sair da previsibilidade', defende, interessado em buscar uma comunicação visual 'consistente e diferenciada por um lastro cultural'. Ricardo e Giovana acham que a matriz que eles usaram pode sugerir outras leituras, que pretendem ainda explorar.

   E eles não estão sozinhos nessa intenção. Se a prática da ferra ainda persiste em lugares onde se cria o gado solto no pasto — no Brasil, especialmente no Nordeste e no Rio Grande do Sul — cada vez há mais gente interessada em partir dessas referências visuais para fazer criações contemporâneas. A marca do artista pernambucano Francisco Brennand é um tipo de brasão de ferro.

   O etnógrafo gaúcho Raul Pont reproduz em seu papel de carta marcas registradas em seu Estado. O cearense Virgílio Maia usa a marca de ferra que era de seu trisavô vaqueiro como um timbre aplicado em suas cartas e textos. Sua esposa, a artista plástica Socorro Torquato, conhecida como Côca, imprime as insígnias dos ferros em louças que vem criando.

   Em seu livro, Virgílio Maia faz um levantamento extensivo de marcas de ferro associadas a localidades cearenses, que ocupa mais de cem páginas. Foi ali que o escultor pernambucano Marcelo Silveira tirou os signos que cavou nas esculturas em madeira que acaba de apresentar na Galeria Amparo 60, em Recife. Esse levantamento pode ser a fonte, ainda, para outros usos. O próprio Maia apresenta em seu livro recriações das marcas, como o logotipo do carvão vegetal Safari, o mais usado nos churrascos no Ceará, que usa o ferro antigo de Francisco das Chagas Pinto, do município de Hidrolândia. Prática ancestral e rudimentar, a marca de ferro de certa forma é recriada também nas tatuagens dos jovens das grandes cidades. Muitos deles estampam na pele o nome de seu namorado(a), ou 'proprietário(a)' . Se as relações amorosas ou as convicções hoje costumam ser fugazes, pelo menos na pele elas sobrevivem. Adélia Borges - InvestNews/ Gazeta Mercantil  (Terra/Diversão)


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