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O homem invisível

05-06-2008

Natinho Rodrigues

CARVALHO é crítico implacável da própria obra; exclui de sua bibliografia as quatro primeiras publicações, entre 1955 e 1966

Recluso, o poeta Francisco Carvalho publica Memórias do Espantalho, 502 páginas, sumo da obra. Surpreso, vê o cantor e compositor Raimundo Fagner gravar cinco de seus poemas

Ethel de Paula
da Redação

   Acanhamento público e notório. ''Ele não gosta de sair. Rarissimamente vai à Academia Cearense de Letras, onde tem cadeira cativa. Quando acontece, sua presença é discreta, apenas cumprimenta e ouve os presentes'', afirma o escritor Artur Eduardo Benevides, presidente da ACL. De próprio punho, abraçado à solidão, o poeta Francisco Carvalho já escreveu: ''Todo homem tem um signo obscuro/marcado a fogo na epiderme''. Ou ainda: ''Quando me finjo de Narciso/sou vaiado pelos espelhos''. Tomado por uma timidez assumidamente crônica, o homem de 77 anos passeia quase invisível entre métricas e versos livres há pelo menos 50 anos. No Ceará e no Brasil, seus 24 livros publicados chegaram para poucos. Assim mesmo, com Quadrante Solar, fisgou, em 1982, o prêmio Nestlé de Literatura - o mais cobiçado da época -, mas sem render-se às badalações.

   Os pares o festejam. ''Publiquei poemas de Francisco Carvalho na revista Poesia Sempre, da qual fui editor, no Rio de Janeiro. E isso fez com que seu nome e parte de sua obra circulassem em outros estados. Considero-o um poeta fundamental do Nordeste e do Brasil. Sua obra vasta consegue ser coerente, fiel a si desde o início. Lamento que um homem com tanto domínio da forma seja pouco conhecido no Sudeste. É o que acontece com autores que permanecem nos rincões de origem. Mas ganha Fortaleza. Porque ao tê-lo como exemplo os novos vão esforçar-se para manter o alto nível'', credencia o crítico literário e poeta Ivan Junqueira. Com o também poeta Lêdo Ivo, livros e cartas trocadas. ''Admiro a temática rica e diversificada de Carvalho, bem como sua maestria formal, o domínio técnico de sua poesia. Se tivesse vivido na metrópole, teria reconhecimento nacional. Não nos conhecemos pessoalmente. Mas no mais recente número da revista da Academia Brasileira de Letras foram publicados três sonetos de sua autoria em homenagem aos meus 80 anos. Ele foi o único que lembrou'', alegra-se o alagoano.

   O conterrâneo Adriano Espínola chegou a Carvalho pelas mãos do contista Moreira Campos (1914-1994), amigo do poeta. ''Estava em um aniversário na casa de Moreira quando o poeta Caetano Ximenes Aragão teceu elogios rasgados a Carvalho. Fiquei curioso e pedi emprestado a Moreira Os Mortos Azuis, de 1971. O primeiro impacto foi com a força das metáforas, a linguagem transfiguradora. Daí passei a Pastoral dos Dias Maduros, de 1977. Assim, mergulhei no poeta multitemático do universo mítico, da memória da terra, do aspecto desumano da civilização, das visões oníricas e surrealistas. Além, é claro, de atentar para o depuramento da linguagem e a preocupação formal presente em cada poema, marcas naturais da Geração de 45'', aponta. Cara a cara com o poeta, um único senão. ''Ele não gosta de ser chamado de sonetista, já que escreve poemas medidos e versos livres. Mas é, inegavelmente, mestre do soneto, o que não o torna um parnasiano, porque sabe inovar, seja no metro do verso, no jogo de rimas ou na quebra de ritmo. E acho mesmo que melhor se realiza com a métrica formal. Ganha em densidade'', avalia.

   Para o crítico literário Sânzio de Azevedo, é a miopia de alguns que vê na revitalização dos poemas de forma fixa, capricho da Geração de 45, um retorno ao Parnasianismo. Em Carvalho, acredita, forma é fundo e vice-versa. ''O que vejo é uma poesia agônica, que reflete a luta com as palavras, de que já nos falava Carlos Drummond de Andrade'', observa, referindo-se à incessante busca do poeta pela palavra essencial. Autora de três livros acadêmicos com foco na poética carvalheana, a mestre Mailma de Souza vai além: ''Carvalho não é poeta por acaso. Ele pode tudo. Visita todos os metros possíveis, até o cordel''. Em Uma poesia de Tânatos e Eros(2000), O Subtrato da Quaderna (2001) e As Formas de uma Poesia do Ser (2002), aponta duas nítidas vertentes na obra do cearense: a morte e o amor. ''Sua face metafísica nos traz o sentido da existência humana, as limitações do homem e a tragédia da consciência da morte. Por outro lado, também é capaz de celebrar a mulher, a sensualidade. Não pelo viés do romantismo, mas da difícil busca por um sentimento maior. O erótico perpassa o todo, as pequenas questões, mesmo quando não usa a palavra explícita'', analisa.

   Para Mailma, Francisco Carvalho, o crítico de si, é implacável com o poeta Francisco Carvalho. Tanto assim que não constam em sua bibliografia as quatro primeiras publicações: Cristal da Memória (1955); Canção Atrás da Esfinge (1956); Do Girassol e da Nuvem (1960) e O Tempo e os Amantes (1966). ''Nunca concordei com essa postura de Carvalho. Esses quatro livros têm valor, inclusive por nos mostrar o estágio de maturidade a que chegou. Nenhum poeta nasce pronto. Mas é muito exigente consigo mesmo, tem o seu próprio mundo e sofre bastante com o refazimento da poesia. Para publicar Memórias do Espantalho, só com poemas por ele escolhidos, praticamente refez cada poema, num trabalho de carpintaria mesmo, artesanal. Enxugou, enxertou, modificou palavras... É tão escrupuloso que As Verdes Léguas, de 1979, é seu único livro reeditado. E depois de refazê-lo também só passou a considerar a edição de 1997. Trata-se de um poeta essencial, um ser-poeta'', revela.


VESTÍGIOS DO DIA

O dia se engalana
para as orgias
do vento e da espuma.
Fustiga os cavalos
dos meridianos.
Até as pedras mudam
de cor e de pluma.
O dia é uma estátua
de orvalho imolada
à divindade da luxúria.
O arrulho dos veios
acorda as formigas
e os fantasmas da catedral.
O dia a galope
atravessa a neblina
os corpos e as almas
com sua flecha de pérola
de ave de rapina.
Parte para toda parte
e a rota dos peixes
num pégaso que se alimenta
da música dos seios.
O dia é uma teia
de aranha. Uma dança
da vida e da morte.
Fome que se farta
do mito que não semeia.
São asas molhadas
de abutre que pousa
nos olhos dos mortos.
O dia é um tigre dourado
pelo faro da raposa.
O dia e seus pêndulos
de bronze e prata. Ritmos
dispersos das harpas
sem cordas de uma cascata.

NoOlhar.com.br)


Um poeta em sua concha

Infância, mocidade, dores e delícias da maturidade. Aos 77 anos, o poeta Francisco Carvalho tem poemas musicados, inéditos na gaveta para o mesmo fim, uma antologia recém-publicada e 26 livros editados

FRANCISCO CARVALHO: diálogo possível apenas por escrito, neutralizando os excessos da prosa coloquial(Foto: CLÁUDIO LIMA)

   Próximo e distante. A conversa olho-no-olho com o poeta Francisco Carvalho, em sua casa, no bairro Vila União, valeu como ensaio, um súbito chegar para ganhar-lhe a confiança e a empatia. Gentil e mansamente, falou de si e do ofício que cumpre como destino. Duas horas e meia de conversa. Com uma única pausa para audição privê do recém-lançado Donos do Brasil, disco do cantor e compositor Raimundo Fagner, onde constam cinco de seus poemas musicados. Assim, a fama de ensimesmado quase cai por terra. Quase. Porque, à noite, fechado em copas, remoeu perguntas e respostas, sofreu com tamanha exposição. E quis voltar ao casulo, em nome do cuidado com a palavra. Entenda-se: para ele, a prosa falada, coloquial e não-linear, fabrica ruídos de comunicação, escorrega, falha. Somente escrevendo é que se chega ao termo essencial, neutralizando dizeres vãos, os excessos. Assim, vaticinou: o diálogo possível seria sobre papel - isso ou o silêncio.

   O pensamento de Octávio Paz, pinçado em um dos textos que constituem a fortuna crítica de Memórias do Espantalho (Imprensa Universitária, 2004), onde o próprio Francisco Carvalho compôs uma antologia de poemas escolhidos, daria, por si só, a licença poética: ''Quando um poeta encontra a sua palavra, reconhece-a: já estava nele. E ele já estava nela. A palavra do poeta se confunde com ele próprio. Ele é a sua palavra. No momento da criação, aflora à consciência a parte mais secreta de nós mesmos. A criação consiste em trazer à luz certas palavras inseparáveis de nosso ser''. Carvalho é do tipo que cria e recria, exaustivamente, ao modo de Sísifo. Foi assim até publicar o calhamaço de 502 páginas com o sumo da obra: reviu cada verso, refez cada metro, enxugou, enxertou, suprimiu. Demasiado exigente consigo, nem mesmo admite ter em boa conta os poemas gravados por Fagner: ''O Bicho Homem'', ''Esse Touro Vale Ouro'', ''Cesta Básica'', ''Reino'' e ''Minueto da Porta'', todos remanescentes de Raízes da Voz, são, para ele, muito menos musicais do que outros, inéditos, há tempos engavetados, justamente à espera de quem lhes cubra com melodias.

   Da maneira que quis, o poeta saiu da concha para as páginas de jornal. A entrevista autorizada, revista e ampliada ao longo de dez dias, tem o tom da prosa poética, em linhas e entrelinhas. Visitando memórias, o ''poeta municipal'' dá conta do caminho trilhado até que se tornasse universal, tanto em relação às formas quanto aos temas. Seu retrato é para ser visto de longe, como ele próprio já escreveu: ''Sou um ser, o outro é metade/ que não sabe de onde veio./ Sou treva, sou claridade./ Solidão partida ao meio/ e entre os dois a eternidade''. (Ethel de Paula)

O POVO- ''Reino'', um dos cinco poemas de sua autoria musicados recentemente por Raimundo Fagner, convida a um passeio lírico pelas casas onde moramos. Que imagens evocam suas moradas?
Francisco Carvalho- A casa onde nasci ficava a 12 Km da cidade de Russas, numa pequena propriedade de meus pais. O poema ''Reino'', a que você se refere, fala metaforicamente dessa casa e de outras por onde passei. ''A casa é um reino/ de duzentas portas/ onde os invernos deixam/ marcas de suas botas''. Obviamente não existiam as 200 portas de que fala o poema. Nela, vivíamos basicamente da extração de cera de carnaúba, bastante valorizada naquele tempo. Aos dez anos fui morar em Russas, em casa de parentes, para estudar no Ateneu São Bernardo, um casarão antigo que tinha fama de mal-assombrado. A casa onde fui morar era diferente da nossa, mas tinha o mesmo fascínio de toda casa habitada por seres humanos. A casa de meus pais estava mais próxima da natureza e dos animais. Talvez, por isso, me tenha causado impressões mais fortes e duradouras. Em 1938, o Interior do Estado foi acometido de uma epidemia de malária, causando a morte de muitos sertanejos. Todos os dias desfilavam, pelas ruas principais da cidade, mortos vitimados pela malária. Eram levados em redes para o cemitério. Essa é uma das evocações mais tristes que tenho da cidade. Também me lembro de algumas figuras populares daquele tempo. Uma delas era o beato Zé Doidinho, uma réplica melhorada do Corcunda de Notre-Dame, criado pelo poeta e romancista francês Victo Hugo. Espécie de museu ambulante, exibia medalhas de vários tamanhos, fitas de inúmeras cores e formas, terços, rosários, crucifixos, fotos do Padre Cícero e vários outros penduricalhos. Tudo isso, pregado nas lapelas de um velho paletó marrom, encardido e ensebento.

OP- O contato com os livros começa na infância?
Carvalho- Sim. Entre os livros adotados no Ateneu, me chamou particularmente a atenção um volume de aproximadamente 400 páginas com o título de Crestomatia. O equivalente ao que modernamente se chama de antologia. Era uma seleta de autores brasileiros e portugueses. Camões, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Machado de Assis, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Tobias Barreto e vários outros românticos de primeira linha. Minha predileção pela poesia começou a manifestar-se a partir desse livro. Sistematicamente, os poetas eram lidos por mim em primeiro lugar. Só depois me preocupava com os prosadores. Nesse tempo, eu costumava ler também os ''romances'' de cordel, fartamente expostos nas feiras sabáticas de Russas.

OP- E os poemas? O senhor começa a escrevê-los em Russas?
Carvalho- Quando ainda morava em Russas, escrevi um pífio folheto de cordel sobre a seca no Ceará. Uma experiência frustrada, com toda certeza. Voltei a escrever poemas aos 19 anos, quando já residia em Fortaleza. Nesse época, eu perpetrava sonetos e poemas de péssima qualidade (o que não significa dizer que os não faça ainda hoje). Tudo me faltava: cultura literária, experiência existencial e conhecimentos elementares da cosmogonia poética. Principalmente da estética do Modernismo, que pretendia revolucionar a arte do verso em todos os seus aspectos. Eram tempos difíceis, de muitas leituras e lento aprendizado. Comecei pelo verso à moda antiga para, somente mais tarde, me entrosar com a experiência nada ortodoxa dos modernistas. Observei que havia certa confusão entre a teoria e a prática de alguns poetas. Principalmente quando passaram a adotar o verso livre sem a contrapartida de uma nova visão da realidade. Falava-se de um mundo antigo numa linguagem aparentemente moderna. Ainda hoje isso acontece com certa freqüência. É como se alguém vestisse uma roupa velha para a festa de casamento.

OP- Quais os seus interlocutores ao se mudar para Fortaleza?
Carvalho- Em 1946, na época de minha transferência para a Capital, o Grupo Clã, que teve importância decisiva na implantação do Modernismo no Ceará, já se encontrava estruturado. Na minha condição de candidato à poesia, permaneci distanciado dos componentes do Grupo. Só algum tempo mais tarde, comecei a manter diálogos eventuais com alguns autores do Clã: Antônio Girão Barroso, Otacílio Colares, Aluísio Medeiros, Fran Martins, Moreira Campos, Braga Montenegro e João Clímaco Bezerra, que há muito tempo reside no Rio de Janeiro. A Livraria Renascença, de Luís Maia, era ponto de referência para o encontro de intelectuais. Principalmente nas manhãs de sábado ou quando aconteciam lançamentos de livros.

OP- E quanto à sua geração? O que Fortaleza propriciava à época?
Carvalho- Paralelamente ao Grupo Clã, existia uma nova geração de poetas e prosadores. Estes se reuniam preferencialmente nos cafés e bares da cidade, como também nos bancos da Praça do Ferreira. Falava-se de literatura, cinema, política, mulher, futebol e ainda sobrava tempo para as anedotas cabeludas, que ninguém é de ferro. Não vou citar nomes com receio de omissões. Mas gostaria de lembrar uma das figuras mais brilhantes daquela época e cuja erudição nos impressionava: chamava-se Bolívar Costa. Falava corretamente o inglês, era leitor compulsivo e um ponto de referência em nossas discussões. Ao transferir-se para o Rio de Janeiro, passou a trabalhar como redator da Enciclopédia Barsa. Veio a falecer de câncer do pulmão, causado pelo tabagismo. O Ceará e o Brasil perderam um de seus intelectuais mais brilhantes.

OP- Sua juventude foi bem curtida, poeta?
Carvalho- Trabalhava durante o dia e estudava à noite no Colégio Pedro I, dirigido pelo Prof. Pedro dos Santos Teixeira. A faixa etária que vai dos l5 aos 30 anos é a idade de ouro do ser humano. Infelizmente, bloqueado pela timidez, todos os sonhos a que eu tinha direito foram de água abaixo. A falta de consciência do que isso representa - essa é a maior tragédia das pessoas jovens. O atraso inerente à época, quando uma saia acima dos joelhos era pecado mortal, foi a pedra no meio do meu caminho de adolescente. O terrorismo religioso era algo semelhante a uma autêntica lavagem cerebral.

OP- O senhor se diz ''poeta municipal''. A timidez contribuiu para isso?
Carvalho- Não exagero quando afirmo que sou um poeta municipal. A verdade é que nunca saí daqui, não sou conhecido fora dos limites da província, a não ser por alguns raros intelectuais do Rio, São Paulo e Brasília. Até mesmo em Fortaleza poucos me conhecem. Fui eleito para a Academia Cearense de Letras por insistência do Prof. Martins Filho, uma pessoa que sempre acreditou em mim e a quem devo muitos favores e homenagens. Ele tentou várias vezes me colocar na ACL, mas sempre recusei com argumentos de ordem pessoal. Com a morte do seu irmão, Prof. Cláudio Martins, acedi aos apelos do ilustre fundador de universidades.

OP- O poeta erudito dialoga com a província?
Carvalho- Antes de tudo, devo dizer que não me considero um poeta erudito. Faço poemas dentro dos esquemas da norma culta, mas isso não me confere o privilégio da erudição. A poesia popular é aquela que fala às claras. A chamada poesia erudita manipula formas de linguagem completamente diversas. Recorre a figuras de retórica e utiliza vários outros recursos de que é pródigo o idioma da Camões. Nenhuma razão para confundir as duas modalidades de escritura.

OP- O senhor diz que ainda não está certo de sua condição de poeta.
Carvalho- Os livros que escrevi na fase de aprendizagem são péssimos. Já tornei público esse fato em várias oportunidades. Todo mundo sabe que isso acontece com a maioria dos poetas na fase embrionária. Só os gênios escrevem grandes poemas no início da carreira. Mas os gênios não se encontram nas esquinas... O poema é também um testemunho das limitações humanas. Testemunho de experiências vitais e espirituais. Do imponderável, do transcendental e até do surreal. O Surrealismo não é, como pensam alguns, a linguagem do caos. O Surrealismo é a suprema ordem. Usa a dinâmica do inconsciente e dos sentidos para convalidar o alogicismo que permeia a modernidade do universo poético. O poema não deve dizer demais, é preferível que diga de menos. Ao poema interessa o imponderável. As coisas sobre as quais pouco ou nada sabemos.

OP- ''Fazer poema é ver as coisas como as coisas não são''. É isso?
Carvalho - Eu quis dizer com isso que só nos apercebemos da aparência das coisas, e que por trás dessa aparência existe uma realidade muito mais profunda. Uma mesa, por exemplo, pode ser vista sob diversos ângulos. A maioria das pessoas só consegue ver a mesa como um objeto doméstico de uso rotineiro. Já na visão do poeta a mesa pode ser um galho de árvore mutilada pelo homem. Tudo depende do ângulo pelo qual vemos os objetos. Ver as coisas como as coisas não são é vê-las numa perspectiva de recriação poética.

OP- ''O amor é uma rosa que se masturba no caule''. Como Moreira Campos, no gênero contos, sua poesia é marcada por certo erotismo. Até hoje é assim?
Carvalho- Trata-se de um verso figurativo. A gente precisa colocar no poema certas audácias verbais... Do contrário, o poema se converte em lirismo tipo funcionário público, como insinuava o poeta Manuel Bandeira. No chamado poema erudito, é necessário descer ao subsolo das palavras para encontrar a pérola. Não se trata de verso pornográfico. Ele apenas roça um dos vários ângulos do erotismo - essa coisa maravilhosa em torno da qual gira o planeta chamado vida. O erotismo é pura magia - e é dessa magia que se alimenta a melhor literatura. A gente faz poesia de caráter social para falar das injustiças praticadas contra a legião dos excluídos. E também para protestar contra o mercantilismo avassalador presente em todas as hierarquias do mundo capitalista.

OP- Segundo o poeta Adriano Espínola, o senhor é um mestre do soneto, embora não goste de ser chamado de sonetista. Os poemas medidos e rimados têm um sabor especial em relação aos versos brancos e livres?
Carvalho- Respeito o ponto de vista do excelente poeta Adriano Espínola. Quero deixar claro que não tenho qualquer preconceito contra quem escreve sonetos. Só não concordo com o rótulo de sonetista, uma coisa que me parece tediosamente provinciana. E me pergunto: que nomes daríamos aos autores de acrósticos, oitavas, décimas, baladas, odes, elegias e de várias outras modalidades de poemas? Se uma pessoa possui razoável talento poético, teoricamente estará apta para escrever sonetos ou poemas em versos livres, sem o aparato da rima. Se não o fizer, seria preferível mudar de profissão. Gostaria de ressaltar que essa questão não faz parte dos estudos de teoria poética. Ser ou não ser sonetista nada acrescenta ao currículo de ninguém. O poeta não será julgado por escrever sonetos ou elegias, mas tão somente pelo conteúdo e pela densidade do seu testemunho lírico.

OP- Ainda é exasperante o seu embate com a palavra? Existe uma busca cada vez maior pela palavra essencial?
Carvalho- Em qualquer gênero literário (romance, teatro, poesia), a palavra funciona como elemento essencial. Tinha razão Voltaire quando escreveu que ''uma palavra fora do lugar estraga o pensamento mais bonito''. Escritor de língua espanhola, cujo nome me escapa no momento, adverte para o risco de uma palavra sem rigorosa definição no contexto: ''Palavra e pedra solta não têm volta''. A esse respeito, tenho cometido muitos pecados. Dificilmente serei absolvido pela joeira do tempo, o mais impiedoso dos juízes. A busca da palavra essencial deve ser a prioridade de todo profissional da arte de escrever.

OP- O senhor procede de uma família muito religiosa - me contou que sua avó dava aulas de catecismo com os netos, de palmatória em punho, e que lembra da Semana Santa com certo pavor. De que forma o tema religiosidade pôde vir à tona em seus poemas?
Carvalho- É verdade. Minha avó paterna costumava reunir os netos em torno de si para ministrar-lhes lições de catecismo. Nessas ocasiões, fazia-se acompanhar de uma sólida palmatória de âmago de aroeira. Aquele que não respondia corretamente às perguntas, tinha de ajustar contas com a palmatória. Mas ela não o fazia por maldade. Era apenas coerente com os métodos que herdara de seus antepassados e continuavam em vigor na sociedade daquele tempo. Mas todo esse ritual não fez de mim um cristão melhor. O medo à palmatória e outros procedimentos adotados pelos clérigos da época me deixaram marcas profundas na alma. Sou de um tempo em que o mais inocente devaneio erótico era considerado pecado mortal, capaz de nos levar ao fogo do inferno. Hoje, estou de pleno acordo com o memorialista e filósofo Ascendino Leite. Para ele, ''do inferno é que se volta''. Durante a Semana Santa, a cidade tinha ares de um reduto medieval. A matraca, objeto rudimentar feito de madeira, era manipulada pelo sacristão, que a conduzia em volta da igreja matriz, fazendo-a produzir uma sonoridade lúgubre. Esta é uma das minhas recordações mais desagradáveis daquele tempo. Hoje chego à conclusão de que a exótica sonoridade da matraca era um prognóstico do que viria a ser a batida seca do rap, tão em voga nos redutos musicais dos tempos modernos. Certa vez, ouvi uma beata dizer para a amiga que o papa Pio XII conversava diretamente com Deus. Na realidade, como se veio a saber depois, os interlocutores de Pio XII eram altas personalidades ligadas à cúpula da diplomacia mundial.


CHE GUEVARA

Trecho de soneto em homenagem ao revolucionário cubano
Nenhum grito floriu no tempo escuro.
As catedrais do vento emudeceram
quando o pássaro azul que te habitava
foi te esperar às portas do futuro.
Com seus fuzis sangrando pelas bocas
eles chegaram num tropel de porcos.
Nada ouviste das coisas que disseram
nem viste a grande orquídea sobre os mortos

CÂNTICO DO BOI
Publicado em Barca dos Sentidos
Invejo o boi boiando nas ravinas
enquanto o vento sopra e o dia acaba.
Invejo a paz com que balança a cauda
ruminando indolências vespertinas

ANA E LÂMINA
Poema inédito
Ana Bolena
Ana bolina

Ana na grama
Ana na esgrima

Ana adúltera
o amor é uma úlcera

Ana na cama
Ana na câmara

Ana sem lei nem grei
e a espada do rei

Ana no Tâmisa
Ana na lâmina

Ana, a bastarda
não se acovarda

Oferta os peitos
à prole dos eleitos

Semeia venenos
no monte de Vênus

Poda a relva loura
a golpes de tesoura

Ana Bolena
não se amofina

Vestida de noiva
da seda mais fina

vai para o noivado
da guilhotina.

E DEUS FEZ A ÁGUA

Poema inédito

A chuva fez a maré
a maré fez a concha
a concha fez a pérola
e Deus fez a água.

O vento fez a nuvem
a nuvem fez o orvalho
o orvalho fez o rosa
e Deus fez a água.

O pássaro fez o ninho
o ninho fez o arrulho
o arrulho fez a aurora
e Deus fez a água.

A onda fez o peixe
o peixe fez a escama
a escama fez a escuma
e Deus fez a água.

A luz fez o lobo
o lobo fez a matilha
a matilha fez os dentes
e Deus fez a água.

O pastor fez a flauta
a flauta fez o rebanho
o rebanho fez o redil
e Deus fez a água.

O sopro fez a costela
da costela se fez Eva
Eva inventou o pecado
e Deus fez a água.

OS EXÍLIOS DO HOMEM

Trecho, retirado de Memórias do Espantalho
1

enquanto o mar
semeia vestígios
de argonautas na areia
a sombra do profeta
vai de regresso
ao ventre da baleia

2
a luz gorjeia
no zênite
pássaro fulminado
em pleno vôo
a luz despenca
do ápide do dia.

NoOlhar.com.br)


Sintaxe da abstração

No passeio pela poesia cearense, o encontro definitivo com a obra de Francisco Carvalho. Para o escritor Paulo de Tarso Pardal, o poeta dá início, no Ceará, à nobre linhagem poética da sintaxe da abstração pura

Paulo de Tarso Pardal
Especial para O POVO

   Em 1955, quando Francisco Carvalho publicava seu primeiro livro de poesias Cristal da Memória -, eu dava meu primeiro berro e o primeiro espirro, sim, porque me disseram que depois do grito eu espirrei, igualzinho às minhas duas crias, que, por sua vez, fizeram o mesmo que a avó. Somos uma família de espirrentos.

   Pois bem. Em 2000, aos 45 anos de escrita, o nobre poeta me dedicou um texto: ''Memória do Arco-íris'', em seu livro A concha e o rumor. Um belo poema que me fez sentir um eleito.

   Minha admiração por Francisco Carvalho, porém, veio quando comecei a ler os poetas cearenses, guiado pela voz segura de Sânzio de Azevedo e de Teoberto Landim, no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.

   Iniciei pelo conterrâneo José Alcides Pinto, um maluco, um diabólico poeta que me encheu os olhos de argueiro e de alucinação. A partir daí, senti uma imensa vontade de descobrir como os poetas daqui escrevem e me dediquei à pesquisa dos contemporâneos. Foi neste caminho que me encontrei com a poesia de Francisco Carvalho e dela não pude mais me afastar. (Namoro grande.)

   Acho que Francisco Carvalho é o iniciador de uma nobre linhagem poética no Ceará: a da sintaxe da abstração pura. Complicado, né! Mas não é não. É só observar:
1. ''O pássaro esquecido na gaiola/ come o pólen das horas e das heras.
2. ''...Nuvem pássaro/ descrita nas parábolas de linho/ encarceradas em fenícias tumbas/ feitas de pedra, ausência e pergaminho.
3. ''Tu lapidavas o ouro dos tigres.
4. ''Mas a morte não os ensina/ as suas enfurecidas caligrafias.
5. ''Cava o tempo no relógio de água.

   A abstração, em si, não é novidade, afinal, é um elemento intrínseco da poesia, mas acho que o tipo de abstração que Francisco Carvalho constrói está querendo dizer alguma coisa. Talvez isto seja uma maneira de interpretar o complexo mundo de hoje, que passa por múltiplas verdades e uma compreensão que só a natureza abstrata pode dar.

   É difícil definir, em um breve comentário como este, o centro poético de Francisco Carvalho. Para que você, caro leitor, tenha uma idéia do universo plurissignificativo da sua poesia, basta dizer que sobre sua obra já foram feitas duas dissertações de mestrado, além de uma fortuna crítica que dá um verdadeiro memorial.

   Como temos que iniciar por algum lugar, vamos dizer, por enquanto, que o tempo é um dos elementos mais importantes para entender sua poesia, porque é uma espécie de guia, uma régua sobre cujos milímetros está ajustada sua dimensão.

   Enquanto existencial, o tempo é reflexão do universo - do homem e da natureza; enquanto material, o tempo é limite - da vida e da morte; enquanto metáfora, o tempo é experiência - do homem e do poeta. É assim que Francisco Carvalho trabalha com este elemento.

   Acho que com estas três dimensões do tempo é possível sintetizar algo da sua poesia, mesmo que isto seja muito pouco.

   Se perceber a dimensão do tempo é um bom caminho para se penetrar na poesia de Francisco Carvalho, a metapoesia é esclarecedora. Apesar das abstrações, ele entra na oficina do texto como um verdadeiro mecânico-construtor, tentando, com isso, decifrar o enigma da criação.

   O interessante deste aspecto é que Francisco Carvalho não faz do metapoema apenas um motivo para compor, mas, essencialmente, faz dele um material de reflexão. Acho que este procedimento tem como conseqüência a constante renovação, daí sua atualizada maneira de construir metáforas e de jogar com as palavras. Foi a partir dessa renovação que ele serviu de referência para tantos das gerações seguintes. É por conta desse aspecto que iniciei dizendo que Francisco Carvalho era o iniciador de uma nobre linhagem.

   Outro mergulho que o leitor pode experimentar é feito através da seqüência de construção de alguns de seus metapoemas:
a) ''Quebra o teu santuário de metáforas/ quebra o teu alaúde de cristal/ e atenta para o sangue dos eventos/ a escorrer das artérias do jornal. (de Barca dos Sentidos, de 1989);
b) ''A poesia não é um caminho. É a encruzilhada/ de que nascem todos os caminhos. (de Romance da Nuvem Pássaro, de 1998);
c) ''Às vezes trago/ metáforas de trigo./ Meus versos não servem para nada. (de A concha e o rumor, de 2000).

   Quando se analisa este aspecto é que se percebe o nível de reflexão que ele imprime em seus versos e as conclusões a que chega. A última seqüência dos exemplos culmina com uma tremenda desilusão. Para entendermos o verdadeiro questionamento do poeta, temos que encarar o último verso como procedimento retórico: a poesia se afirma através da negação, paradoxo construído somente por aqueles que dominam o conceptismo barroco.

   Pois é, amigo leitor, o caminho é ler e ler e tentar descobrir o jogo que o autor quer fazer conosco. Este é o prazer que a leitura proporciona.
Estes comentários, talvez, ajudem o leitor inicial da poesia de Francisco Carvalho.

   Agora, o bom mesmo é ler tudo o que ele já escreveu. É uma viagem que não tem limites.

   Para você, caro leitor, boa sorte, e... um brinde!

   Para terminar, meu nobre poeta, sua bênção!

Paulo de Tarso Pardal é escritor e compositor


OS MÍSSEIS E OS OMISSOS

Os mísseis convivem conosco
em cada fragmento do nosso corpo.

Diz o grego que as flechas de Ulisses
não se bifurcam com as rotas dos mísseis.

Em noites de espumas e barbatanas
os mísseis contemporâneos das ratazanas.

Vou à feira comprar repolho:
um míssil explode dentro do meu olho.

Namorados que vão para Ipanema
levam flocos de mísseis para o cinema.

Os homens de prol, os burocratas
e omissos são mísseis que usam gravata.

Mísseis nos jatos e nos navios
que naufragaram. Mísseis nos rios

onde se leva o hímen das noivas
o enxoval de bordados e outras coisas.

Na hora da ceia ou do brinde
um míssil de ópio acende o cachimbo.

Mísseis teleguiados por gringos
explodem no céu, aos sábados e domingos.

Raia a madrugada nupcial dos gatos.
Os mísseis põem seus ovos nos retratos.

Francisco Carvalho - poema inédito

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Um vento no país Jaguaribe

Conterrâneo do país do Jaguaribe, o poeta Virgílio Maia - de Limoeiro do Norte - diz da amizade e da admiração pelo colega de Russas, ''senhor do verso livre e do soneto, muito mestre dos mares das metáforas''

Virgílio Maia
Especial para O POVO


   Foi só em mil novecentos e oitenta e três que conheci a poesia de Francisco Carvalho. Tal atraso se deveu a uma porção de razões, inclusive migratórias, que, creio, não carecem de explicações mais pormenorizadas. Mas foi naquele ano que me veio às mãos um pequeno grande livrinho - adquirido na Livraria Gabriel, lá na Faculdade de Direito, a velha Salamanca -, medindo exíguos sete e meio por onze centímetros, publicado, sob o título Pequena Antologia, pelas Edições Universidade Federal do Ceará, no início daquele mesmo ano. Há, na ''pequena'' antologia, um poema de Francisco Carvalho que até hoje me encanta e assombra, por sua beleza e por sua força: é o ''Anúncio da Escrava Extravida'', que, de lá pra cá, tenho relido e relido não poucas vezes e é para mim assim como que um repositório de palavras e sugestões poéticas. Minha identificação com ''Anúncio...' é tão completa que hoje não sei mais direito, por exemplo, se já gostava, antes de sua leitura, da expressão ''vento alucinado'', que o poeta faz, no poema, passar pela carapinha de bela e fogosa escrava que lhe havia escapulido das estrofes ou se é desde menino que vento que nem aquele sopra no meu ouvido - e no meu juízo. O ''Anúncio...' do poeta Carvalho é pleno dessas coisas quiméricas e bonitas que todos nós desejamos, às vezes ardentemente: quem não há de querer ''uma novilha malabar coberta por um zebu de sangue azul''?; ou ''sete patacões de ouro com o perfil da Marquesa de Santos?'; ou, por outra, ''vinte e quatro anos de volúpia e viço transbordando do corpo de uma mulher morena?'. Pois são estes, senhores, os itinerários anunciados no poema: terra e evocação, memória e desejo.

   A partir da leitura de ''Anúncio...' e por ela motivado fui à cata de mais poesias do Carvalho, o que fiz, em certa medida, correndo atrás do prejuízo e do tempo perdido, achando, então, Os Mortos Azuis, com suas vertigens e calmarias, e Pastoral dos Dias Maduros, uma bela edição da Imprensa Universitária da UFC, até descortinar e encher de vez a vista com As Verdes Léguas, título que usei, anos depois, para enriquecer uns versos que dediquei ao poeta. A produção poética de Francisco Carvalho é tanta e tamanha e tão boa que não poderia aqui fazer constar o rol completo dos títulos dos seus livros. Aliás, cada título dos livros do Carvalho é um verdadeiro achado: assim a cavalo e de galope, vamos vendo: Artefato de Areia, Barca dos Sentidos, Galope de Pégaso, Rosa dos Ventos e por aí se vai, rumo a uma poesia teluricamente nordestina, que por, bem cantada, é universal.

   Depois, um dia, aí por volta de noventa e quatro, recebi uma carta da poetisa mineira Yeda Prates Bernis em que me perguntava se eu, aqui em Fortaleza, conhecia pessoalmente o poeta Francisco Carvalho. Não, respondi para mim mesmo, e fiquei meio encabulado de não. Ainda não, me prometi. Dia seguinte, peguei o carro e fui bater na Reitoria da UFC, onde o poeta trabalhava; me apresentei, contei da indagação belorizontina de Yeda, fácil entabulamos conversa, que somos conterrâneos, ambos nascidos no País do Jaguaribe, sendo ele de Russas e eu de Limoeiro do Norte, e, partindo dali, nos tornamos bons amigos, tendo ele inclusive aqui, acolá, me obsequiado com generosas palavras escritas sobre essas frases que me aventuro a publicar.

   Carvalho, por completo Francisco de Oliveira Carvalho, nome todo ibérico e cristão-novo, está hoje entre os maiores poetas brasileiros, ombreando-se com os mais altos que escrevem ou escreveram em nossa língua, que, conforme o depoimento insuspeito de Miguel de Cervantes Saavedra, é uma das mais belamente sonoras do mundo.

   Estou sempre revisitando a poesia de Francisco Carvalho, cuja obra quase completa tenho aqui na biblioteca, a maioria dos títulos, para minha vaidade de leitor e bibliófilo, com dedicatória do autor. Releio, cada vez mais abismado por esse inigualável inventário de sonhos e de esperanças, a partilha das verdes léguas, em que uma irmã herda o almofariz, tocando a outra o cheiro de alfazema dos quartos; a um irmão, cabe o rio; a outro, a solidão do mundo, levando o poeta-escrivão juramentado, que tudo percorre em seu itinerário de veredas, o vento, só o vento, porém decerto aquele mesmo vento que se alucinou com o perfume do cangote de Jacintha, a que veio da Parahyba do Norte.

   Senhor do verso livre e do soneto, muito mestre dos mares das metáforas, Carvalho nos conduz por essas velas tecidas de solene inspiração e do linho que outrora se estendia sobre a areia e o luar dos tabuleiros nas sextilhas de cores e de amores nascidos nas auroras sertanejas, ecoando rabecas mais aboios, colhendo a eternidade de um momento.

   Mas, mais que tudo, ampara e consola saber que um poeta da magnitude de Francisco Carvalho também sabe e concorda que ''Fazendeiro não é quem possui rebanhos de gado. / Fazendeiros os que tangem o boi de volta ao passado''. Para mim, na grande admiração que lhe dedico, bastariam estes dois versos.

Virgílio Maia é poeta


HORAS DE BRONZE

Monarcas das comarcas,
a trombeta dos galos
acorda os passarinhos
em breves intervalos.

Seu canto pastoreia
as árvores dos vales
as sombras dos abutres
pousadas nos cavalos.

Vai alta a madrugada.
Soam as horas de bronze
no relógio sem pêndulo

da cancela da estrada.
Por onde, a passo trêmulo,
tudo volta para o nada.

Francisco Carvalho - poema inédito

(© NoOlhar.com.br)


Parceria universal

A professora e mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará, Mailma de Sousa, comenta os cinco poemas de Francisco Carvalho musicados pelo cantor e compositor Raimundo Fagner

Mailma de Sousa
Especial para O POVO

FOTO do encarte do CD Donos do Brasil: o encontro entre Fagner e Carvalho traz algo da temática interiorana e tem abrangência universal(Foto: DIVULGAÇÃO)

   Um dos maiores méritos da música de Fagner, a qual só posso analisar a partir da minha sensibilidade, é a constante visita que ele inevitavelmente faz à urbanidade e, igualmente, o faz também ao meio agreste de sua origem. Assim é que minha mãe, em menos de meia hora de vivência com o CD Donos do Brasil, recém-lançado, já fazia sua escolha, cantarolando pela casa: ''Esse touro vale ouro'', poema extraído do livro Raízes da Voz, de Francisco Carvalho. Apesar de geralmente incluir em suas músicas algo da temática interiorana, compreendo que Raimundo Fagner já não é cidadão somente de Orós, mas do mundo, da mesma forma que Francisco Carvalho não é só um poeta cearense, de Russas, mas é um poeta do humano, porque sua poesia abrange o universal. Basta atentar para as várias interrogações dos 19 quintetos, em meio a sete minutos de boa música, quando o poeta pergunta: ''Que bicho é o homem / de onde ele veio / para onde vai? Ou então declara: ''Esse touro vale ouro / vale o preço de cem vacas / esse touro quando muge / parte o arame das estacas''.

   Os trechos citados são de dois poemas de Carvalho, eleitos por Fagner para musicar, o que considero excelentes escolhas. Em ''O Bicho Homem'', a indagação existencial pode ser feita em qualquer língua ou tempo, já que é um questionamento ontológico que, portanto, alcança qualquer Ser, de qualquer tempo ou lugar. No caso de ''Esse Touro Vale Ouro'', o poeta evidencia a presença de um animal indispensável ao convívio no campo, aposta nas rimas fáceis de aprender, enfim, na cadência dos versos, elaborados os quatro quartetos igualmente com sete sílabas, que é em geral a métrica de que lançam mão poetas populares.

   Carvalho, um poeta que decerto ouve os apelos chegados do Jaguaribe à sua infância, é, a um só tempo, o poeta urbano que cedo se instala na Capital cearense e interroga a existência de qualquer Homem. Do campo ou da cidade. De Raízes da Voz, publicação de 1996, já indicado ao vestibular da Universidade Federal do Ceará, Fagner coletou cinco poemas, quatro deles integralmente aproveitados: ''O Bicho Homem'', ''Esse Touro Vale Ouro'', ''Cesta Básica'' e ''Reino'', que vem casado a trecho marcante de ''Minueto da Porta''. Portanto, das 13 canções que compõem o CD, cinco são de Francisco Carvalho, o que culminou num consórcio musical e poético perfeitos.

   ''Reino'' constitui-se de dois quartetos e dois tercetos, todos construídos em versos de seis sílabas, e, embora no ''Minueto da Porta'' não haja tal preocupação métrica, os dois estão marcados pelas duas principais vertentes da poesia do cearense: a vida e a morte. São do poema ''Reino'' os versos: ''A casa é uma nau / de turbulentas velas / singrando os desejos / dos que moram nela''. Em Carvalho, a casa é mesmo o lugar de velejar os desejos, portanto, a vida. Porém, ao mesmo tempo, é o lugar da morte, confirmado no outro terceto do mesmo poema: ''A casa é um porto / onde a barca da morte /de quando em vez ancora''. No casamento entre as duas poesias, vemos que do ''Minueto da Porta'', a porta é: ''Porta do purgatório / porta das heresias / porta por onde passam / as caravanas dos dias''. De modo idêntico ao poema anterior, ''Reino'', com que Fagner casa ''Minueto da Porta'', Carvalho confronta a porta das heresias, que pode representar o profano, o sexo, a vida enfim; e as caravanas dos dias, que pode significar a morte, pois as caravanas dos dias nela resulta.

   Meu artigo apressado certifica o quanto foi feliz a eleição dos poemas que Fagner fez de Carvalho, pois desta sua poesia ele canta o local e o universal, canta Eros (representado pelo amor, pela vivência com a natureza, pelo desejo de vida etc) e canta Tânatos (a morte). Compreendendo as duas faces da obra do poeta cearense (vida-morte), não nos furtamos à vontade de referir o outro poema musicado, ''Cesta Básica'': ''um quilo de arroz / pra não morrer de fome / (...) um quilo de aipim / pra não morrer de esplim / um tiro no ouvido / pra não morrer de rir''. Daí transcrevemos três dos sete duetos rimados em que Carvalho prepara idênticos o primeiro verso de cinco sílabas e o segundo de seis sílabas métricas. Porém o que é mais importante ressaltar é que nesta construção sobressai o aspecto social, também uma marca de sua poética. ''Cesta Básica'' combina, a meu ver, um lado quase lúdico ou quem sabe sarcástico, perceptível no jogo de palavras, que o cantor soube bem explorar e enriquecer.

   Carvalho é um poeta universal. Um poeta de todas as temáticas do Ser e de todas as métricas do verso. Na mestria com que elabora o verso de sete sílabas, elabora o soneto, o verso livre, o haicai, o cordel etc. Carvalho é poeta da nossa infância e dos nossos ancestrais como é poeta da nossa maturidade e do nosso futuro imprevisível. Poeta da vida como da morte. Antes eu lia a poesia de Carvalho. Agora ouço música na poesia de Carvalho, na voz ancestral de Fagner, que nos traz a saudade das gerações passadas e vislumbra o porvir. Carvalho, Fagner: celebração de universais.

MAILMA DE SOUSA é professora e mestre em letras pela UFC


POEMAS MUSICADOS

Trechos do CD Donos do Brasil, de Fagner, extraídos do livro Raízes da Voz, de Francisco Carvalho

O Bicho Homem

Que bicho é o homem
De onde ele veio para onde vai?
Onde é que entra, de onde é que sai?
Que raio lhe acende a chama da fúria
O que é que sobra da cesta básica de sua penúria
Que bicho é o homem do que se enfeita que mão o ampara
No chão de enigmas em que se deita
Que bicho é o homem
Que mama no seio da reminiscência
E que embala a morte em seu devaneio
Que bicho é esse que carrega o fardo de uma dor medonha
Que sucumbe ao fardo mais ainda sonha
Que bicho vagueia na treva hedionda, que pantera esguia
Sera mais veloz do que a própria sombra?

Esse Touro Vale Ouro
Esse touro vale ouro
Vale o preço de cem cavas
Esse touro quando muge
Parte o arame das estacas

Esse touro vale ouro
Vale duzentas patacas
Esse touro quando mija
Fecunda o sexo das vacas

Esse touro vale ouro
Em todas essas comarcas
Esse touro tem a insígnia
Do brasão dos patriarcas

Esse touro vale ouro
Vale prata vale cobre
A volúpia desse touro
E as novilhas que ele cobre

Reino
A casa é um reino
De duzentas portas
Onde os invernos deixam
Marcas de suas botas

A casa é uma nau
De turbulentas velas
Singrando os desejos
Dos que moram nela

A casa é um porto
Onde a barca da morte
De quando em vez ancora

A casa é uma pilastra
Que sustenta a alma
Dos que vão embora

Minueto da porta
Porta de ferro
Porta de bronze
Porta que se abre às 10
Porta que se fecha às 11

Porta de madeira de lei
Porta de jacarandá
Porta que se abre aqui
Porta que se fecha lá

Porta do purgatório
Porta das aresias
Porta por onde passam
A caravana dos dias

Cesta Básica
Um quilo de arroz, pra não morrer de fome
Um quilo de água, pra não morrer de sede
Um quilo de pedra, pra não morrer de febre
Um quilo de lêvedo, pra não morrer de bêbado
Um quilo de ópio, pra não morrer de ócio
Um quilo de aipim, pra não morrer de esplim
Um tiro no ouvido, pra não morrer de rir

SERVIÇO
Donos do Brasil. Disco de Fagner. Indie Records. Preço médio: R$ 34,60.

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