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22/10/2001

Otto perde a cor

O cantor e compositor pernambucano Otto, 33, pintado de negro para a capa de seu segundo álbum inédito, "Condom Black"    Cláudia Guimarães/Folha Imagem

Pernambucano homenageia os orixás em "Condom Black" e vive "pânico" do 2º disco

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

   Existe mesmo a "síndrome do segundo disco", a tensão de um artista bem recebido na estréia que precisa mostrar que não era só uma modinha de momento ou um golpe de marketing? Lançando "Condom Black", o pernambucano Otto, 33, diz que não, mas acaba trocando "síndrome" por palavra mais pesada, "pânico".

   "Não senti a síndrome, mas havia eu em São Paulo. A cidade já havia me comido, estava meio pirado. Tive angústia de ser artista aqui (em São Paulo), fiquei meio apavorado. Baixei minha bola, fui embora para Recife e fiquei aqui gravando", contradiz-se.

   "Se no Recife não endireitar, vou mais para o sertão ainda, me isolo. Mas ao mesmo tempo sinto minha carreira proveitosíssima, cheguei a ficar com pânico do segundo disco por isso", entrega.

   Por que a temática black, o trocadilho entre camisinha (condom) e candomblé? "É camisinha preta, é vestir a camisa. Não é a preta que gosta de mim, sou eu que gosto da preta. Precisava de uma coisa diferente, não sabia mais o que fazer. Pintei de preto. A única coisa interessante que via no país era esse cisma dos 80%: na favela, na cadeia e no Brasil, 80% das pessoas são pardas ou pretas."

   Algum sentimento de culpa porque ele, loiro e de olho azul, faz parte dos outros 20%? "Não, pelo contrário. Não dá para pedir desculpas por ser branco. Tenho é vontade de me igualar. "Condom Black" não é black music, é um ser humano cantando música popular brasileira, que é 80% preta."

   Otto vai descrevendo um processo conturbado para conceber o segundo disco. "Tudo o que bato no "Samba pra Burro" (98) destruí por este novo disco. Em vez de minha carreira evoluir, num certo momento vi ela se enrolando. Este CD é uma defesa minha."

   "As letras só começaram a surgir no Carnaval de 2000, que passei no trio elétrico de Daniela Mercury, na Bahia. Fui em casa de mãe-de-santo, vi os bombeiros de vermelho e preto na avenida. Pensei: "Taí um bom assunto para começar". Fiz "Anjos do Asfalto" para exu, a partir daí deslanchou."

   A simpatia pela Bahia se estende a Carlinhos Brown: "Sei tudo o que ele faz, de onde ele tira tudo aquilo. É rei de raça, baiano velho, toma conta do bairro". Quis Marisa Monte nos vocais da ambígua "Por Que" (que fala de poligamia), mas não conseguiu. "Ela não podia, já havia participado de vários CDs. Não sei se cantaria essa música, é uma artista tão independente", diz, ambíguo.Folha de S. Paulo)


Músico fala das interferências que sofreu no primeiro CD

Otto diz que sonha fazer disco com Fred Zero Quatro

DA REPORTAGEM LOCAL

   Segundo Otto, a atual simpatia por artistas do eixo Bahia-Rio não significa seu afastamento da cena mangue beat, e ele diz até que sonha fazer um disco de samba com Fred Zero Quatro, líder da banda de que ele saiu, Mundo Livre S/A.

   "A gente deu a volta, está todo mundo em Recife de novo. As coisas foram indo, de repente um morre, outro sai de sua banda, todo mundo fica desgovernado. Mas a Nação Zumbi está lá trabalhando, fazendo a "Noite do Ben", só com músicas do Jorge Ben. Ninguém faria Jorge Ben como eles fazem, é a coisa mais linda do mundo", diz.

   E quanto ao Mundo Livre, com quem viveu lá suas desavenças? "Não brinque se eu e Fred Zero Quatro não fizermos um CD de samba juntos ainda neste ano. É meu mestre, queria fazer um disco só com músicas dele", concilia.

   Exemplo a mais da inquietação que Otto vive está na faixa "Armadura": "Estava triste, não tinha o que falar. Vinha da (boate) Lov.e justamente no dia em que estourou a rebelião do PCC. Imaginei ao mesmo tempo os policiais chegando com escudos no presídio e o cara excitado olhando a prima pelo buraco da fechadura".

   "É um pensamento vago de tristeza, fico triste com as convenções. Para mim, se você acha que é o rei da TV, destrua, porque vive num país miserável, não há boas idéias aqui. Destrua, ninguém é rei. Sou feliz com meus pensamentos, mas sei que eu e o mundo podemos descambar. Não adianta me chamar de louco, tenho 33 anos, é a idade da razão. Eu queria mesmo era me especializar em constrangimento, em constranger as pessoas", viaja.

   Mais pensamentos inconstantes: "Gosto da idéia de que, se estou na paz, eu choro mais. Algo me fere se sei que alguém não está feliz como eu. Tenho medo de ser amplo, e esse não ser meu lugar, medo de vir a perder, a cair".

Interferências

   Qual é o resultado de tanta turbulência? "Nas primeiras vezes em que fui conversar sobre "Condom Black", só chorei, nem conseguia falar direito. A volta a Recife me deixa comovido ainda. Este disco é mais minha cara. Em "Samba pra Burro" fiquei mais calado, deixei (os produtores) Apollo 9 e Carlos Eduardo Miranda interferirem mais."

   Exemplifica: "Era para "Hemodialisis", que está em "Condom Black", ter entrado no disco anterior. Foi a primeira vez que a Nação Zumbi se reuniu depois da morte de Chico Science. Na época, Miranda e Apollo não quiseram colocar. Agora Apollo (que também produz o novo CD) ouviu e se emocionou, disse: "Pô, como deixamos de fora do outro?". Disse: "Foi tu". Na época, se falasse, nem estava mais aqui agora".

   "Agora pude brigar mais pela minha cara. "Condom Black" é todo acústico, mas por baixo tem um outro tipo de eletrônica. A banda aparece mais agora, aquele disco anterior deixou muita coisa no ar, até para mim", confessa.
Mais uma frase, para terminar? "Sou o cárcere e o prisioneiro num só", filosofa. Bem-vindo de volta, Otto. (PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
(© Folha de S. Paulo)


CRÍTICA
Afirmação nacional orienta CD

DA REPORTAGEM LOCAL

   Há quem pense que Otto não diz coisa com coisa. Mas, não, tentar acompanhar seu raciocínio tortuoso é um exercício de estar bem perto da arte. Falando ou em disco, expõe-se conturbado, barroco, ambíguo. E cabeças nessa situação sofrem, mas costumam produzir amostras muito especiais daquilo que se chama arte.

   Fruto do medo de não repetir "Samba pra Burro", "Condom Black" dá passos bem mais largos que o antecessor. O discurso aparentemente incoerente (até parecido, neste momento, com o de Carlinhos Brown) é feito de vários pequenos enigmas a serem decifrados, e a musicalidade está assustadoramente afiada.

   Tudo parece muito intuitivo, mas as melodias e os tratamentos musicais de "Dias de Janeiro", "Cuba" (especialmente no verso inconcluso "malandro que é malandro, malandro demais"), "Hemodialisis", "Por Que" e "Street Cannabis Street" são extraordinários, fogem do banal.

   Não há black music nem adesão à moda soul. O "black" da confusa fusão "condom black" diz respeito à África, ao rito, ao sincretismo, aos orixás (esses são temas de "Anjos do Asfalto", "Condom Black" [com os ternos versos "a preta gosta de mim/ sou eu que gosto da preta/ a preta qué um filim/ e eu um filim com a preta"", "Retratista" e "Único Sino").

   Ele não há de ser chamado por ora de bom cantor. Mas o esforço por educar a voz é evidente e rende momentos quentes, como quando voz e sotaque o aproximam do cearense Belchior, em "Pelo Engarrafamento" (que, estranha síntese, soa como algo feito por Carlinhos Brown e Marisa Monte, mas sem truques tipo "Amor I Love You") e "Por Que".

   Mesmo absorto no pandemônio interior, Otto descobre imensa delicadeza nas langorosas faixas "Por Que" e "Dias de Janeiro" (em que a voz de Luciana Mello, em geral desgovernada, aparece contida e correta).

   "Dias de Janeiro" tem cama de sopros decalcados de Tim Maia fase 73, e parece direta a comunicação com um dos maiores artistas negros do Brasil, sempre tido como estrangeirado. Mas, onde Tim cantava "eu gostava tanto de você", Otto prefere "talvez não seja o certo/ amo você demais".

   Negro, Tim Maia chorava o desamor e, em sentido mais amplo, o descaso. Nordestino alforriado pelos cabelos loiros, Otto ama descabeladamente, mas sente que talvez haja algo errado por ali. É questão racial, sim, mas no fundo é de seu país que ele está falando. Por isso atravessa o sentimento de inferioridade, enfrenta o desconforto que tanto se nutre pelo Brasil no Brasil. Por isso "Condom Black" é tão denso, tão brasileiro. (PEDRO ALEXANDRE SANCHES) (© Folha de S. Paulo)


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Veja o site oficial de OTTO
Veja sites de Bandas nordestinas na seção MÚSICA

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