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24/10/2000

Lia de Itamaracá: A rainha da ciranda

   Clementina de Jesus sorri lá do céu. Sua história de injustiça tardiamente reparada começa a se repetir com a cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá, 56, vedete do CD "Eu Sou Lia", agora lançado nacionalmente.
Artista popular, tornou-se também personagem -como atestam os quase míticos versos nordestinos "essa ciranda quem me deu foi Lia/ que mora na ilha de Itamaracá". O raio se ampliou, e no CD ela canta brincadeiras com o próprio nome, proferidas por autores que vão de frevistas locais a Paulinho da Viola.

   No momento mais mimoso, "Roberto Carlos" (sim, há uma ciranda batizada com o nome dele), lá vai ela, cândida, maciça e despreconceituosa: "Roberto Carlos é o rei do iê-iê-iê/ Jamelão cantando samba faz o morro estremecer/ Lia na ciranda também é de primeira/ No baião, Luiz Gonzaga/ No frevo, Nelson Ferreira".

Oportunidade solitária

   Lia havia tido oportunidade solitária no mercado em 77, quando lançou o LP "A Rainha da Ciranda". Apareceu como coadjuvante em projetos da Funarte, mas, em geral, permaneceu por décadas recolhida em sua ilha natal. Depois de uma consagração espontânea na edição 98 do festival recifense Abril pro Rock, vem ressurgindo aos poucos.

   "Eu Sou Lia" havia sido lançado no começo deste ano pelo selo local Ciranda Records, e só agora ganha distribuição nacional, pela independente Rob Digital. No mais, o CD permite dimensionar a grandeza de Lia.

   Trata-se do mesmo clube de Clementina, das rainhas dionisíacas que encheriam um planeta com suas vozes graves, saberes atávicos e cantigas de ninar adultos ou crianças.

   Como Clementina -mas no terreno da ciranda e, uma vez ou outra, do coco, do frevo e do maracatu-, Lia abusa de curtíssimas canções colhidas do domínio público e encadeadas como num colar no pescoço forte da matrona, transformando seu álbum quase numa longa suíte.
Com tarol, surdo, ganzá, djambê, zabumba, congas e o saxofone também dionisíaco do colega Bezerra, emoldura-se o fundo monocórdico, circular, o lamento negro contaminando a pressuposta alegria de cirandas muitas vezes pândegas e matreiras.

Lirismo

   Em outro setor, o lirismo invade pequenas peças como "Meus Cabelos Brancos" (do exímio Baracho), "Ciranda do Amor" ou mesmo a malandra "Loura, Morena e Mulata" ("dessas que a morte mata e depois chora com pena").
A delícia adicional vem da espontaneidade, que origina um conjunto peculiar de pronúncias, sílabas a mais, concordâncias inexatas e linguagem indomada.
É ouvir, por exemplo, "Dr. Jorginho", da própria Lia com Tina Borges ("Dr. Jorginho passou ordem a cambiteiro/ não vender cana a motorista e cobrador/ dr. Jorginho, isto é uma derrota/ uma cana piojota/ se a moça pedir eu dou") ou rimas de "panorama" com "Copacabana", em "Copacabana", também de Baracho.

   No todo, a voz grávida e o sorriso largo, ainda que melancólico, de Lia universalizam um ambiente aparentemente restrito (suas cirandas) e demonstram o grau de despreconceito e sabedoria que pode habitar numa ilhazinha lá longe. Será arte o nome disso? (Pedro Alexandre Sanches, FSP)

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