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22/10/2000

Os poemas "nascidos" da criatividade de Ferreira Gullar

   No último 10 de setembro o poeta Ferreira Gullar completou 70 anos, e a editora José Olympio comemora a data dando à luz um volume ampliado de seu Toda Poesia, desde os primeiros poemas, em A Luta Corporal, até o recente Muitas Vozes, incluindo ainda um CD com alguns poemas de Gullar em sua própria voz, gravado originalmente em 1979, ao som de Egberto Gismonti e Mauro Senise.

   O conjunto da obra de Gullar, como se apresenta em Toda Poesia, revela um poeta que atravessou grande parte das tendências literárias que circularam pelo Brasil durante a segunda metade do século 20, indo de um início circunscrito a formas poéticas "medidas", passando tanto por poemas em prosa quanto pela literatura de cordel, até alcançar a voz atual de sua poesia, esta que parece ser a voz que Gullar sempre procurou, mesmo por trás das experiências mais diversas da concentração e da concisão que pratica hoje, tendo-a encontrado, provavelmente, a partir de meados dos anos 70.

   Gullar declara, em depoimento constante do disco, que aquilo que mais lhe incomodou no contato com a poesia sempre foi a distância entre esta e a realidade. Talvez por isso, na tentativa de aproximação máxima, a poesia de Gullar muitas vezes tenha colidido com a dimensão dos fatos que tentava encarnar, ora alcançando pontos altos como os de "Poema Brasileiro" ("No Piauí de cada 100 crianças que nascem/ 78 morrem antes de completar 8 anos de idade..."), ora permitindo que de seus poemas vazasse, por entre uma busca obcecada do "popular", o som inconformado de uma linguagem acostumada a outros propósitos, como a marca estranhamente técnica de versos como "É generoso e valente,/ não teme a fúria fascista./ À barbárie do inimigo/ opõe o amor humanista" inseridos num de seus Romances de cordel.

   A realidade de Gullar, de início, é a do jovem poeta maranhense que chega ao Rio de Janeiro no momento em que a poesia caminhava - ainda que predominantemente em São Paulo - para o surgimento do concretismo, movimento cuja eclosão marcaria, para a historiografia literária, a geração da qual Gullar faz parte, ainda que dele tenha se afastado logo em seguida, como outros poetas que em algum momento flertaram com as idéias inaugurais do grupo paulista, de que temos exemplo em José Paulo Paes. E a atividade poética de Gullar - aqui entendida como um conjunto que, além dos poemas, constitui-se também de seus ensaios, depoimentos e outras manifestações - pode ser vista, quase que integralmente, como uma tomada de partido com relação às discussões que envolviam aquele momento de renovação da poesia brasileira.

   Não que isso limite sua análise apenas aos parâmetros oferecidos por aquele momento histórico, nem o rebaixe a um posto menor em relação a poetas que impuseram suas vozes à variedade de tendências que atravessaram durante a vida. Sem dúvida - pode-se ler em Toda Poesia - Gullar é autor de uma das mais importantes obras da literatura brasileira, e não será colocado em condição inferior sequer no confronto com o que de melhor se produziu no mundo de língua portuguesa em seu momento.

   Sua poesia sofreu, como não poderia deixar de ser, alterações formais e conceituais que podem confundir à primeira leitura quem venha do contato, por exemplo, com a obra - formal e conceitualmente à beira da homogeneidade - de um João Cabral de Melo Neto, apenas dez anos mais velho que Gullar, mas certamente filiando-se de maneira mais direta ao que oferecia a geração precedente, a modernista, motivo pelo qual receberia a vanguarda dos anos 50 como algo posterior, que não surtiria efeitos diretos em seu modo de fazer poemas. Em Gullar, contrariamente, talvez pelo que seus livros revelam daquela tentativa de aproximação com a realidade, a poesia não poderia deixar de desmantelar-se para tantos lados quantos fossem indicados por seu engajamento de "homem comum", para quem "Meu povo e meu poema crescem juntos".

   Justificada, portanto, a destacada presença nesse Toda Poesia de poemas que denotam a inflexão formal ora ditada por fatos históricos (o tom marcante do "Poema Sujo" é um esclarecedor exemplo), ora por fatos literários (como nos poemas da fase concretista: "mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul"). Num dos "concretos/neoconcretos" apresentados pelo volume, lê-se um Gullar altamente dedicado a uma nova cadência para sua poesia: "o cão vê a flor/ a flor é vermelha // anda para a flor/ a flor é vermelha // passa pela flor a flor é vermelha." O ritmo repetitivo, que lhe permite suprimir, por elipses, palavras que seriam desnecessárias, garante ao poema as características contundentes que o poeta não esconde buscar, e que alcança: é a "flor" mudando de função sintática, de linha a linha, porém neutralizando tal mudança, no plano visual, ao passo que mantém a perplexidade de uma cena de certeira insinuação cinematográfica.

   Nesse Gullar, poeta de timbre próprio e livre, cujas mudanças não suplantam as particularidades de seu estilo, Mario Faustino viu, já na década de 50, um evento: "Ao Rio chega, vindo de São Luís do Maranhão, com um ótimo livro debaixo do braço, um outro rapaz em condições semelhantes. Traz consigo assimilado o que há de melhor nas tradições poéticas de França, Portugal, Brasil." E todos sabem o que Faustino chamava de "melhor": a linhagem mais evolutiva e avançada dessas tradições, que faziam de Gullar, para a ótica do crítico de Poesia-experiência, um dos nomes promissores de renovação num cenário que considerava um tanto acanhado após o modernismo. Para essa renovação, Gullar trazia o diferencial de um repertório consciente dos problemas de sua contemporaneidade, mas a visibilidade que lhe permitiria influenciar com suas idéias, o autor de Toda Poesia encontrou tão-somente quando chegou ao Rio de Janeiro.

   Daí em diante Gullar transitaria da vanguarda para a atuação mais política que cultural do período em que integrou o Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes - CPC-UNE -, envolvimento que o obrigaria, na década de 70, inclusive a exilar-se junto às centenas que o golpe ditatorial expulsou do país. Se o homem Gullar é obrigado a sucumbir no exílio, sua poesia, por outro lado, resplandece. No "Poema Sujo", por exemplo, escrito em Buenos Aires à época, Gullar explora uma aceleração de imagens sem precedente no que constituía sua obra até então: "E como nenhum rio apodrece/ do mesmo modo que outro rio/ assim o rio Anil/ apodrecia a seu modo/ naquela parte da ilha de São Luís./ Mesmo porque/ para que outro rio/ pudesse apodrecer como ele/ era preciso que viesse/ por esse mesmo caminho/ passasse no Matadouro/ e misturasse seu cheiro de rio ao cheiro/ de carniça/ e tivesse permanentemente a sobrevoá-lo/ uma nuvem de urubus/ como acontece com o Anil antes/ de dobrar à esquerda/ para perder-se no mar", e assim por diante num ritmo que sufoca o leitor.

   Passada essa fase veloz, em que o poeta inventa, para a sua voz, uma maneira inusitada de ser "panfletário", já a partir da década de 80 a poesia de Gullar começa a discutir-se, a discutir seus principais elementos, como as idéias de poema, de povo, de terra, de história, para, talvez pessimista, concluir que "À vida falta uma porta" e, no seu livro mais recente, que "Os moradores/ da rua ignoram/ que naquele/ instante/ um poema/ tenha talvez/ nascido // não escutaram/ seu estampido".

   Muitas Vozes, lançado em 1999, apresenta um Ferreira Gullar ainda consciente da necessidade de renovação, e capaz para tanto, fundindo diversos recursos estéticos que podem ser lidos esparsamente desde os primeiros passos do que viria a ser Toda Poesia. Pode-se afirmar, por esse prisma, que as "muitas vozes" a que se refere o título são as muitas vozes que Gullar usou durante sua vida para construir-se poeta: "Meu poema/ é um tumulto, um alarido:/ basta apurar o ouvido", e o leitor, ouvidos apurados, poderá distinguir em Muitas Vozes a passagem inconfundível de ritmos e quebras, formas e deformações, que mais de uma vez incidiram no que se poderia, com algum receio, chamar de "poética gullariana", e que tem deixado na poesia brasileira seus epígonos.

   A poesia de Gullar equilibra, de forma muito peculiar, a racionalidade e os vôos imaginativos do autor, pois, por mais que a imagem do poema seja "desregrada", vem sempre à tona uma espécie de raciocínio sobressaído da disposição organizada das idéias, e a seqüência que constituem aponta para uma clareza que o tempo todo é traída pelo escorregadio movimento da imagem central, como no poema "Thereza", em que a maneira como são cortadas as linhas multiplica seu objeto: "Sem apelo/ no vórtice do/ dia no/ abandono do chão na/ lâmina da/ luz feroz // fora da vida // desfaz-se agora/ a minha doída/ desavinda companheira" - repare-se que Gullar deixa em aberto as linhas de dois a sete como se indicando que a partir dali surge um outro espaço interpretativo. E é nesse esforço para harmonizar raciocínio e imaginação que os poemas de Gullar assentam as inquietantes marcas que o distinguem da poesia parnasianamente previsível com que têm surpreendido alguns autores de sua geração.

   Ferreira Gullar, se não for uma unanimidade para o gosto dos leitores, críticos e demais poetas, importe o que importar tal situação, é uma unanimidade quando se fala do respeito pelo conjunto do que produziu e pela forma como sempre se portou durante o desenrolar de sua vida intelectual.

   Certamente, o papel importante de Ferreira Gullar para a conjuntura cultural brasileira - em que representa, desde suas primeiras investidas a favor e contra as vanguardas artísticas nacionais, papel importante no "olho de furacão" em torno ao qual girou o tumultuado assentamento de uma "tradição" moderna entre nós - faz com que Toda Poesia mereça muitas palavras, mas nenhuma que vá resumir, como este livro resume, um percurso que, neste país de pouco fôlego, é no mínimo raro. (Tarso M. de Melo, JT)

Tarso M. de Melo é poeta, autor de "A lapso" (Alpharrabio, 1999) e editor da revista Monturo.

TODA POESIA (1950-1999), de Ferreira Gullar. José Olympio Editora, 528 págs., R$ 39,90.

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