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Eduardo Coutinho, um cineasta que sabe ouvir

04/10/2003

"Meu método de fazer filmes tem a ver com uma regra fundamental: saber estar disponível para os outros", diz ele  Rosane Marinho/AE

 

O diretor, que constrói seus documentários praticando a arte de saber anular o próprio ego para poder realmente dialogar com os entrevistados, ganha retrospectiva de 17 filmes a partir de hoje em SP

LUIZ ZANIN ORICCHIO

  O essencial da obra está aí - e quem diz isso é o próprio Eduardo Coutinho, o grande documentarista brasileiro que será homenageado com um retrospectiva de 17 de seus filmes, a partir de hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil. "Ficam de fora vídeos institucionais e outras coisas que fiz, mas o que há de importante está presente", diz o autor de um clássico como Cabra Marcado para Morrer e alguns dos melhores filmes do período recente, como Santo Forte e Edifício Master.

   Na abertura da mostra, haverá debate aberto ao público com a presença do cineasta. Esse encontro será seguido por dois outros, dias 11 e 15, com especialistas como Ismail Xavier, Henri Gervaiseau, Consuelo Lins e Regina Novaes, que discutem a estrutura e importância de uma das obras mais influentes do cinema brasileiro contemporâneo.

   E vem mais Coutinho por aí. Além da retrospectiva no CCBB, dia 19 o Canal Brasil exibe às 20 horas o programa Retratos Brasileiros em homenagem ao diretor, com o título Cinema de Reportagem: A Obra de Eduardo Coutinho. Não deixa de ser justo. Coutinho é mesmo, à sua maneira, um repórter do Brasil, país no qual ele mergulha com profundidade e amor, mas sempre privilegiando seus personagens particulares, indivíduos que formam a nação, e nunca generalidades como protótipos ou classes sociais. "Se você fizer isso, de cara matou o personagem", diz em entrevista ao Estado.

   No método que Coutinho concebeu para uso próprio, só cabem indivíduos, nunca abstrações. Mas, atenção: generalizações podem surgir, desde que seja depois. Nunca no momento da filmagem. "O fato de alguém entrar depois numa totalização e representar tal ou qual fatia do conjunto chamado Brasil pode de fato acontecer; mas no meu encontro com ele estou sempre no plano do concreto e do particular", afirma.

   O "método Coutinho" tem sido seguido, imitado, copiado à risca por neófitos à cata de modelos definitivos. Mas ele mesmo não se considera um chefe de escola. Pelo contrário, acha que cada qual deve fazer seu caminho, aprender por si e criar a ferramenta que melhor funcione em sua mão. Tem horror a ser chamado de mestre. "Inventor, vá lá, mestre jamais", diz, usando, em filigrana, as categorias de Pound, que divide artistas em inventores, mestres e diluidores.

   Tanta reticência consigo mesmo não significa que Coutinho não tenha idéia da importância do seu trabalho. "Sou tido por modesto, mas acho Cabra Marcado para Morrer um filme extraordinário", diz. Acha que também nos recentes Santo Forte e Edifício Master, o espectador pode se emocionar com aquelas vidas, mas também encontra nelas o retrato de um certo Brasil. Referindo-se a Santo Forte, afirma: "Daquela pequena favela temos um belo posto de observação de como funciona a mente popular no plano do misticismo e de como aquelas pessoas são."

   Surpresa - Todos os que conhecem seu cinema admiram a maneira como Coutinho obtém depoimentos profundos das pessoas. Mas o cinema de entrevistas não estaria se banalizando, como afirma Jean-Claude Bernardet no adendo ao seu livro Cineastas e Imagens do Povo (Companhia das Letras, 320 págs., R$ 38)? Pois bem, para quem acha que Coutinho é um entrevistador nato, a surpresa: "Odeio esse excesso de entrevistas, são expressão da preguiça dos cineastas, que aceitam tudo o que o entrevistado diz, sem contestação." "São muito passivos", prossegue, "e esse é um modelo horrível."

   Ele, Coutinho, não entrevista - conversa com os outros. Sua técnica (se o termo não for abusivo) é baseada no diálogo, arte ancestral, que remonta a Sócrates e a Platão. Essa arte tem uma premissa: "O abandono do teu ego, o interesse centrado no outro", afirma. Quem sentiu cheiro de psicanálise na frase anterior mostrou bom olfato. Mas não apenas: "Meu método tem algo a ver com todas as técnicas de diálogo face a face: psicanálise, etnografia e história oral; o fundamental é estar disponível para o outro."

   Claro, um documentário, por melhor que seja, não é tratamento analítico e nem se propõe a isso. "Não curo ninguém, mas observo que as pessoas se sentem melhor", diz. "O fato é que as pessoas querem ser escutadas." Essa escuta atenta, simpática, porém nada complacente, tem produzido uma obra inteiriça, das mais consistentes da história do cinema brasileiro. Obra com assinatura singular e marca registrada: "Cada filme é um filme, no conjunto é sempre o mesmo, embora um se distinga do outro", diz.

(© O Estado de S. Paulo)


A arte de filmar depoimentos sem pieguismo

Coutinho sabe ouvir o povo do Brasil porque o respeita, mas não o endeusa

LUIZ ZANIN ORICCHIO

  Essa carreira de documentarista conheceu muitos caminhos antes de se estabelecer. Eduardo Coutinho, nascido em São Paulo em 1933, trabalhou na imprensa, ganhou um prêmio respondendo sobre Chaplin e, com o dinheiro, foi estudar cinema na França. De pouco valeu, sempre conta. Na volta, em 1960, passa a colaborar com o Centro de Cultura Popular da União Brasileira dos Estudantes e lhe dão a "tarefa" de produzir Cinco Vezes Favela, um dos filmes-símbolo daqueles anos. Só produz, não dirige.

   Logo passa a integrar a UNE-volante e sai pelo Brasil para fazer um documentário sobre as cidades por onde o grupo ia passando. O material não chega a ser montado. Mas, nessas viagens, Coutinho conhece Elizabeth Teixeira, viúva de um líder rural, João Pedro, assassinado em Sapé, na Paraíba, em 1962.

   Esse é o caminho de Damasco do cineasta. Começa a refazer a história de João Pedro e das ligas camponesas, mas o filme tem de ser abandonado com o golpe de 1964. Todos se dispersam com apenas 40% do roteiro realizado. O próprio roteiro se perde, mas é reencontrado depois. Coutinho só pode retomar o filme com a abertura política. Elizabeth fugira para o Recife e depois se escondera no Rio Grande do Norte, sob o codinome de Marta. O filme prossegue com o reencontro desses personagens, 17 anos depois. É uma das obras-primas do cinema brasileiro contemporâneo, e entende-se o carinho do cineasta pelo filme: nele, Coutinho se reencontra como artista e resgata do anonimato sua personagem principal, dona Elizabeth.

   Boa parte do seu trabalho posterior é feita em vídeo e na televisão, tendo atuado no Globo Repórter. Por ocasião do centenário da Abolição, Coutinho roda O Fio da Memória, documentário sobre a condição do negro no Brasil, que teve pouca circulação. Criativo, O Fio da Memória centra-se na figura exótica do artista negro Gabriel Joaquim dos Santos que orna sua casa com objetos encontrados e refugos. Esse bricoleur da memória funciona como um ponto de convergência das contradições de um país que aboliu a escravatura mas cem anos depois continua em dívida social com a população negra.

   Nos anos recentes, Coutinho tem se revelado em plena forma, registrando como ninguém alguns aspectos da experiência brasileira. Ouvindo gente que vive dos restos, como em Boca de Lixo, investigando o universo místico, como em Santo Forte, ou expectativas, como em Babilônia 2000 ou Edifício Master, Coutinho apresenta retratos pessoais ou de uma nação como nenhum outro documentarista consegue fazer. A tentação é dizer que atingiu a condição de mestre. Como ele não gosta de ser chamado assim, respeitemos. Mas seu cinema é admirável e parece ter atingido o ápice nos três trabalhos mais recentes.

   "Acho apenas que hoje tenho uma depuração maior, que é fruto da prática", diz.

   De fato, impressiona o despojamento de meios desses filmes, em franco contraste com os resultados que obtêm. A técnica de Coutinho é sofisticada, mas esconde seus recursos. Passa a impressão de que tudo é muito fácil de fazer, que bastaria chegar ao lugar, colocar o entrevistado na frente e ligar a câmera. Engano fatal para epígonos.

   Obter depoimentos tão ricos é uma arte em si. Supõe uma longa vivência, empatia com o entrevistado e, acima de tudo, estar vacinado contra a doença infantil do humanismo, que é a complacência a qualquer preço. Coutinho sabe ouvir o povo porque o respeita mas não o endeusa.

(© O Estado de S. Paulo)

Cinema verdade
Sílvia Bessa
da Redação


   Quando o cineasta Walter Salles estava produzindo Abril Despedaçado, pediu ao fotógrafo Walter Carvalho que sugerisse nomes de alguns filmes que tivessem o Nordeste como locação, para se inspirar. Soube, assim, do documentário A Bolandeira, filmado por Vladimir Carvalho, em 1968. Impressionado com a qualidade do documentário, Walter Salles bancou a restauração da fita. Prestava também justa homenagem a seu diretor e à história do cinema brasileiro.

   Vladimir Carvalho é autor de vinte documentários. Começou no cinema escrevendo o roteiro de Aruanda, apontado por Glauber Rocha como o início do moderno documentário no Brasil.

   Em 1970, atendendo a um convite do fotógrafo Fernando Duarte, Vladimir instalou-se em Brasília para dar um curso de cinema na UnB. A partir daí, passou a dividir o foco de sua câmera entre o Nordeste e o Planalto Central.

   Fez alguns dos filmes que marcaram a história do cinema brasileiro - País de São Saruê, que foi censurado por nove anos por retratar a real história do Nordeste brasileiro; O Evangelho Segundo Teotônio; O Rio de Açúcar; e Conterrâneos Velhos de Guerra, que levou dez anos para ser produzido e mostra o massacre de operários nordestinos durante a construção de Brasília.

   Seu último trabalho, Barra 68 - Sem Perder a Ternura, conta a fundação da UnB. Desde o sonho de Darcy Ribeiro até a invasão do campus em 1968, quando cerca de 500 estudantes foram detidos por militares na quadra de esportes e todo o corpo docente foi demitido.

   Hoje, Vladimir Carvalho é o convidado do Centro Cultural Banco do Nordeste para participar do programa de debates Nomes do Nordeste. Ele será entrevistado, às 19 horas, pelo ator e dramaturgo cearense Ricardo Guilherme.

   Logo depois, estará lançando o livro Cinema Candango - Matéria de Jornal (editora Cinememória, 370 páginas, R$ 25,00). O volume reúne artigos de jornal, entrevistas, pronunciamentos e textos dispersos, que recompõem a trajetória do diretor, do cinema de Brasília e do Brasil. Confira entrevista com Vladimir Carvalho:

O POVO - Em 40 anos de trabalho, você nunca abandonou o documentário. O que mais te atrai neste gênero?
Vladimir Carvalho - O que a gente chama de real é difuso. Nem sempre o real vai estar na superfície. Muitas vezes ele se retrai e você tem que ir buscá-lo. A realidade é rica de tensões, dramas, tragédias. Prefiro trabalhar com a realidade em estado bruto. Ela é mais forte e supera qualquer imaginação, por mais delirante que seja. Você vira a câmera para Brasília, por exemplo, e tem o reflexo de um País. Essa realidade me satisfaz enquanto trabalhador do cinema. Eu me dispenso de inventar histórias.

OP - Como você descobriu o documentário?
VC - Em 1957, apareceu em Recife um crítico carioca que viajava pelo Brasil exibindo e discutindo filmes antológicos. Entre eles, estava O Homem de Aran. Era um filme sem atores - atores nesse sentido de pessoas treinadas na academia, que não têm falas prontas, que não posam para a câmera. Aparentemente, também não tinha enredo rígido. Era a história de uma pequena comunidade de pescadores que pescavam baleia. Uma verdadeira epopéia o trabalho daqueles homens. Três pequenos homens numa canoa enfrentando o mar revolto e aquele animal enorme. O filme mostrava essa relação do homem com a natureza, com o que o cerca. Durou uma hora e meia e ninguém descolou da tela. Fiquei em estado de graça. E ali mesmo disse que se um dia fizesse cinema, queria fazer daquela maneira. Até que em 59, 60, o Linduarte (Noronha) me chamou para escrever o roteiro de Aruanda. De lá pra cá são quarenta anos e estou feliz com a minha escolha.

OP - Qual o cuidado de trabalhar com fragmentos da vida? Como extrair verdades desses pedaços?
VC - São fragmentos, como você bem falou mas que têm um tipo de atração entre si. Flagro a atividade diária, o cotidiano, e procuro nela a tensão. Tenho que seguir esses fragmentos para perceber onde está a realidade. O que mais me fascina é isso: enquanto na ficção o roteiro é o ponto de chegada, no documentário o roteiro é sempre o ponto de partida. Você pode estudar o assunto, ler, entrevistar especialistas. Mas a aventura começa quando você liga a câmera. Aí está a surpresa, o improviso.

OP - Temos uma boa safra de documentários no Brasil - Ônibus 174; Janela da Alma, do seu irmão Walter Carvalho; Edifício Master, do Eduardo Coutinho. Filmes premiados e que tiveram boa aceitação do público. Como você vê esse momento? Houve um boom do gênero no País? Um amadurecimento do público? Um desgaste da ficção?
VC - Quando as pessoas vêm comentar que o documentário no Brasil melhorou eu inverto a equação: o público melhorou muito no Brasil, cresceu em qualidade, curiosidade. Acho que há uma relação com o aumento de universitários. O fato é que documentário foi redescoberto. Você citou obras referenciais. Isso é muito bom. Nossa preocupação agora é tornar esse movimento contínuo. Temos que ter uma produção maior. Como? As televisões a cabo não nos patrocinam. Para ter o apoio do Estado, dependemos da ação do ministério, das leis de incentivo fiscal, e isso ainda não garante uma produção constante. Os diretores trabalham a duras penas. Os criadores estão fazendo a sua parte. Falta o poder público e o empresariado acolher esse momento.

OP - Você disse em entrevista que para o desenvolvimento do cinema é necessário um projeto nacional. Qual o compromisso que você vê no atual governo federal?
VC - O discurso tem sido muito importante porque há uma coincidência de propósitos. O Minc está lançando vários editorais que contemplam boa parte do cinema brasileiro. A expectativa é grande. Até porque há um grande problema que está além do apoio à produção. Trata-se de uma certa invasão cultural do espaço brasileiro pelo produto estrangeiro. A gente precisa enfrentar isso para conseguir existir. Ainda é muito difícil ocupar o espaço audiovisual - televisão, salas de cinema, vídeo. A competição com a indústria americana é desleal.

OP - Embora você esteja em Brasília há 33 anos, sua obra é extremamente comprometida com o universo nordestino. De onde vem essa sede?
VC - O (Tomasi de) Lampedusa no livro O Leopardo diz que se você sai da sua terra só depois dos vinte anos, leva a terra junto pela vida inteira. Minha terra é o Nordeste. Tudo que eu vi, senti, minha reações já estavam prontas. Depois de fazer 21 filmes, a sensação que tenho é de que estou regressando às origens. Atualmente, estou fazendo um filme sobre o escritor José Lins do Rego, um paraibano que nasceu numa cidade vizinha à minha e refletiu muito as classes sociais, a sociedade patriarcal brasileira, a passagem da economia da cana para um modelo de capitalismo mais definido. Esse trabalho me leva de volta a O País de São Saruê, A Bolandeira. É também um regresso à infância. Meu pai estudou no mesmo colégio de José Lins. Desde garoto eu lia seus livros. Costumo dizer que ele foi sempre um hóspede invisível na minha casa.

OP - Como está esse filme?
VC - O projeto está parado por falta de recursos. Não tenho certeza de quando vou terminá-lo. É uma pena porque mal comecei a fazer e já tive de parar. Mas vou concorrer nestes editais lançados pelo Minc. É uma possibilidade. Por enquanto, o filme está em compasso de espera.

(© O Povo/NoOlhar.com.br, 30.09.2003)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


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