Notícias
Os homens do presidente

05-06-2008

Lula, em cena de Entreatos
 

João Moreira Salles e Eduardo Coutinho falam sobre a produção de seus filmes, que têm Lula como figura central

TEREZA NOVAES
DA REPORTAGEM LOCAL

   A estréia nacional hoje dos documentários "Peões", dirigido por Eduardo Coutinho, 71, e "Entreatos", de João Moreira Salles, 42, coloca não apenas seus nomes -já consagrados dentro do gênero- em destaque, mas acende um holofote (ou uma fogueira, dependendo do ponto de vista) sobre o presidente Lula, que faz a ponte entre os filmes.

   Ele é a estrela de "Entreatos", que mostra os bastidores da reta final da campanha que o levou à Presidência, e dínamo de "Peões", que enfoca os companheiros de Lula nas greves da região do ABC no final dos anos 70.

   Mesmo antes da estréia, os filmes já causam polêmica. Uma delas é o corte da entrevista com Luiza de Farias, 66, a funcionária da cantina do sindicato que disse que "Lula bebia, sim", em "Peões". Este é um dos episódios abordados na entrevista que os diretores concederam à Folha.

 

A ESCOLHA DE LULA
João Moreira Salles -
Uma das funções do documentário é testemunhar alguma coisa, é dizer: foi assim. No caso do filme do Lula, foi um pouco esse desejo. A campanha de Lula, caso ele vencesse ou perdesse, seria histórica. Vencendo, foi a primeira vez que alguém da origem social do Lula chegou à Presidência da República no Brasil. Isso é histórico, independe de qualquer julgamento sobre sua capacidade de governar. Mas o fato de que ele pode ser eleito é um dado novo na história do Brasil. Se ele perdesse, seria histórico também, seria a constatação de que alguém como o Lula, com sua origem, não pode se tornar presidente no Brasil porque há uma resistência intransponível. Havia aí um fato inequívoco, único. E achei que era bacana poder ser uma testemunha disso.
 

Eduardo Coutinho - Nunca tenho idéias como: "Farei um filme sobre o movimento sindical". Aquelas caras nas fotos da época é que me interessavam. Quem são essas caras? Ninguém é anônimo, né? Me interessam o homem ordinário, a grande história e a pequena história. E surgiu a possibilidade de juntar isso. [O filme] não é sobre a greve. É sobre as pessoas que têm uma trajetória que passou pelas greves. Lula está lá porque é o grande líder.
 

ÉTICA COM O PERSONAGEM
Salles -
A preocupação que você deve ter com o personagem é a mesma com todos, seja ele presidente, pianista, jogador de futebol, crente ou pastor de igreja. As questões precisam ser discutidas concretamente em cima de uma imagem, de uma cena. Não é só o que ele diz, mas como ele diz. Uma mesma frase dita com humor pode significar uma coisa, dita com rancor, outra. Uma é permitida, a outra talvez não seja. É um inferno ter que lidar com essas angústias, você não controla o sentido das coisas. O que me interessa no Lula é sua ambigüidade, o que me interessa em qualquer personagem é o fato de ser complexo.
 

Coutinho - Ela [Luiza] poderia se sentir traidora de um cara que admira, o Lula. Não foi um pedido de ninguém [retirá-la do filme]. Apenas entendi que um troço dito com inocência dois anos atrás continua sendo inocente depois da "denúncia" [a reportagem sobre os hábitos de beber do presidente, publicada pelo "New York Times"]. Mas senti que ela poderia ser prejudicada, não por ser traidora de classe, não por causa do sindicato. Vai haver uma projeção lá [em São Bernardo do Campo] e 50 pessoas que eu entrevistei foram convidadas. E sempre vai ter esta reação: "Você não deveria ter dito". Há dois anos não era nada. É terrível que isso se torne uma tempestade em copo d'água. A reação incompetente do governo de criar um caso é que tornou isso um assunto. Eu não precisava proteger o Lula, ele não precisa disso. Mas achava que precisava protegê-la.
 

LULA E O PT
Salles -
Eu não tenho nenhum dever de guardar ou preservar uma imagem do PT. Não filmei o PT, filmei o Lula. A autorização me foi dada por ele. Meu compromisso maior é com o Lula, não é com o presidente. É com o personagem Lula, que é rigorosamente igual ao meu compromisso com qualquer personagem que eu tenha filmado até hoje. É claro que, quando você está lidando com uma pessoa que é o presidente da República, determinadas coisas ganham outro sentido. Ele dizer, por exemplo, que toma uma pinga ganha outro sentido.
 

INFLUÊNCIA MÚTUA
Salles -
As discussões com o Eduardo me fizeram perceber uma coisa óbvia. Mais que o tema, o fundamental é pensar a maneira de abordá-lo. Não existe bom documentário que não seja também um raciocínio sobre o próprio documentário.
Exerço uma boa influência sobre o Eduardo: não deixar que ele se suicide simbolicamente. Não há um único filme em que o Eduardo não me ligue dizendo: "É uma desgraça, um horror". Aconteceu no "Edifício Master".
 

Coutinho - Mas, um dia depois do fim das filmagens do "Edifício Master", eu encontrei o João e disse: "Se a gente passar 60% da experiência que a gente teve, vai ser maravilhoso". Essa coisa de pessimismo é puro exorcismo. O dia em que eu não reclamar estarei morto.

Folha de S. Paulo)


Diretores discutem filmes no Rio

DA SUCURSAL DO RIO

   Um mistério ainda cerca "Peões" e "Entreatos": o que Lula e a cúpula do PT pensam dos filmes de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles? Em debate realizado anteontem, no Rio, após a exibição dos dois documentários, Salles disse que enviou para o Planalto, em dezembro, uma versão maior do filme e, recentemente, a final, junto do longa de Coutinho. Resposta? Nenhuma.

   "Nunca houve qualquer interferência de Lula nem de ninguém no nosso trabalho. E continua assim. Em nenhum documentário do gênero, algum diretor teve tanto acesso a um candidato como eu tive. É surpreendente que eu tenha podido ver tanto", afirmou.

   Boa parte das perguntas da platéia do Cine Odeon BR explorou as supostas contradições entre o Lula de hoje e o metalúrgico e o candidato, dos filmes. "Como não acredito em grandes utopias, não estou frustrado [com o governo]. Mas é claro que não estou satisfeito", disse Coutinho. "O lamentável é que só haja um discurso possível. Mas antes ser cauteloso do que ser aventureiro", afirmou Salles.

   "Só que a cautela não é heróica", completou Coutinho.

   Salles chamou de preconceituosas as críticas a Lula que têm saído na imprensa em razão de características suas mostradas nos filmes: o gosto pela cachaça, o prazer de usar ternos, o cuidado com a própria imagem.

   "Estou convencido com as minhas vísceras de que Lula não produziu um falso Lula. A visão de que ele foi domesticado pelo marketing político é ingênua. O que fez o [publicitário] Duda [Mendonça] foi aproximar o Lula do Lula real", afirmou Salles, ressaltando o humor que o então candidato mostra no filme.

   "Eu não quis terminar o filme de uma maneira épica, com o Lula sendo cumprimentado [pelo telefone] por [George W.] Bush e [Tony] Blair, porque governar o Brasil não é épico, é administrar miudezas", disse Salles.

Folha de S. Paulo)


CRÍTICA

Obras colocam homem comum no palco da grande história

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

   "Peões" (que compete hoje no Festival de Cinema de Brasília) e "Entreatos" são filmes opostos e complementares, que crescem em significado e impacto quando vistos um depois do outro -se possível nessa ordem.

   O primeiro busca o sentido da história inscrito na pequena biografia de homens anônimos que foram companheiros de Lula no trabalho operário e sindical. O segundo trilha o caminho inverso ao buscar o íntimo, o "comum", no homem de trajetória pública e dimensão histórica.

   Por conta de seus objetivos distintos, cada um dos documentários tem uma forma própria.

   No de Eduardo Coutinho há 21 protagonistas, filmados em circunstâncias semelhantes: todos falam diretamente ao diretor sobre suas lembranças profissionais, políticas, familiares.

   Grande parte da história social do país nas últimas décadas desfila então diante de nós.

   A migração nordestina para o Sudeste, o auge da indústria automobilística, a resistência à ditadura, a modernização da produção, o aumento do desemprego -essas coisas todas, que lemos nos relatos jornalísticos ou nas análises sociológicas, aparecem ali vivas, concretizadas em vozes, risos, lágrimas e cicatrizes.

   Já em "Entreatos", o protagonista é um só, o homem que subiu ao palco da "grande história" conduzido nos braços dos peões do filme anterior. Filmado nas mais diversas circunstâncias durante sua campanha à Presidência -da cadeira do barbeiro à gravação do programa eleitoral, do aniversário em família à reunião política-, Lula deixa ver o que persiste de comum no homem público, ou de "ordinário" no personagem "extraordinário".

   Ao contrário do que ocorre em "Peões", em boa parte de "Entreatos" tudo se passa como se a câmera não estivesse lá. Essa naturalidade, obviamente, é enganosa: tanto Lula como seus coadjuvantes (parentes, assessores, correligionários) sabem que seus gestos e palavras estão sendo filmados.

   Mas, como notou o diretor João Moreira Salles, essa construção que os personagens fazem de si mesmos é parte integrante deles. A dose de faz-de-conta de que lançamos mão na vida social também nos constitui, é parte da nossa verdade.

   A própria participação do publicitário Duda Mendonça na constituição da imagem de "um novo Lula" é mostrada às claras. Mais reveladora, entretanto, é a sem-cerimônia com que um amigo de primeira hora do presidente, Ricardo Kotscho, pede a ele que pare de falar em seus discursos dos "grandes homens que não estudaram". "Essa conversa já encheu o saco", diz o jornalista.

   Tudo é muito rico no jogo, captado por Salles, entre o "velho Lula" e o "novo Lula". Pena que muitos vão preferir pinçar nesses dois filmes memoráveis (em todos os sentidos do adjetivo) aquilo que interessa à luta política pequena e imediata, em vez de aprender o que eles têm a nos ensinar sobre nosso país e sobre nós mesmos.

Peões
    
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 2004


Entreatos
    
Direção: João Moreira Salles
Produção: Brasil, 2004
 

Folha de S. Paulo)


Carinhas que olhavam Lula saem da sombra

Hugo Sukman

   Dizem as cartilhas sociológicas que o trabalho na linha de montagem aliena o trabalhador, impessoaliza o trabalho. João Chapéu — um dos 21 personagens de “Peões”, o novo documentário de Eduardo Coutinho (de “Edifício Master”), sobre metalúrgicos do ABC que viveram as históricas greves de 1979 e 1980, quando Luiz Inácio Lula da Silva despontou como líder nacional — lembra emocionado de quando seu filho pequeno via um caminhão da Mercedes e exclamava: “Olha, pai, ali tem uma peça que você fez”.

   A operária Elza guardou um exemplar da revista “Visão” de 1979, na qual aparece numa manifestação, para mostrar aos filhos. Não os teve.

   — Então mostro ao meu sobrinho — diz, orgulhosa de se ver parte da História e de cumprir o verso que, para ela, é o mais bonito do Hino Nacional, “Verás que um filho teu não foge à luta”.

   Levando os objetivos de seu tipo de documentário às últimas conseqüências, ou seja, buscando exclusivamente histórias íntimas como a de João Chapéu e Elza, Coutinho acaba por encontrar trajetórias épicas.

   — Sempre que vejo velhos filmes sobre grandes concentrações populares, de comícios como os de Getúlio, de Fidel, dos nazistas de Leni Riefenstahl fico interessado nas carinhas. Quem é aquele cara no meio da massa que sumiu? — diz Coutinho. — A pretexto das greves de 79 e 80 fui procurar pessoas que tivessem uma história de vida antes, durante e depois da greve.

“Peões” estréia simultaneamente a “Entreatos”, de João Salles

   “Peões” estréia sexta-feira simultaneamente a “Entreatos”, o documentário de João Moreira Salles sobre a última campanha de Lula à Presidência. São filmes irmãos gêmeos, feitos em 2002 durante a campanha de Lula e devido à iminência histórica de um ex-operário chegar à presidência.

   — Havia a possibilidade de fazer os filmes, então dei a idéia para o João: ele fazia o Lula, e eu fazia um filme sobre as carinhas que vi nos filmes que documentaram as greves — lembra Coutinho. — Levamos, na única vez que o vi pessoalmente, as duas idéias para o Lula, que falou, em primeiro lugar: “Minha campanha é histórica, perca ou ganhe”. No que estava certo. E uma segunda coisa: “Eu só existo porque existiram as greves do ABC”. Tínhamos dois filmes complementares.

   Mas enquanto “Entreatos” é, sim, um filme sobre Lula, os bastidores de sua campanha e a maneira com que o presidente representa a sua figura pública, “Peões” é sobre os sindicalistas que se mantiveram anônimos, palavra usada por Coutinho no próprio filme, mas que agora na entrevista ele faz questão não de corrigir propriamente, mas de refinar um conceito tão fundamental em seus documentários.

   — Anônimo ninguém é na sua comunidade. Então, embora eu a tenha usado no filme, é uma palavra ambígua. A expressão que uma vez um crítico francês usou para este tipo de personagem que uso é “homens ordinários”. A palavra “ordinário” em francês não tem a conotação pejorativa que tem aqui no Brasil, de homem reles. Vamos então simplificar mais: é sobre homens comuns.

   A busca desse homem comum, em “Peões”, deu-se a partir de três filmes que documentaram as greves: “ABC da greve”, de Leon Hirszman; “Linha de montagem”, de Renato Tapajós; e “Greve”, de João Batista de Andrade.

   — Fizemos uma edição dos três filmes pegando apenas as cenas de multidão, onde se podia reconhecer as pessoas — diz Coutinho que, como em todos os seus documentários, expõe o processo de pesquisa para o espectador durante o filme.

   Nesse processo, vê-se Coutinho mostrando as imagens ligadas ao movimento sindical de São Bernardo, para gente que ia reconhecendo “as carinhas” e dando as direções de pessoas que participaram das greves de 79 e 80. Mais de 50 pessoas foram entrevistadas para que se chegasse às 21 que estão no filme.

   — A conversa que não fosse afetiva saía do filme — diz Coutinho, à guisa de explicar os seus critérios na edição. — O eixo do filme pode ser político, mas o essencial era que passasse para o público e para mim o aquém e o além do político. Tem a mulher que fala do conflito entre fazer política e cuidar dos filhos. A vida é assim, afinal.

   O tal homem comum, segundo Coutinho afirma escolado em experiências como “Santo forte”, “Babilônia 2000” e “Edifício Master” (no qual só ouvia histórias de “anônimos”), é aquele que elabora menos o discurso.

   — O que eu não gosto das figuras públicas é que essas pessoas têm muito a perder. As pessoas que têm muito a perder têm que zelar pelo seu discurso. As pessoas comuns, não. Isso é essencial para a minha forma de fazer documentário. Se eu tivesse que fazer um filme como o do João, ia ter problemas com o ritual: aqui não pode fumar, aqui não pode entrar. Eu não tenho mais saúde para isso. O que é o negócio do João: paciência, perseverança, diplomacia e ousadia. Não tem que conversar com ninguém, como eu faço. Numa conversa entre Lula e Duda Mendonça, por exemplo, não tem que perguntar nada: são eles que estão falando e devem ser apenas captados.

Filme tem fundo político como “Cabra marcado para morrer”

   É a segunda vez que as histórias humanas captadas por Coutinho têm um fundo político. A primeira foi em “Cabra marcado para morrer”, que começou a rodar em 1964, sobre camponeses que lutavam pela reforma agrária na Paraíba, cujas filmagens foram interrompidas devido ao Golpe Militar, e retomadas só em 1984. Coutinho foi em busca do que restou daquela gente, e encontrou uma sobrevivente, a camponesa Elisabeth.

   — Tinha uma intenção política de resgate, claro, mas tudo se molda pelo singular, pelo coração e pela cabeça — diz Coutinho. — Em “Cabra”, eu queria me resgatar resgatando a Elisabeth. Eu era quase um fantasma, não fazia mais cinema, que era a minha vida. Se eu não fizesse aquele filme, estava morto. Como a coisa está engrenada, o processo político não podia estar fora. Mas ele é humanizado por aquela viúva, pelos filhos, na família, e aí acontece o que faz os meus filmes até hoje. Por isso o filme teve público: ninguém ligava na verdade para política, mas na grande mãe, na família estilhaçada, que é a família popular.

“Greves de 1979 e 80 foram um troço extraordinário”

   Mas o fundo político de “Peões” é encantador, e mesmo ele concorda.

   — O movimento social mais importante do século XX são as greves de 79 e 80, em si e pelas conseqüências. A greve histórica de 17, com o anarquismo, foi pouco, a Revolução de 30 foi brincadeira, afinal este é o país da conciliação, os caras-pintadas são de chorar de rir, a anistia é mais um movimento da sociedade. As greves de 79 e 80 foram um troço extraordinário na vida brasileira e, ao contrário de outro grande momento de ruptura como a Guerra do Contestado, os protagonistas estão vivos. No Brasil, a gente costuma deixar morrer todo mundo que tem histórias para contar. Os de “Peões” estão vivos, então vamos ouvir suas histórias.

   Histórias como a de Zélia, servente do sindicato que se orgulhava de ter começado a trabalhar lá em 1976 junto com Lula, ela como faxineira, ele como presidente. E que conta a história de um dia em que, com o sindicato cercado pela polícia, os militantes passam para ela um filme que ela tem que preservar. Ela esconde o filme na roupa, passa pelo cerco e, por isso, hoje existe “Linha de montagem”, um dos filmes que inspiraram Coutinho.

   — Se eu falhasse, lá se ia a única história que a gente tinha — diz Zélia, tão consciente do seu pequeno, mas decisivo, papel na História.

O Globo, 21.11.2004)
 

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind

© NordesteWeb.Com 1998-2004

O copyright pertence ao veículo citado ao final da notícia