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O herdeiro de Baden

05-06-2008

LUÍS NASSIF

   Coloco no aparelho o CD "Ceará Violão Solo". Vou direto à faixa seis, "Siá Mariquinha". Pela primeira vez fico sabendo o nome dos autores, Luiz Assunção e Evanor Pontes. Acho que, lá pelos idos dos 70, Ednardo, do grupo do Ceará, andou gravando.

   Mas minha memória mergulha mais fundo e chega à voz límpida de dona Tereza juntando os filhos em torno da cama e cantando os versos tristes. A única diferença era o nome: Siá Maroquinha. "Siá Maroquinha, sua casinha tinha / sua bela casinha, dos tempos de amor / Mas veio a chuva / de riba da serra / pegou com a casinha e esfrangalhou / Ai, ai, siá Maroquinha, isso não é brinquedo / me diga se saudade mata, se saudade mata / que já estou com medo".

   Incrível o que versos tão singelos podiam fazer com a imaginação de uma criança no interior. Passava horas cantando obsessivamente a música. E morria de pena da Sá Maroquinha.

   Mais tarde, na adolescência, resgatar o Nordeste da seca, dos coronéis, era prioridade da nossa geração, tudo estimulado pelo sentimento de solidariedade plantado pela canção popular.

   No encarte do CD, Nonato Luiz diz que o arranjo que fez transformou "Siá Maroquinha" em peça apoteótica, utilizada para abertura de concertos na Europa. Ficou linda, de fato.

   Fiquei pensando tão longe com a "Siá Mariquinha" ou "Sá Maroquinha" que só agora chego ao tema desta coluna, o violonista Nonato Luiz.

   Tempos atrás, reclamei do excesso de malabarismo que campeia em certa área do violão brasileiro. Mas o violão chorado continua firme e rijo. Entre esses violonistas, há alguns conhecidos apenas no meio, mas dos quais se identifica o som pelo cheiro. Um deles é Geraldo Ribeiro, que fez sucesso no final dos anos 70, depois embarcou para os Estados Unidos, voltou e está lecionando em Tatuí. Lá no conservatório da cidade há também o som portentoso de Francisco Araújo.

   Nonato Luiz pertence a essa estirpe. É um estupendo violonista, da melhor escola nordestina de João Pernambuco, conhecido no circuito Rio-São Paulo apenas pelos aficionados.

   E não porque esteja no Ceará. Na verdade, ele deve dormir por lá, porque seu destino é a Europa. Hoje em dia é dos violonistas brasileiros mais prestigiados no mundo, transitando do popular ao erudito. Sua "Suíte Sexta em Ré", editada pela Henri Lemoine (Paris), sob a coordenação dos irmãos Assad, abriu caminho para a produção de Nonato ser incluída no repertório de alguns dos maiores violonistas e nas melhores salas de concerto do planeta.

   Nonato iniciou sua carreira no início dos anos 70, quando baixou em Fortaleza Darcy Villa Verde, violonista de renome. Timidamente, Nonato telefonou para o hotel e pediu que mostrasse suas músicas. Darcy concordou, sem muito entusiasmo. Bastou ouvi-lo para Nonato ser incorporado à troupe de Darcy.

   Dali, praticamente sem ser notado pela crítica, começou uma carreira que hoje lhe dá renome internacional. Há uma empresária austríaca que todos os anos promove uma turnê sua por Alemanha, Suíça, Itália e Áustria. Tem três CDs lançados na Alemanha e relançados no Brasil.

   É imensa a lista de violonistas que executam obras suas. O japonês Shin-ichi Fukuda gravou "Mosaico", da "Suite e, Ré Menor". O "Baião Cigano", uma peça à altura da melhor tradição brasileira de violão, recebeu letra de Fausto Nilo, virou "Baião da Rua", venceu um Prêmio Sharp e chegou a ser gravado nos Estados Unidos por uma cantora de jaz, April Aloisio.

   No site é possível saber tudo sobre sua vida e adquirir CDs. Se pudesse sugerir um, seria o show ao vivo no Mistura Fina, acompanhando Fernando Rocha.

   Ele transita pelo clássico e pelo popular da mesma maneira. É filho direto de Baden, neto de João Pernambuco, na pegada, no balance, na exploração de cada nuance do violão, com a sensibilidade do amante que conhece cada ponto da mulher.

   Perto da meia-noite, encerro a coluna ao som de uma ciranda e que reforça em mim o encantamento de ser brasileiro.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br

Folha de S. Paulo)

 

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