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18/10/2001

Jackson do Pandeiro, mito quase desconhecido

Morto em 1982, o paraibano Jackson do Pandeiro ganha três de dias de shows em sua terra este mês, além do lançamento do livro 'O rei do ritmo', resultado de oito anos de pesquisas

Biografia de Jackson do Pandeiro revela pela primeira vez a vida do artista que sintetizou na música a cultura do Nordeste

ANA CECILIA MARTINS

   Com a pele curtida de sol, franzino, pobre e analfabeto, o danado do homem, nascido José Gomes Filho, fez o ritmo regional nordestino ecoar pelos quatro cantos do país. Jackson foi o apelido, inspirado em filmes de faroeste, que substituiu o nome de batismo, e o ''do Pandeiro'' foi incorporado a ele como carimbo de quem fazia misérias com o instrumento na mão. Egresso do universo pobre de Alagoa Grande, interior da Paraíba, Jackson do Pandeiro absorveu todos os ritmos nacionais com habilidade desconcertante. O coco, baião, samba, xote, xaxado, maracatu e até a bossa nova cantada e tocada pelo cabra influenciaram gerações de artistas e serviram como síntese da cultura brasileira espontânea e popular.

   Ritmista, cantor e compositor, Jackson é ainda hoje um mito desconhecido. ''Todo mundo conhece seu nome e suas músicas, mas poucos conhecem sua história'', afirma o jornalista Fernando Moura, que assina com o pesquisador Antônio Vicente o livro Jackson do Pandeiro - O rei do ritmo (Editora 34) a primeira biografia do mestre, resultado de oito anos de pesquisas. ''O trabalho começou com um mapeamento da música da Paraíba. Aos poucos, fomos vendo que todas as referências se reportavam a Jackson, começamos então a seguir seu rastro, passeando pelo Brasil atrás de informações dispersas sobre sua vasta obra, que conjuga mais de 400 composições, a maior parte inédita, e sua trajetória'', acrescenta Fernando.

   Chefe da casa - A missão assumida pela dupla exigiu disposição arqueológica. Fernando e Antônio se embrenharam em arquivos de jornais, em entrevistas com a família do músico, artistas nordestinos e críticos, e foram traçando o perfil do artista, filho primogênito da cantora de coco Flora Mourão que, aos 13 anos, trabalhava para sustentar a casa e seus três irmãos. ''Papai se mandou para o mundo e Jackson virou o chefe da casa. Trabalhava em obras e coisa assim. Quando fomos para Campina Grande, ele conseguiu um serviço na padaria e as coisas melhoraram'', conta Cícero Gomes, 69, o irmão caçula e uma das principais fontes dos autores.

   Foi com espanto que a família e os amigos mais próximos viram a voz do paraibano estourar nas rádios do país com o coco Sebastiana, no início dos anos 50. O sucesso veio junto com outro, Forró em Limoeiro. Jackson começava a conhecer a fama. A essa altura já contabilizava uma longa estrada de apresentações em cabarés e na Rádio Tabajara, em João Pessoa, e acabara de chegar ao Recife para inaugurar a Rádio Jornal do Comércio.

   Conquista suada - Foi nas coxias do lugar que o artista conheceu e se encantou por Almira, rumbeira que cantava mambo e dançava. A conquista foi suada. ''Ele me levava de noite ao ponto de ônibus e ficava me galanteando, depois me convidou para fazer coro em Sebastiana'', lembra Almira, com quem Jackson formou uma dupla de sucesso por mais de dez anos, gravando diversos discos e fazendo participações no cinema. Ficaram casados 12 anos. ''Foram anos de glória, mas Jackson pisou na bola comigo e me divorciei'', conta Almira, que deixou a dupla em meados da década de 60, quando Jackson já estava instalado no Rio.

   Os anos seguintes trouxeram para o centro da cena musical o iê-iê-iê da Jovem Guarda e afastaram Jackson das paradas de sucesso. ''Ele passou por momentos difíceis, catando moeda em casa para pegar ônibus e tentar ver se arranjava algum trabalho'', narra Fernando. Com o surgimento da Tropicália em fins de 60, a música nordestina ganhava novamente destaque e Jackson pôde experimentar um certo renascimento com as gravações de Canto da Ema e Chiclete com banana, de seu repertório, feitas por Gilberto Gil.

   Depois do baiano, outros artistas regravaram as músicas que Jackson consagrou, como Chico Buarque (Lágrima), Paralamas do Sucesso (1x1) e Zé Ramalho (Casaca de couro). Hoje, as novas gerações continuam redescobrindo Jackson. ''Não tem como ser nordestino e não beber na fonte de Jackson do Pandeiro, no seu jogo cênico e naturalidade. Jackson é, ao lado de Luiz Gonzaga, a maior referência cultural do Nordeste'', afirma Helder Vasconcelos, percussionista do grupo pernambucano Mestre Ambrósio.

   Memorial - A partir do próximo dia 11, João Pessoa vai ser palco de três dias de festa em homenagem a Jackson, reunindo grupos nordestinos como o Cascabulho. O livro sobre o músico será lançado na ocasião. ''Programamos ainda a abertura de um memorial em Alagoa Grande com o material que reunimos durante a pesquisa'', comenta Fernando, que pode agora contar ao país a história de um artista, que como tantos da nossa música popular experimentaram o sucesso, popularidade, declínio, reconhecimento, esquecimento.

   Os momentos de aperto jamais frearam Jackson, que não parou de trabalhar, nem mesmo depois de um grave acidente de carro que, em 1968, lhe quebrou os dois braços. Seu último álbum, Isso é que é forró, foi lançado três anos depois. ''Existia algum recado ali. Na última música do disco ele falava do Flamengo, sua grande paixão, parecia uma despedida'', comenta o biógrafo, que emenda: ''Coincidentemente uma de suas últimas frases em vida foi sobre o futebol.'' ''Zico fez gol?'', perguntou à esposa D. Neuza, saindo do coma, em 1982, aos 63 anos. O craque não fizera. A seleção perdeu a Copa e o Brasil, um de seus mais geniais criadores.  (© Jornal do Brasil)

 

Jackson do Pandeiro, o rei de todos os ritmos

   Jackson do Pandeiro (1919-1982) era o estereótipo do matuto moldado pelo preconceito que se estabeleceu contra o migrante nordestino nos estados do Sul e Sudeste. Baixinho, bigode ralo, moreno e com um inconfundível chapéu de sertanejo, sua aparência revelava uma origem humilde, de pobreza e de fome. Se não bastasse, chegou à idade adulta analfabeto. Enfim, trazia consigo uma série de "desvantagens" para quem sonhava ser cantor e compositor de sucesso no rádio. Nada disso, porém, inibiu o artista de mostrar seu talento musical. Com apenas um instrumento rústico e aparentemente de fácil manuseio, o pandeiro, Jackson lutou por quase duas décadas na Paraíba e em Pernambuco até conquistar o Rio de Janeiro, principal centro produtor de cultura do país, a partir de 1953.

   Tinha, então, 34 anos. Gravara em Recife seu primeiro disco, em 78 rpm, com duas faixas, ambas de sucesso retumbante, graças ao seu ritmo e originalidade: Sebastiana e Forró em Limoeiro. A aceitação da primeira nas rádios cariocas levou a gravadora Copacabana a levá-lo com urgência à capital do país. Se alguém apostou que se tratava de mais um artista de um hit só, não deve ter demorado para perceber o equívoco. A música brasileira ganhava então um dos mais versáteis autores e um dos mais influentes compositores. Seu talento se apoiava na sensibilidade musical acima da média que lhe permitia, de ouvido, memorizar e digerir quase instantaneamente um mundo de riqueza musical soberbo que sempre foi o Nordeste. Seu estilo dançante inventava e recriava das mais diversas maneiras, como observou Zuza Homem de Mello - fazia retardos e antecipações, redobradas e desdobradas, contrações, breques, acentuações, pausas, pontuações e ligaduras. Não foi um mero difusor da cultura musical nordestina, mas inventor moderno e sofisticado.

   Talvez pela diversidade de experiências, suas influências estejam ainda tão diluídas em tudo que se fez de música nas últimas quatro décadas. Para tentar explicar a relevância desse artista, os jornalistas Fernando Moura e Antonio Vicente escreveram o livro Jackson do Pandeiro - O Rei do Ritmo, que a editora 34 acaba de mandar para as livrarias. É a primeira biografia do ritmista e consumiu oito anos de pesquisas e mais de 150 entrevistas e 200 horas de gravações. Tamanho esforço permite ao leitor conhecer um pouco o rico universo musical nordestino, distribuído com peculiaridades na Bahia, Pernambuco e Paraíba.

   Outro mérito do livro está em relevar o quanto era fascinante a personalidade desse artista que, ao lado de Luiz Gonzaga, tornou-se um dos dois mais marcantes nomes da música nordestina - e brasileira. Havia um contraste nessa fama: diferentemente do astuto Gonzagão, Jackson parece ter demorado a perceber o quanto seu trabalho era admirado. Não foi por isso, claro, que viveu até sua morte, em 1982, num estilo de surpreendente humildade. Como conta Fernando Moura, no auge da carreira, aceitava sem orgulho participar de incontáveis discos como pandeirista. O resultado era perceptível. Não raro, seu instrumento virava o centro rítmico das gravações.

   Até ter reconhecimento, a luta foi árdua. Jackson tocou e cantou até com cego em feiras. Nesse aspecto, os autores forçam a barra quando romanceiam passagens da infância e da formação do ritmista para forjar a imagem de uma criança predestinada e consciente disso. Faltam, no entanto, elementos que confirmem isso. Diz o livro: "Via-se a tocá-los (ganzá e zabumba) na mesma pancada dos mestres. Estava tudo plantado no juízo, germinando. Não era sonho, na verdade, mas apenas uma realidade adiada. Até que tivesse o tamanho justo para alcançar os objetos inacessíveis".

   Com nome de batismo José Gomes Filho, Jackson nasceu na cidade de Alagoa Grande, um importante pólo produtor de açúcar da Paraíba, com seus 26 engenhos. Era filho do funcionário de olaria José Gomes e da cantora de coco Flora Maria da Conceição - que teria influência fundamental em sua carreira. "Ele herdou uma surpreendente aptidão ritmica, calcada nos floreios percussivos e coreográficos da mãe, uma das mais respeitadas coquistas (ou coqueiras) de sua região, entre o final da década de 1910 e começo da década de 1930". Apaixonado por cinema, em especial filmes de faroeste, José Gomes Filho gostava de dizer que era o ator Jack Perrin. E passou a se nomear de Zé Jack, depois Jack do Pandeiro e, por fim, Jackson do Pandeiro.

   A morte prematura do pai e as dificuldades financeiras levaram a família a Campina Grande, então com 100 mil habitantes e um importante ponto de desenvolvimento regional. Ali, Jackson descobriu a vida urbana formada por retirantes, comerciantes, tropeiros, aventureiros, vaqueiros e prostitutas. Vivia como entregador de pães e ajudante de pedreiro, mas seu universo era noturno, marcado pela tríplice aliança música, cachaça e mulher. As adversidades poderiam tê-lo levado a passar despercebido como muitos artistas talentosos que jamais saíram do anonimato, se não tivesse contado com um pouco de sorte de estar no lugar certo.

   Entre 1939 e 1944, atuou como artista do cassino Eldorado, onde teve acesso a vários gêneros musicais, não somente brasileiros - blues, jazz, choro, maxixe, rumba, tango e samba. Na mesma cidade, atuou na rádio Tabajara, como membro de sua orquestra. A popularidade resultou num convite para atuar na futura rádio Jornal do Commercio, de Recife, que seria inaugurada em 1948. Começou como intérprete de sambas e marchas do repertório de Jorge Veiga. Em seguida, encontrou o caminho definitivo nos maracatus, caboclinhos, bumbas-meu-boi, fandangos, escolas de samba, blocos e troças. "Exímio instrumentista, mungangueiro, com jeitão amatutado, e reconhecendo um intérprete singular, ele era dono de uma forma cosmopolita de cantar do povo nordestino", escrevem os autores. Segundo eles, o ritmista pontuava suas narrativas com expressões, corruptelas e anomalias específicas de sua região, embora no dia a dia falasse corretamente, aplicando a sonoridade do "r" como poucos.

   De Recife para o Brasil. No Carnaval de 1953, seu coco Sebastiana virou o hit da folia, cantada por ele, em parceria com a radioatriz Luíza de Oliveira. O sucesso rende um convite da gravadora Copacabana. Nessa mesma época, conhece Almira, com quem forma o "casal matuto", que fazia encenações e números musicais carregados de humor. A aceitação do primeiro disco nas rádios cariocas rende dois êxitos imediatos - Sebastiana e Forró em Limoeiro - e levou o casal para o Rio, onde se instalaram em definitivo, a partir de 1955.

   Ninguém melhor que o maestro Manezinho Araújo, que o conheceu na Paraíba, para descrever a receptividade de seu disco de estréia: "Jackson é puramente típico. Não sofreu ainda nenhum burilado, é água da fonte, é pedra bruta, é luz de carbureto. Suas melodias não passaram pela ciência dos eruditos, são originais, têm cheiro do mato, sabor de engenho, pinceladas de Nordeste brabo". Na sua opinião, enquanto no Rio todos aprendiam a fazer o melhor, Jackson não se preocupava com isso. "Aprende o refrão de um coco bruto, abre a garganta e sai uma gostosura: simples, sem máscara, sem artifícios. Aí, então, todo mundo gosta".

   No Rio, Jackson criou um tipo característico com manga de camisa arregaçada a meio-pau, paletó pendurado no braço, lenço no pescoço e chapéu de banda. No coração da vida urbana brasileira, ele e sua esposa - e companheira de palco - Almira iniciaram uma carreira vitoriosa, até terminar com a separação do casal, em 1967. Nesse período, o casal gravou regularmente cocos, rojões, baiões, frevos, marchas, batuques, xotes, maracatus e rancheiras. Revelou sua versatilidade também ao incorpar em suas composições elementos do candomblé. Também se apresentou nas principais emissoras de rádio do Rio - Nacional e Tupi (onde teve um programa próprio, Forró do Jackson) - e de São Paulo - Record, Bandeirantes e Nacional.

   Jackson gravou 137 discos, num total de 415 músicas - foram cerca de 20 discos em 78 rotações e mais de cem entre inéditos e coletâneas. O último deles saiu em 1981, quando sua saúde estava debilitada pela diabetes. O compositor, antes disso, passou por um longo período de altos e baixos, desde a segunda metade da década de 60, quando novos ritmos musicais como a jovem guarda praticamente o jogaram no limbo. Foram tempos difíceis, quando faltava dinheiro até para pegar ônibus e procurar emprego. Viveu o suficiente, porém, para ver suas músicas nas paradas nas vozes de Gilberto Gil, Alceu Valença e Gal Costa. A morte o levou em julho de 1982, depois de um show em Brasília. No aeroporto da cidade, quando se preparava para voar rumo a sua casa, Jackson sofreu uma descompensação diabética e entrou em coma. Só teve tempo para perguntar qual havia sido o placar do jogo entre Brasil e Itália, na Copa de 1982. Ficou triste ao saber que sua seleção havia sido eliminada da competição.

   Apesar das boas intenções, predomina em todo o livro de Moura e Vicente uma narrativa irregular e mal costurada. Dois problemas, em especial, atrapalham a obra: o excesso de bairrismo e o deslumbramento exagerado dos autores em relação ao biografado. Diz-se, por exemplo, que o cassino Eldorado, de Campina Grande, não tinha, de acordo com os autores, similar no país. "O que mais se aproximava, a distância, era o Assírio, que funcionava no subsolo do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro". Os elogios gratuitos e adjetivos totalmente desnecessários acabam por comprometer a sinceridade do trabalho. Essas deficiências, no entanto, não tornam a biografia de Jackson descartável. Há um conteúdo importante sobre os tempos áureos do rádio na Paraíba e em Pernambuco, por exemplo, e oferece uma série de pistas e dicas para se estudar melhor sua produção musical - os autores prometem um novo volume com a análise das composições do ritmista.

   Jackson do Pandeiro se tornou uma espécie de top de linha da música popular brasileira pela versatilidade e inventividade. Assimilou em suas composições frevo, bossa nova, marchas carnavalescas e até músicas juninas. Só não fez samba canção. Além de descoberto por novas gerações após sua morte, como Paralamas do Sucesso (gravaram 1 x 1), sua marca aparece em composições de Gilberto Gil, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e João Bosco, a Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Djavan, Elba e Zé Ramalho e nos recentes Mestre Ambrósio e Cascabulho. A lista inclui contemporâneos como Hermeto Paschoal, Sivuca, Elino Julião, Jacinto Silva, Marinês, Genival Lacerda.

   Era um nacionalista no sentido de preservar a cultura e o folclore nacionais e contra a presença americana na música brasileira. Chegou a implicar com o rock e o soul. As transformações surgidas nos anos de 1960 e 1970, no entanto, não o transformaram num sectário. Tanto que incluiu acordes de guitarras em algumas composições. Seu amplo repertório - ainda por descoberto pela tecnologia do CD - surpreende a cada audição pela riqueza com que interpreta as raízes de uma região que soube representar de todas as maneiras possíveis. Até mesmo no seu jeito malandro e alegre de levar a vida. Música para ele, parecia ser algo fácil, sempre uma grande brincadeira de roda. (© Terra Diversão)

Com relação a este tema, veja também:

Veja site não oficial de Jackson do Pandeiro

Veja sites de cantores nordestinos na seção MÚSICA

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